BIG BROTHER – Caso Marielle faz Justiça ampliar tolerância para geo-fencing em investigações
A magnitude da apuração do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, tem feito o Judiciário brasileiro permitir e manter a ampliação da técnica de investigação conhecida como geo-fencing.
O termo em inglês identifica estratégia de marketing que permite a anunciantes e empresas em geral atingir usuários da internet a partir de “cercas virtuais”. Esses limites são definidos por parâmetros como geolocalização, termos de busca ou histórico de navegação, entre outros.
Transportado para a investigação criminal, permite saber, por exemplo, quem esteve no local de um crime durante um determinado horário, a partir dos dados de celulares conectados à internet.
No Brasil, o caso Marielle levou a um rompimento de paradigmas sobre o tema. A vereadora foi morta a tiros em 14 de março de 2018 e, três anos depois, há suspeitos, mas muita indefinição sobre quem cometeu o crime e os mandantes.
A pedido do Ministério Público, o Judiciário fluminense passou a deferir pedidos de entrega de dados do Google com o objetivo de identificar, em um universo indeterminado de pessoas, quais delas podem ter algum envolvimento com o crime. É o que os críticos chamam de fishing expedition (pesca probatória).
Para o Superior Tribunal de Justiça, corte responsável pela última palavra infraconstitucional, as caraterísticas do caso justificam a estratégia usada: trata-se de crime político de alta relevância e repercussão internacional, praticado, ao que tudo indica, por organização criminosa sofisticada e que demanda maior esforço dos órgãos investigadores.
Foi assim que, em agosto de 2020, a 3ª Seção negou provimento a três recursos em mandado de segurança nos quais o Google visava derrubar ordens judiciais de entrega de dados estáticos. A votação foi criticada por advogados e especialistas.
O pedido era de identificação dos IPs ou Device IDs de usuários que tenham aberto o Google Maps ou Waze entre 10 e 14 de março de 2018 para pesquisar o endereço da Rua dos Inválidos onde Marielle participou de evento na noite do crime. Ao sair de lá, foi assinada. Também pedia identificação de quem, no mesmo período, pesquisou uma série de termos relacionados ao caso: o nome da vereadora, sua agenda etc.
Com base nesse precedente, na terça-feira (3/8) a 6ª Turma do STJ manteve ordem sensivelmente mais ampla, também no contexto das investigações desse caso.
O Google será obrigado a apresentar ao Judiciário dados de todas as pessoas que transitaram por três áreas específicas do Rio de Janeiro em período de dois anos, entre 1º de janeiro de 2017 e 5 de fevereiro de 2019.
Esses dados incluem identificação de contas de usuários e dados cadastrais, registros de conexão, mídias (fotos, vídeos e outras), histórico de pesquisa e de navegação, favoritos, histórico de localização, e-mails, agenda, agenda de contatos, aplicativos instalados e backups contidos nos serviços de “driver“.
Esse pedido específico mira a atuação da organização criminosa autodenominada “Escritório do Crime”, que teria envolvimento na morte de Marielle.
Ao STJ, o Google apontou que a medida atinge número indeterminado, porém expressivo de pessoas, pois abrange locais de amplo acesso público: centro, Barra da Tijuca e Itanhangá. Citou óbices tecnológicos podem gerar resultado com baixa confiabilidade: indicar usuários que não estiveram no local ou excluir pessoas que por ali passaram. E denunciou a ocorrência de fishing expedition. A 6ª Turma negou provimento ao recurso.
Cadê os suspeitos?
Relator no caso julgado pela 6ª Turma, o ministro Rogerio Schietti apontou que não há indicação de devassa de dados pessoais. O que se pretende, justificou, é o fornecimento de registro de dados, não de conteúdos de comunicação. Mesmo no caso de fotos e vídeos, tais mídias já seriam acessíveis por buscadores de conteúdo.
A ideia, conforme explicou, é permitir o cruzamento de dados para identificar pessoas que, com base nos parâmetros da decisão, reúnam uma coincidência de fatores que mereça ser analisada pelo Ministério Público. A partir daí, será possível pedir e impor medidas pessoais como interceptação telefônica, por exemplo.
“Não é que, pelo fato de ter colocado nome Marielle na rede e estar em determinado local, alguém já se torne um suspeito”, afirmou.
Único a ficar vencido no precedente da 3ª Seção, o ministro Sebastião Reis Júnior novamente se insurgiu. Criticou a amplitude da ordem imposta ao Google e falta de critérios. “Por que o período de dois anos?”, indagou. “Não há justificativa.” Ele classificou muito dos pedidos como invasão de privacidade.
“Tenho muito medo de que isso se torne um hábito. O crime é grave? É. Mas [dados referentes ao período de] dois anos? De qualquer pessoa que circulou naquela área? Não sei nem como que o juiz, o Ministério Público ou a Polícia vai trabalhar com esse leque de informação. Certamente, serão informações de milhares de pessoas”, disse.
