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Lei 14.132/21- “STALKING” criminalizado e a desnecessária revogação do art. 65 da Lei de Contravenções Penais

Cristina Alves Tubino

Advogada criminalista.[i]

Marilia Brambilla[ii]

Advogada criminalista.

Notas introdutórias.

A palavra stalking, que tem sua origem na língua inglesa, guarda como significado, em uma tradução livre, perseguir, aproximar-se silenciosamente e de inopino, atacar à espreita.

Tal conduta sempre foi bem retratada em filmes e seriados, v.g. como, na década de 1990, em Dormindo com o inimigo, A Mão que Balança o Berço, Estranha Obsessão, Obsessão Fatal e, recentemente, o seriado “Você”, em 2019, mas passou a ter relevância penal, de fato, com o advento da lei 11.340/06, onde a tipificação da conduta passou a ser necessária para punir agressores e agressoras que perseguiam mulheres, as fazendo vítimas de perseguição contumaz em decorrência de violência doméstica e familiar.

É de se ressaltar, todavia, que a prática da perseguição de alguém não se caracteriza apenas em casos de violência doméstica, mas em todas as situações em que um determinado sujeito ativo acaba invadindo a intimidade, coagindo, afetando as vítimas emocionalmente e, até mesmo, causando restrição em suas liberdades.

O perseguidor ou stalker age de diversas formas seja com ligações telefônicas, e-mails, mensagens em redes sociais, permanência ou comparecimento em lugares em que a vítima frequenta, trabalha ou mesmo passa, como trajeto para casa.

O estudo do “stalker” e seu comportamento, fenômeno também conhecido como A Síndrome do Molestador, não é recente e sempre foi muito debatido entre juristas, psicólogos e psiquiatras. Durante a década de 1980, muitas das vezes, se usava a expressão para se referir a perseguições realizadas contra celebridades[iii]. Já, em dias atuais, surgiram novas classificações como o cyber stalking, realizado por meio das redes sociais, as quais acabaram por facilitar imensamente essas ações ocultas.

O que pode parecer ser uma conduta inofensiva e isolada, pode vir a violar a liberdade pessoal da vítima e se tornar uma conduta a ser punida pela legislação penal. A ciência classifica o stalker desde o circunstancial até o psicopata, passando pelo fixador. Laurence Miller[iv], em artigo publicado em 2012, argumenta que a motivação do perseguidor pode ir desde a crença delirante de um final romântico, até o desejo de recuperar um relacionamento já terminado, um desejo doentio e sádico de atormentar a vítima.

Assim, o perseguidor pode ser, desde uma pessoa normal, apenas querendo causar o mal a outrem, a até possuir transtornos psicóticos, transtornos delirantes ou de personalidade. A perseguição, muitas vezes é associada ao ciúme excessivo (síndrome de Otelo) ou mesmo ao sentimento de posse, decorrente do machismo que pode permear um relacionamento íntimo de afeto ou familiar.

Ainda que não haja um perfil psicológico já firmemente definido para o “stalker” a ciência vem identificando, basicamente, cinco padrões comportamentais característicos à síndrome: predador, rejeitado, ressentido ou invejoso, carente de afeto e o cortejador. Partindo dessa complexidade é que se pode chegar a situações que deixam o mero comportamento impertinente para chegar ao ato criminoso.

A conduta de “perseguir” criminalizada no Art. 147-A, inserida no Código Penal, torna-se relevante criminalmente quando passa a afetar e restringir a liberdade individual do alvo da perseguição, conforme descrito do tipo “ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica”, “restringindo-lhe a capacidade de locomoção”, “invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”.

Até o dia de hoje, 01 de abril de 2021, por ausência de tipificação própria, a adequação típica mais próxima do stalking era a contravenção penal descrita no seu artigo 65, o qual, não tratava apenas de perseguições, mas da perturbação da tranquilidade do indivíduo como um todo, v.g. o barulho constante de vizinhos que não respeitam as leis locais sobe o silêncio.

