QUEM COLABORA PRA QUEM – Leia os votos de Fachin, Gilmar e Barroso sobre a delação de Sérgio Cabral
O Supremo Tribunal Federal precisa mudar seu entendimento sobre a autorização para a Polícia Federal celebrar acordo de delação premiada sem participação do Ministério Público. Se esse entendimento for revisto, a delação de Sérgio Cabral é nula. Caso contrário, por respeito à colegialidade, deve ser considerada válida, já que obedece à visão corrente da Corte sobre o tema.
Esse é o teor do voto do ministro Luiz Edson Fachin, relator de petição da Procuradoria-Geral da República que pede a anulação do acordo de delação do ex-governador Sérgio Cabral (MDB-RJ). O julgamento virtual do recurso começou nesta sexta-feira (21/5), no Plenário Virtual, sob sigilo. Se não houver pedido de vista, deve se encerrar na próxima sexta-feira, dia 28.
Segundo Fachin, a questão preliminar suscitada pela PGR, sobre a validade dos acordos de delação fechados exclusivamente pela PF, prejudica a análise de mérito do pedido. Em 2018, quando a Corte julgou o tema, o ministro havia votado para declarar inconstitucionais os acordos firmados por delegados. Ficou vencido, ao lado de Rosa Weber, Luiz Fux e Dias Toffoli.
Em fevereiro deste ano, Fachin homologou o acordo de delação fechado pela PF com Cabral, decisão que foi posteriormente revogada, após a apresentação de petição pela PGR.
Em seu voto, Fachin diz que homologou a delação em respeito ao princípio de colegialidade, mas que, agora, diante de um feito com “natureza de ação originária” e considerando que o julgamento que definiu a tese já ocorreu há três anos, repete os argumentos apresentados em 2018 e acolhe a questão preliminar apresentada pela PGR.
Os argumentos de Fachin partiram de três premissas: a primeira, de que a colaboração premiada é realidade jurídica, em si, mais ampla do que o acordo de colaboração premiada. No contexto de negociação de acordo, o Estado abre mão de parte de seu poder punitivo, comprometendo-se a abrandar a punição de alguém que cometeu um crime. A questão, nesse contexto, é saber qual órgão estatal a Constituição permite que represente o Estado na celebração de um negócio jurídico com essas consequências.
A segunda premissa de Fachin é a de que essa competência é exclusiva do Ministério Público, por extensão da previsão constitucional que determina que esse órgão também é o responsável privativo pela promoção de ação penal pública. Assim, “a pretensão punitiva é de titularidade do Ministério Público”.
“Isso não significa que delegados de polícia estejam constitucionalmente alijados das dinâmicas próprias que envolvem a colaboração premiada, especialmente se vista como gênero, ou seja, nas hipóteses em que a colaboração não decorre de um acordo”, ressalva.
O delegado tem algumas atribuições: (i) representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador; (ii) participar das negociações entre as partes; (iii) apresentar para manifestação do Ministério Público a colaboração, decorrente de negociação entre delegado, investigado e defensor.
No entanto, “sem a presença do Ministério Público, a polícia não é parte que pode chancelar acordo e obter homologação judicial”. “Para presentar isoladamente o Estado na celebração do negócio jurídico, teria o delegado de polícia de dispor de direito que se associa ao exercício, integral ou parcial, da pretensão punitiva.”
Isso não significa, no entanto, que a polícia deva ser excluída da negociação, prossegue o ministro no voto, mas sim que ela deve trabalhar em conjunto com o Ministério Público, em uma “cooperação que deve imperar entre as diversas agências incumbidas da elucidação e persecução decorrentes da prática de crimes”. Essa seria a terceira premissa adotada pelo ministro em sua manifestação.
Diante desse conjunto de reflexões, Fachin entende que se deve “acolher a questão preliminar suscitada pela Procuradoria-Geral da República, o que, acaso também acolhida, torna sem efeito, desde então, a decisão homologatória do acordo de colaboração premiada celebrado nestes autos”.
Caso vencido nessa questão preliminar, Fachin aponta que a fundamentação do pedido da PGR parte do princípio que “o colaborador permaneceria ‘em situação de ocultação de bens e valores adquiridos em razão da sua extensa lista de crimes’, a indicar desrespeito aos deveres anexos inerentes à boa-fé objetiva que deve nortear a pactuação do acordo de colaboração premiada”.
