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Supremo concede indevida elasticidade à prova indiciária

Nosso Código de Processo Penal dispõe, no artigo 239, que se considera indício “a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”. De início, dada a sinonímia entre circunstância e indício adotada, faz-se necessário esclarecer que circunstância é palavra que provém das expressões latinas circum e stare, significando estar em torno de algo, o que no caso é o fato, o acontecimento no qual há uma conduta caracterizadora de crime. A relação entre as circunstâncias e este fato será, portanto, o que constitui a prova indiciária, como forma de prova indireta, assim entendida como aquela na qual o fato que ser quer provar é deduzido de outros elementos mediante um processo lógico, enquanto a prova direta é aquela que se refere ao próprio fato, como a confissão, a perícia e o testemunho.

Muito se tem discutido para definir a diferença entre prova indiciária e presunção, uma vez que ambas constituem-se por uma relação lógica (observadas as condições da presunção legal adiante comentadas). Não obstante, pode-se diferenciá-las. Como é afirmado no próprio artigo supracitado, o indício é uma circunstância provada, isto é, realmente existente e que se relaciona de algum modo com o fato que se deseja provar, de modo que a existência do primeiro autoriza concluir pela existência do segundo, enquanto que a presunção é algo que deriva da ordem das coisas segundo as regras da experiência e da lógica.

Excetua-se, é claro, a presunção legal, cuja dedução parte de uma premissa preestabelecida em lei, podendo ser absoluta, caso em que apenas se verifica a adequação dos fatos a ela para que as consequências legais se verifiquem, ou relativa, quando comporta prova em contrário. Na presunção legal, a ocorrência de determinadas condições têm como necessária conclusão aquilo que a lei determina, podendo ser juris et jure (absoluta, que não permite prova em contrário, como por exemplo estupro de vulnerável, no qual o ato libidinoso com menor de 14 anos é presumido como estupro ainda que não exista o constrangimento)ou juris tantum (relativa, que comporta prova em contrário, como por exemplo a declaração de pobreza, que se presume verdadeira mas pode ser impugnada pela outra parte — parágrafo 1º do artigo 4º da Lei 1.060/50).

Muito se critica também o uso da palavra indução no aludido artigo 239 do CPP, porque a indução é amiúde definida como um processo pelo qual se apura uma regra geral a partir da recorrência de fatos no mundo circunstante, enquanto na realização da prova indiciária (da qual ora nos ocupamos) não se objetiva regra geral alguma, mas apenas a certeza da ocorrência de outro fato. E mesmo a reunião de vários indícios, como a multiplicidade de fatos, não é o mesmo que a reiteração desses mesmos múltiplos fatos. Logo, não se pode sacar daí nenhuma regra geral como autorizaria um legítimo processo indutivo.

Para os que não admitem a prova indiciária como indução, a exemplo de Tornaghi, o que resta configurado é uma dedução caracterizada pela comparação entre fatos ocorridos e uma regra geral oriunda da experiência e da lógica, servindo esta regra como premissa maior e o fato indiciário como premissa menor. Tal ideia, no entanto, apresenta problemas, pois a regra geral assumida no caso da prova indiciária expressa apenas um grau de probabilidade, o que nos leva novamente a uma ótica indutiva.

Esclarecendo: imagine-se que as regras da experiência indiquem que todo sujeito encontrado com o revólver junto ao cadáver e com os objetos da vítima é o assassino; a regra geral assim consubstanciada é na verdade uma condição apenas provável, pois, ainda que contenha elevado grau de probabilidade de ser verdadeira, admite a possibilidade contrária num grau de probabilidade complementar e isto é condição típica da indução, em que a conclusão não expressa algo insuscetível de ser falso, por isto mesmo comumente denominado como “certeza precária”.

O clássico problema da indução reside na possibilidade de generalização de regularidades observadas que autorizam certo grau de previsibilidade. Tal enfoque animou os grandes filósofos que se dedicaram ao problema, entre eles Hume, Bacon, Mill, Popper ou Goodman. Mas compulsando a obra de diversos processualistas, como Fernando da Costa Tourinho Filho, Julio Fabrini Mirabette, Eugênio Pacelli de Oliveira ou Eduardo Espínola Filho, pudemos constatar que estes, assim como aqueles que por eles são citados, não contemplam a indução nos mesmos moldes da filosofia. Para a maioria dos mencionados juristas a palavra indução é simplesmente explicada pela ideia de que se parte de fatos para chegar à conclusão, não importando a eles o rigor da definição e sua diferenciação para com a dedução, valendo simplesmente o entendimento de que é uma prova erigida pela lógica. Pacelli afirma desde logo tratar-se de um processo dedutivo; outros, como Sabattini, qualificam a prova indiciária como lógico-indutiva e aquelas obtidas pela presunção como lógico-dedutiva.