Vale citar a Lei 14.132/2021:

Art. 1º Esta Lei acrescenta o art. 147-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para prever o crime de perseguição.

Art. 2º O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte art. 147-A:

“Perseguição

Art. 147-A. Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.

Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

§ 1º A pena é aumentada de metade se o crime é cometido:

I – contra criança, adolescente ou idoso;

II – contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código;

III – mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma.

§ 2º As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.

§ 3º Somente se procede mediante representação.”

Art. 3º Revoga-se o art. 65 do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais).

Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Teceremos breves considerações sobre o tipo penal inserido no art. 147-A do Código Penal, bem como a revogação expressa da contravenção penal já mencionada, a apontaremos possíveis os efeitos práticos a partir da Lei 14.132/21 para o direito das mulheres e daqueles que possam ser perturbados em sua tranquilidade.

1. A Lei 14.132/21 e a inclusão do Art. 147-A, do Código Penal.

O crime rubricado pelo legislador como “Perseguição” foi introduzido no Título I (Crimes contra a pessoa), Capítulo VI (Dos crimes contra a liberdade individual), Seção I- DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE PESSOAL, na Parte Especial do Código Penal de 1940.

Na topografia do tipo penal, traz o legislador uma nova modalidade de crime que tem como bem jurídicoprotegido a liberdade pessoal, sendo precedido pelo crime de constrangimento ilegal (art. 146) e crime de ameaça (art. 147). O novel crime é comum quanto ao sujeito ativo e passivo, pode ser ofensor qualquer pessoa, assim como também a vítima não precisa ser mulher.

Quanto ao elemento subjetivo, trata-se de crime doloso, o ofensor precisa praticar a conduta querendo produzir o resultado ou assumindo o risco de produzi-lo, nos termos do art. 18, do Código Penal. No que pese estarem descritas as expressões “ameaçando-lhe”, “restringindo-lhe”, “invadindo”, “perturbando”, não há falar em finalidade especifica de agir ou elemento subjetivo especial, sendo tais expressões descrições dos resultados pretendidos com a prática do núcleo do tipo- o verbo- “perseguir”.

Primeiro grande problema relacionado a redação dada ao tipo versa sobre o momento consumativo e a possibilidade de tentativa. O legislador ao descrever como elementar a expressão “reiteradamente” torna hialino que o crime é habitual, ou seja, são necessárias várias condutas, vários atos de perseguição, para a configuração do crime em comento. Não basta um único ato de perseguir, é mister a prática habitual.

A bem da verdade o próprio nomen iuris ‘perseguição” já traz impressão de prática contumaz, e tarefa difícil seria a do legislador de assumir a possibilidade da consumação com um único ato, ou em atos sem elo de ligação capaz de configurar suposta perseguição. O grave problema não foi trazer o crime como habitual, mas sim a revogação expressa do art. 65 do Dec. Lei 3688/41 (Lei de contravenções penais), pois a prática de conduta que não se comprove perseguição deixa de ser perturbação da tranquilidade, passando a ser irrelevante para o direito penal, tornando-se atípica. Tal questão será alinhavada no próximo tópico.

Ressalta-se que o crime habitual se consuma com a reiteração dos atos de perseguição, por qualquer meio, inclusive, mas não admite tentativa. Assim, v.g. o ex-marido que passar um dia inteiro ligando para a ex-esposa, com intuito de tirar sua paz e tranquilidade, não pratica mais qualquer infração penal, pois em tese, não estaria configurada a reiteração prevista no tipo penal.

Acerca elementares típicas trazidas “ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica”, “restringindo-lhe a capacidade de locomoção”, “invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”, a prima facie nos parecem ser necessárias para a comprovação da consumação do delito. O legislador, caso quisesse que fosse crime formal – aquele que se consuma com a conduta-, teria tido o cuidado de descrever a elementar “com a finalidade de”, mas não o fez, com esta redação o crime é material, consumando-se apenas com a reunião de todas as suas elementares, conforme inteligência do art. 14, I, do Código Penal.

