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A Caixa de Pandora do Processo Penal

Por: Fabiano Pimentel-

Consta da mitologia que Zeus e seus irmãos passaram a disputar o poder com a geração dos Titãs. Prometeu era visto como seu inimigo e como uma verdadeira ameaça ao seu reinado. Sendo assim, para castigar os mortais, Zeus privou o homem do fogo (luz na alma)… Prometeu, então, furtou uma centelha do fogo celeste e a trouxe à terra para reanimar os homens. Ao descobrir tais fatos, Zeus decidiu punir tanto o ladrão quanto os beneficiados pelo furto. Prometeu foi acorrentado a uma coluna e uma águia devorava seu fígado durante o dia.
Para castigar o homem, Zeus ordenou a Hefesto que modelasse uma mulher semelhante às deusas imortais e que tivesse vários dons. Zeus enviou Pandora como presente a Epimeteu, o qual, esquecendo-se da recomendação de Prometeu (seu irmão) de que nunca recebesse um presente de Zeus, ainda assim, o aceitou.
Quando Pandora, por curiosidade, abriu a caixa que trouxera do Olimpo como presente de casamento ao marido, da referida caixa fugiram todas as calamidades e desgraças que até hoje atormentam os homens. Pandora ainda tentou fechar a caixa, mas era tarde demais: ela estava vazia, com a exceção da “esperança” que permaneceu presa junto à borda da caixa.
Todos esses fatos narrados na mitologia me fizeram lembrar o processo penal, mais precisamente o inquérito policial. Pode até parecer estranho a priori, e uma pergunta poderia ser feita pelos imediatistas mais curiosos: que relação existe entre a mitologia e o processo penal? Não podemos esquecer que a origem de todos os males foi a curiosidade. Aliás, o homem foi punido com a expulsão do Jardim do Édem por ser curioso e comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal…
Entretanto, a relação entre a caixa de Pandora da mitologia e o inquérito policial se mostra nítida quando analisamos sua natureza jurídica. Como se sabe, é uma peça meramente informativa e que apenas deve servir de fundamento para a propositura da ação penal, nada mais.
Sua finalidade é a busca, por meio de diligências, dos indícios de autoria e da prova da materialidade delitiva. Por ser um procedimento pré-processual, a colheita da prova não se sujeita ao contraditório e à ampla defesa, daí a origem de todos os males como na caixa de Pandora.
Se a prova não é colhida por meio do contraditório e da ampla defesa, por sua natureza sigilosa e investigativa, essa prova é maculada pela inquisitoriedade do inquérito, em flagrante contradição ao sistema acusatório.
Eis a relação do inquérito com os males da caixa de Pandora. Por “males” devemos entender as provas produzidas sem o crivo do contraditório e o prestígio ao sistema inquisitivo, sem o respeito às garantias previstas em nossa Carta Política.
Assim, qualquer contato do magistrado com os “males da caixa de Pandora”, aqui entendida como a prova produzida no inquérito policial, será prejudicial ao julgamento do mérito da ação principal, pois estaremos vivendo um ressurgimento do sistema inquisitivo que poderá ser estendido até o momento da sentença, quando em verdade, deveria ter sido “cremado”, depois do oferecimento da denúncia.
Deve-se excluir, por óbvio, a prova antecipada que não se pode repetir na fase processual. Muitas provas, pela urgência, devem ser colhidas de imediato e a prova antecipada é uma delas. Aqui não há problema, pois o contraditório é real. O mesmo fundamento é utilizado na análise da prova cautelar, entretanto, com maior prudência, pois em casos que tais, admite-se o contraditório diferido.
As demais provas colhidas no inquérito policial nem sequer devem ser lidas pelo juiz para que não seja contaminado com “os males da caixa”. Na visão de Aury Lopes Jr ., o inquérito deve desentranhado do processo, enquanto isso não se efetiva, os magistrados não devem ler o inquérito policial: “Enquanto não tivermos essa exclusão física, aos juízes conscientes só lhes resta fazer o seguinte: não ler o inquérito e, por decorrência lógica, não valorá-lo na sentença (nem mesmo a título de ‘cotejando’). Mas, sublinhe-se, o mais importante é: juízes, não leiam os autos do inquérito, julguem a partir da prova colhida em contraditório”.
A idéia do Professor Aury Lopes Jr., pode ser metaforicamente resumida na seguinte expressão: “juízes não abram a caixa de Pandora do processo penal”, nem mesmo com o objetivo de buscar esclarecimentos ou dirimir qualquer dúvida.
Esse é um grande risco. No momento em que o magistrado busca dirimir suas dúvidas com base nos elementos da “caixa de Pandora”, restará contaminado e acabará decidindo com base no sistema inquisitório.
Ora, se o sistema acusatório prestigia o “in dúbio pro reo” ao dirimir sua dúvida com base no inquérito, o magistrado acaba restringindo tal garantia e julgando com base no sistema inquisitivo.
Devemos ir além… Se por um motivo ou outro o Magistrado tiver contato com o inquérito policial deve declara-se suspeito para julgar o feito. Somente assim poderemos falar em imparcialidade, em isenção no julgamento do mérito da causa.
Isso é mais grave no Tribunal do Júri tendo em vista que os jurados não fundamentam suas decisões, julgam pelo “sentire” pelo que consegue perceber o nervo óptico, pela percepção dos sentidos.
Em que pese a firmeza de tal argumento, é comum a leitura de peças do inquérito policial, principalmente pelo Ministério Público que busca a qualquer custo e desesperadamente confirmar sua “tese acusatória”, que neste momento deveria chamar-se “tese inquisitória”.
O Magistrado prudente deveria esclarecer que qualquer referência ou leitura de peças do inquérito em plenário ensejaria a nulidade do Júri, pois os jurados estariam, de igual forma, contaminados com os “males da caixa de Pandora”.
E por que nada disso acontece na prática? Por que as desgraças da caixa de Pandora continuam a trazer calamidades para a ação penal?
Acho que falta coragem para quebrar paradigmas…
O inquérito policial é a caixa de pandora do processo penal. O magistrado, nem por curiosidade, deve abri-la. Pois se assim o fizer, todas as calamidades que foram produzidas no inquérito, ou seja, toda prova produzida sem o crivo do contraditório será espalhada pelo ar e, de forma virulenta, contaminará o Magistrado.
Ao tentar fechar a caixa, diz a mitologia, Pandora percebeu que caixa estava vazia.
Era tarde demais…
O mesmo ocorre com o Magistrado que tem contato com inquérito policial, todos os males já estão arraigados, ainda que inconscientemente, e amalgamados em sua alma.
Porém, como diz a lenda: a “esperança” permaneceu presa junto à borda da caixa. A esperança aqui é representada pela consciência do Magistrado em não valorar a prova do inquérito, não deixar contaminar-se com os males da caixa de Pandora do processo penal. Em Voltaire fica o nosso desejo: “Um dia tudo será excelente, eis a nossa esperança; hoje tudo corre pelo melhor, eis a nossa ilusão”.

Fabiano Pimentel – Advogado Criminal. Membro da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas. Mestrando em Direito Público pela UFBA. Professor de Processo Penal em Salvador/Ba.

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