Pau para toda obra
A orientação jurisprudencial pacífica no STJ tem feito a corte proferir decisões monocráticas para manter ou determinar ordem de entrega desse tipo de dado pelo Google. Além do caso Marielle, uma busca no sistema da corte identificou em 2021, até agora, outras oito delas, em processos de sete estados diferentes (MT, SP, GO, DF, RS, SE e PE).
Nenhuma das determinações judiciais é tão abrangente quanto a observada no Rio de Janeiro. Há registros de uso do geo-fencing para apurar roubo circunstanciado e estupro de uma vítima (RMS 66.668), roubo de joias e bens avaliados em R$ 1 milhão efetuado em joalheria (RMS 66.563) e 84 furtos de “airbags” cometidos desde 2018, em especial de veículos Honda/Civic (RMS 65.064).
Também serve para apurar outros crimes contra a vida. É o caso de sequestro seguido de homicídio de uma criança de nove anos de idade (RMS 65.412), prática de associação para o tráfico e homicídios (RMS 61.419) e também homicídio qualificado (RMS 64.603).
Em um dos casos decididos monocraticamente, o ministro Ribeiro Dantas manteve o pedido de entrega de dados referente a área de condomínio residencial em Adamantina (SP) em que três casas foram alvo de furtos na véspera do Natal. Foram subtraídas joias, bebidas e outros bens móveis (RMS 65.242).
No mesmo período, a 5ª Turma proferiu decisão colegiada em que considerou razoável a delimitação da exigência judicial feita ao Google: a listagem de dispositivos ou conexões ativadas na plataforma de serviços da impetrada em um raio de 30 metros da residência de vítima de um suposto homicídio durante lapso temporal de dezenove horas (RMS 65.993).
E a LGPD?
Integrante da 6ª Turma, o ministro Antonio Saldanha Palheiro conhece o assunto também porque integrou como vice-presidente a comissão criada pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, para elaborar anteprojeto sobre tratamento de dados pessoais para fins de investigação de infrações penais. O documento foi entregue em novembro de 2020 e aguarda apresentação formal por algum parlamentar.
Ao tratar do tema no julgamento da 6ª Turma, classificou a tentativa de fazer a proteção integral dos dados, de maneira geral, como “tormentosa”, mesmo após a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Cita como exemplo prédios comerciais que exigem de seus visitantes informações pessoais e fotos. Quem não concede, não entra, o que configura invasão da privacidade.
“Estamos construindo um balizamento de proteção de dados que seja eficiente, mas que não iniba a utilização do que for necessário para esclarecimento de um crime — ainda mais um crime dessa envergadura, que precisa de uma mitigação [dessa proteção aos dados]. Não é que os fins justificam meios. Cada situação é uma situação”, apontou.
Para ele, a ponderação do Judiciário no conflito entre a necessidade das investigações e o acesso aos dados dos usuários do Google é necessária e razoável. “Se esses dados demonstrarem uma série de coincidências de localização, de horário, de contatos, isso é ônus da cidadania para apurar um crime dessa envergadura”, concluiu.
Fins x meios
“Gostaria de saber se todos vocês gostariam que seus acessos à internet fossem disponibilizados a todo mundo. Ninguém ia querer”, disse o ministro Sebastião Reis Júnior, ainda durante o julgamento da 6ª Turma, na terça-feira.
“Qual é o problema de saber onde eu estive? Estamos diante de um homicídio, de um crime”, rebateu o ministro Schietti.
“Então 1984 chegou”, treplicou Reis Júnior, em referência ao romance de George Orwell que traz a questão da vigilância onipresente configurada no big brother (grande irmão).
“É extremamente perigoso isso. Não sei onde vamos parar com esse tipo de investigação. Achar que verificar minha localização, listagem dos meus backups, histórico de navegação não é invadir minha privacidade, então eu não sei o que é. Não estamos apenas identificando IPs. Estamos indo muito mais além disso”, acrescentou.
Para Schietti, o mundo já vive a realidade narrada no livro de Orwell. O próprio Google fornece informações para fins comerciais, o que faz com que pessoas jurídicas tenham acesso a dados de usuários para oferecer serviços.
“De algum modo, nós já temos a nossa privacidade violada de maneira irrazoável e injustificada. Aqui, temos a possibilidade de que, talvez, algumas pessoas, dependendo do cruzamento das informações, possam ter a intimidade violada por meio de um segundo decreto que venha aprofundar as investigações posteriormente”, justificou.
A discussão não se encerrará na 6ª Turma ou mesmo no STJ. O Supremo Tribunal Federal vai julgar o tema em repercussão geral exatamente em recurso do Google referente ao caso Marielle. A relatora do RE 1.301.250 é a ministra Rosa Weber.
RMS 64.941
Danilo Vital – Conjur