Percebe-se que sendo crime habitual e material, com a teratológica revogação do mencionado art. 65, cria um “buraco negro” de impunidade, onde conduta de perturbação poderá ocorrer e ser atípica.

A ação penal é pública condicionada à representação da vítima, seguindo entendimento aplicado ao crime de ameaça, no qual a vontade da vítima é essencial para dar início a persecução criminal.

O crime de Perseguição é crime de menor potencial ofensivo, assim classificado quanto à lesividade/ofensividade ao bem jurídico protegido e aplica-se a Lei 9099/95, ou seja, a competência será do Juizado Especial Criminal, o procedimento é o sumaríssimo, e podem ser aplicados os benefícios legais da transação penal (art. 76) e suspensão condicional do processo (art. 89). Ressaltando-se que em casos de vítima mulher, em situação de violência doméstica e familiar, há vedação legal expressa e sumulada de aplicação da Lei 9099/95.

A classificação do crime é: comum, doloso, habitual, material, de ação livre (por qualquer meio), plurissubsistente (vários atos), permanente. No preceito secundário há previsão da pena de reclusão de 6 meses a 2 anos.

É raro o crime de menor potencial ofensivo ser punido com pena de reclusão, mais gravosa que a pena de detenção, o que em regra traz o legislador para crimes de menor potencial ofensivo. A intenção legislativa é evidente com esta previsão, visto que será possível, conforme art. 2º, III, da Lei de Interceptações telefônicas e telemáticas (9296/96), cumprido os outros requisitos legais, a interceptação como meio de prova, e evidente que serão cabíveis medidas cautelares de busca e apreensão de objetos com essa finalidade de quebra do sigilo para comprovação do crime.

A crítica que surge é que crime de menor potencial ofensivo, de competência do JECRIM, onde aos princípios aplicados são da oralidade, informalidade, simplicidade, economia processual e celeridade, é incompatível com a pena de reclusão e com as consequências jurídicas decorrentes dessa previsão, como acima mencionada a interceptação telefônica.

Porém, também é clara a intenção do legislador que tais meios de provas possam ser usados quando a vítima for mulher, haja vista que não aplica a Lei 9099/95, ainda que se possa subverter a finalidade dos Juizados Especiais Criminais, especialmente quanto à celeridade na solução dos feitos.

A Lei 14.132/21 também prevê causas de aumento de metade da pena quando o crime for praticado contra criança (até 12 anos incompletos), adolescente (12 a 18 anos incompletos) e idoso (com ou maior de 60 anos), ressaltando-se que são “naturalmente” vulneráveis e, na maioria dos crimes são protegidos de forma especial.

E ainda a mulher quando vítima de perseguição por razões da condição do sexo feminino ou em situação de violência doméstica e familiar, mencionando expressamente menção ao § 2-A do Art. 121, a qualificadora de Feminicídio. Lembrando que a causa de aumento incide na 3ª fase da dosimetria da pena. Fica claro, todavia, que foram esquecidas pelo legislador, as pessoas com deficiências, que são, da mesma forma, mais vulneráveis às condutas previstas no tipo penal

Também prevê com aumento de metade da pena o concurso de duas ou mais pessoas e com o emprego de arma. Justifica-se o aumento pelo concurso de agentes pelo fato de que a superioridade numérica tem capacidade de causar maior temor da vítima. E, quanto ao emprego de arma, poderá esta ser de fogo ou até arma branca/imprópria, usadas como meios que diminuem, ainda, mais a capacidade de resistência das vítimas.

No § 2º do art. 147-A há previsão do concurso de crimes quando houver violência, de fato uma violência conhecida como “vis absoluta”, o desforço físico contra o corpo da vítima, podendo se caracterizar como crime de lesão corporal ou até mesmo a contravenção de vias de fato prevista no art. 21 da LCP.

Tecidas as observações cabíveis a análise do novo crime, resta claro que várias questões práticas acabarão por serem analisadas pelo poder judiciário. Entre elas algumas merecem maior destaque, vejamos.

