LEI ‘ANTICRIME’ – Admitir representação informal da vítima não vai ampliar ação por estelionato
A amplitude que a jurisprudência pacífica das cortes superiores brasileiras confere à representação da vítima nos crimes cuja ação é pública condicionada não é suficiente para distorcer as restrições que o chamado pacote “anticrime” (Lei 13.964/2019) visou impor ao processamento dos casos de estelionato.
Essa é a opinião de advogados consultados pela ConJur, na semana em que o Superior Tribunal de Justiça deu contornos definitivos à interpretação da norma: a exigência de representação pode ser aplicada retroativamente, no máximo, até o oferecimento da denúncia.
Se a ação já está em curso e o crime ocorreu antes do pacote anticrime, não importa se é desejo da vítima ou não ver o autor do delito processado. Para todos os outros casos, aplica-se a ampla definição jurisprudencial sobre o que é, por fim, representação da vítima.
A questão foi levantada no julgamento da 3ª Seção, na quarta-feira (24/3), no voto-vista do ministro Felix Fischer. Ele apontou que a representação da vítima é questão de procedibilidade da ação — não de prosseguibilidade.
“Quero lembrar que a representação não tem formalidade especial. Se estavam apurando um crime de estelionato, não foi pela graça divina. Evidente que a vítima foi reclamar”, disse. “Já começa no aspecto prático: nenhuma delegacia ou o Ministério Público vai apurar um crime, se a vítima não quis. Senão, nem saberiam que ocorreu”, complementou.
O ministro Rogério Schietti também tratou do assunto, ao identificar no caso concreto a manifestação inconteste da vítima. “Vejam que ela se dirigiu à delegacia, lavrou boletim de ocorrência e apresentou documentos demonstrando transações fraudulentas. E tem também o depoimento oral que prestou na delegacia”, disse.
A hipótese gerou discussão entre os integrantes da 3ª Seção do STJ. “A pessoa pode nem querer [a ação penal], ter pena [do autor]. Mas se ela não for à autoridade policial, quem que vai saber? Não tem nem lógica. Se ela foi, está preenchido o requisito”, concluiu o ministro Fischer.
O STJ tem diversos julgados em que reconhece o boletim de ocorrência como suficiente representação da vítima em crimes cuja ação é pública condicionada. Em um deles, julgado pela 5ª Turma já após a entrada em vigor da lei “anticrime”, fica claro que a vítima demonstra seu interesse de processar o autor do estelionato quando vai à delegacia e repassa dados à autoridade.
A regra na prática
Para advogados consultados pela ConJur, a experiência prática vai tratar de evitar que qualquer caso de estelionato seja processado. Destacam que esse é, inclusive, o principal efeito da lei: abrir espaço para que uma ocorrência entre particulares possa ser resolvida pelo acordo, evitando a judicialização e preservando a jurisdição penal como última ratio.
“Uma ação penal por estelionato não pode ser iniciada sem a representação. Mas um inquérito policial pode. Se a vítima desconhece quem é o autor da fraude, ela pede a instauração do inquérito e representa depois de saber quem foi o autor”, exemplifica Rodrigo Dall’Acqua, sócio do Oliveira Lima & Dall’Acqua Advogados.
Já para Guilherme Cremonesi, sócio do escritório Finocchio & Ustra, a elaboração do boletim de ocorrência não é a representação e, por si só, não preenche a condição de representação. “Para que o caso tenha prosseguimento, a vítima deverá elaborar o boletim de ocorrência e, na mesma oportunidade ou dentro do prazo de seis meses manifestar expressamente, por escrito ou em declarações que conste em termo nos autos”, diz.
Segundo Bruno Borragine, sócio do Bialski Advogados, a experiência prática permite afirmar que podem — e já existem — casos em que a investigação policial nasceu e evoluiu sem a representação inicial da vítima. “Com o inquérito policial maduro, os fatos bem apurados e a vítima identificada, ocorrerá a sua intimação para formalização do interesse em representar contra o investigado”, aponta.
Avanços preservados
O balanço que os criminalistas fazem dos efeitos práticos da nova regra destacam-se pela relevância sistêmica. De acordo com Daniel Gerber, a taxa de não-criminalização do estelionato deve aumentar, já que a viabilidade do acordo cresce muito. Até a entrada em vigor da lei, ele só servia para diminuir a pena, mas não para afastar a tramitação.
“Avaliação é positiva porque o estelionato, sendo um crime patrimonial sem violência ou sem grave ameaça à pessoa, não detém dignidade penal. Sem a menor sombra de dúvidas, é um problema privado a ser resolvido entre as partes”, explica.
Ou seja, abre-se caminho para a tentativa de um recomposição no aspecto patrimonial que, muitas vezes, é o real objetivo dos atingidos. “Para a vítima, esta solução costuma ser mais satisfatória do que esperar pela conclusão de um longo processo criminal”, ressalta Rodrigo Dall’Acqua.
Guilherme Cremonesi afirma que “essa mudança proposta vai ao encontro de uma política criminal moderna que reserva o uso do direito penal aos casos mais graves na medida em que o direito penal é o de ultima ratio. Ou seja, o último caminho e deve ser acionado apenas em situações gravíssimas quanto os outros ramos do direito já não são suficientes”.
HC 610.201
HC 618.235
Danilo Vital – Conjur