Nesse caso, não haveria “divergência doutrinária ou jurisprudencial acerca da caracterização do acordo de colaboração premiada como meio de obtenção de prova”. Assim, não seria adequado formular juízos de mérito sobre os fatos narrados por Cabral no processamento do acordo, justamente porque, em conjunto com os elementos de corroboração, são o meio de prova “a ser encartado e valorado no procedimento próprio, seja nos autos do respectivo inquérito ou de eventual ação penal”, e não por meio de petição.
Voto de Barroso
Ao acompanhar parcialmente o voto do relator Fachin, o ministro Luís Roberto Barroso, por sua vez, rejeitou recurso da PGR por entender que a PF pode fechar acordos de delação premiada, sem oferecer benefícios que sejam de prerrogativa do MP. Por isso, mantém a delação, mas deixando claro que isso não obriga a abertura de inquéritos a partir das informações prestadas pelo delator.
“O conteúdo dos acordos que podem ser celebrados pela autoridade policial é bastante restrito, limitado pelos poderes inerentes às suas atribuições. Em nenhuma hipótese pode a autoridade policial dispor sobre prerrogativas privativas do Ministério Público, por exemplo, garantindo o não oferecimento de denúncia ou negociando concretamente as penas a serem cumpridas.”
Além disso, segundo Barroso, o acordo examinado no recurso não assegurou ao colaborador nenhum benefício concreto, limitando-se a enumerar os favores que, em tese, podem ser concedidos a qualquer acusado — mesmo sem a formalização de acordo — que auxilie na obtenção de resultados previstos em lei.
Voto de Gilmar
Já para Gilmar Mendes não cabe discussão sobre a autonomia da Polícia Federal para celebrar acordo de delação. Ele lembra que, na ADI 5.508, reexaminada por Fachin em seu voto, ele próprio já tinha consignado que “a eficácia do acordo firmado com autoridade policial depende de manifestação do Ministério Público”. “Nesse sentido, parte da doutrina afirma que o delegado pode negociar e firmar o acordo, mas a sua conclusão depende da aderência do MP.”
Além disso, cita precedentes em que o Supremo “já decidiu que é absolutamente nulo o ato de indiciamento de detentor de prerrogativa de foro realizado por delegado de polícia sem que a investigação tenha sido autorizada por ministro do STF a partir de requerimento apresentado pelo PGR” (Pet 6.266 AgR; e Pet 3.825).
“A própria estrutura do inquérito judicial no STF impede que, como regra, acordos de colaboração premiada e investigações sejam iniciadas em dissonância com a manifestação do Procuradoria-Geral da República”, destaca.
Assim, quanto à questão preliminar, “acolho o suscitado pelo relator tão somente para tornar sem efeito a decisão que homologou o acordo de colaboração premiada, sem firmar qualquer tese com efeito erga omnes quanto à legitimidade da autoridade policial para celebrar acordo de colaboração premiada”, uma vez que esse julgamento não é sede adequada à realização de controle concentrado de constitucionalidade.
No mérito da questão, Gilmar diz que o acordo de Cabral revela, na verdade, “a existência de um verdadeiro estado de coisas inconstitucional na implementação do regime de colaboração premiada no direito brasileiro”. Para ele, o caso é paradigmático para refletir sobre os limites do uso dos acordos diante dos princípios que norteiam o sistema penal acusatório.
Ele votou para tornar sem efeito a delação de Cabral, entre outros motivos, por entender que a aceitação de uma cláusula que permitiria a Cabral apresentar novos elementos de corroboração de suas alegações em até 120 dias é “absolutamente ilegal”.
“A lei exige que o colaborador narre de uma só vez todos os ilícitos. Referida cláusula foi totalmente aceita pelo eminente relator em sua decisão de homologação, sem nenhuma glosa. Ela instituiu, no presente caso, um verdadeiro regime de homologação antecipada (ex ante) do acordo de colaboração premiada, situação em que a autoridade judicial primeiro homologa o acordo e só depois o colaborador narra fatos ainda indeterminados e desconhecidos”, sustenta Gilmar.
A partir dessa cláusula “guarda chuva”, a Polícia Federal encaminhou representação criminal com relatórios de inteligências preliminares “destituídos de elementos mínimos de corroboração para além da palavra de Cabral”, completa.
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PET 8.482
Luiza Calegari e Severino Góes – Conjur