2. A revogação do Art. 65 da LCP.

Conforme dissemos acima, a lei 14.132/21 trouxe, em seu artigo , a revogação expressa do art. 65 do Dec. Lei 3688/41 (Lei de contravenções penais), pois a prática de conduta que não se comprove perseguição deixa de ser perturbação da tranquilidade, passando a ser irrelevante para o direito penal, tornando-se atípica.

Ocorre que, basta a leitura do hoje revogado dispositivo para se verificar que sua abrangência era muito maior do que a dada pelo tipo do artigo 147-A do CP. Dizia o tipo penal que se caracterizava como contravenção penal “molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável”. Havia, ainda, a previsão de prisão simples de quinze dias a dois meses ou multa.

Esta contravenção, conforme ensina Damásio de Jesus[1] pretendia proteger a tranquilidade social, constituindo ilícito penal a conduta de incomodar, aborrecer ou atormentar alguém por motivo reprovável. Ultrapassando em muito a perseguição, por si só.

Ou seja, poderiam se adequar a esse dispositivo condutas como, passar um dia inteiro ligando para o outro, ou aquele que com som automotivo passa a noite inteira na porta da casa de alguém perturbando, sem que, necessariamente, se caracterize uma perseguição. Ocorre que, agora, nenhuma dessas condutas configura mais contravenção penal.

A edição da nova lei ensejará a busca, por aqueles que encontram-se sendo processados pelo tipo do artigo 65 da LCP, ou mesmo que já tenham sido por ele condenados, de aplicação de medidas processuais a fim de verem reconhecida a aplicação do disposto no artigo , parágrafo único, do Código Penal, para declaração de extinção de punibilidade, pela “abolitio criminis”, posto que diversas das situações que se adequavam àquela contravenção penal, não se adequam aos novos limites do artigo 147-A, tornando-se, portanto, fatos atípicos e estranhos à lei penal.

Breves considerações finais.

É evidente que era extremamente necessária a criminalização da perseguição, principalmente porque ocorre com mais frequência contra mulheres em situação de violência doméstica e familiar ou por simplesmente serem mulheres, porém a redação do artigo pode ser um grande desafio para interpretação dos operadores direito.

Surgem várias arestas: Será aceita a apenas a palavra da vítima mulher em violência doméstica e familiar, ou de qualquer vítima de perseguição, qualquer que seja o ofensor, para condenação? Quais meios de prova e quais provas serão necessárias para a comprovação das elementares do tipo, em especial a reiteração? E aquele que teve sua tranquilidade perturbada que tinha previsão de proteção no art. 65 revogado fazem o quê? Só restará a esfera cível indenizatória? E muitas mais são as arestas a serem aparadas.

Não restam dúvidas que a intenção do legislador foi boa, presume-se que sempre seja, mas dessa vez trouxe mais problemas práticos do que soluções.


[1] JESUS, Damásio E. de. Lei das Contravencoes Penais Anotada – 7. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 1999.


[i] CRISTINA ALVES TUBINO, advogada criminalista há 20 anos especializada em direito das mulheres, professora, especialista em Direito Penal e Processo Penal e em Direito de Família. Conselheira Seccional da OAB/DF, Membro Consultora da Comissão Nacional da Mulher Advogada do Conselho Federal da OAB

[ii] MARILIA GABRIELA GIL BRAMBILLA, professora especialista em Direito Penal e Legislação Penal Especial de diversos cursos preparatórios do Brasil. Advogada criminalista há 17 anos, especializada em júri e direito das mulheres. Já ocupou os cargos de conselheira seccional, subprocuradora geral de prerrogativas, vice-presidente da Comissão de Ciências criminais na OAB/DF.

[iii]https://www.telavita.com.br/blog/stalker-stalkear/ acesso em 01/04/2021.

[iv] MILLER, Laurence; Stalking: Patterns, motives, and intervention strategies; em Aggression and Violent Behavior, Volume 17, Issue 6, 2012, Pages 495-506, ISSN 1359-1789, acessível em <https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1359178912000687>;

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