O problema que surge, no entanto, é saber até que ponto uma prova meramente indiciária pode sustentar uma condenação. Os autores, salvo uma ou outra exceção, afirmam não haver hierarquia das provas e ainda observam, via de regra, que a inclusão dos indícios entre as provas admitidas no processo penal, tal qual capitulado no referido artigo 239, permite que este tipo de prova justifique a condenação. Não obstante, o autor desta Enciclopédia faz uma observação capital no verbete indício:
“Os indícios não podem nunca suprir a prova da materialidade do fato (V.), que é provada pelos exames periciais, documentos e testemunhas.”

Para nós tal noção é um divisor de águas. Pela própria dicção legal declarada pelo artigo 239, indícios são definidos como a circunstância conhecida e provada que tem “relação com o fato”. Que fato é este com o qual se relacionam as circunstâncias indiciárias? Ora, é o fato que configura lesão a bem penalmente tutelado, a efetiva ocorrência da lesão que enseja a persecução criminal. É a existência, no mundo natural, do acontecimento no qual uma conduta pode ser qualificada como crime (e de aí que materialidade do fato ainda não é materialidade do crime, havendo muitos, inclusive juízes e promotores, que não compreendem que quando alguém se defende numa ação penal, não se defende de um fato, mas da qualificação jurídica dada a este). Resulta disto que não se pode provar a ocorrência do fato criminal por indícios; o fato, como materialidade do crime, é o antecedente necessário dos indícios que com ele se relacionarão para provar autoria. O artigo 414 do Código de Processo Penal sinaliza claramente esta orientação ao dispor que: “Não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado.”

Estampa-se com toda nitidez no dispositivo supra que a prova da materialidade do crime ocupa dimensão distinta daquela da autoria. Apenas a segunda pode ser realizada por meio de indícios, mas não a primeira. Não podem os indícios, por mais sugestivos que sejam, lançar no tecido da realidade o próprio acontecimento criminoso, que deve ser comprovado pela via da prova direta. Fosse diferente, o legislador teria capitulado como suficientes os “indícios de materialidade”. É patente que o fato comprovado que consubstancia a materialidade do crime é o antecedente necessário de toda prova indiciária, que só pode dizer respeito à autoria.

Por estas razões, não se pode deixar de experimentar perplexidade ao constatar que o STF, ainda julgando o famoso caso do mensalão quando da redação do presente verbete, venha a acolher como prova suficiente à condenação os indícios sem que esteja provada a própria existência do crime. A ministra Rosa Weber afirmou em seu voto que: “Nos delitos de poder, quanto maior o poder ostentado pelo criminoso, maior a facilidade de esconder o ilícito. Esquemas velados, distribuição de documentos, aliciamento de testemunhas. Disso decorre a maior elasticidade na admissão da prova de acusação.”

Nesta declaração, a ministra parece avalizar a inversão do ônus da prova e do princípio da presunção de inocência na medida em que, diante da impossibilidade de se provar diretamente a existência do ilícito é aceitável, a bem da acusação, que o delito seja presumido ou meramente indicado. Tal concepção autoriza que, diante da complexidade, a acusação possa pautar-se por meros espectros, numa tal eterização acusatória que impossibilita a defesa, pois, os acusados passam a defender-se de abstrações fantasmagóricas a respeito de acontecimentos e não de imputações juridicamente assentadas em fatos. Esta postura caminha no sentido de admitir denúncias genéricas sem a precisa identificação do fato delituoso, uma vez que literalmente passa a permitir “elasticidade” na consideração das circunstâncias quando vislumbra ocultação do delito, o que já seria, inclusive, uma petição de princípio, pois parte da certeza de que há o delito para então consentir no alargamento da prova que outorgará justamente esta certeza.

Ora, se a ministra afirma que o delito é oculto, já está admitindo a sua existência antes de prová-lo, de forma que a prova será apenas para evidenciar o que para ela já é evidente. Isto vai na contramão do princípio de presunção de inocência, assumindo o magistrado a presunção em sentido contrário para condescender com a acusação. Magistrados não têm de cooperar com a acusação, mas, ao contrário, sempre que esta não for capaz de apresentar as evidências, presumir a inocência do réu.

No verbete Ônus da prova na reforma do Código de Processo Penal já condenávamos esta postura do magistrado que determina diligências probatórias impregnado pela presunção contra o réu, ponderando que “a dúvida somente pode existir com respeito à prova produzida nos autos e não sobre o que não foi produzido contra o réu, pois, se o magistrado não foi abastecido pela acusação com elementos que lhe permitam formar sua convicção sobre a autoria ou participação do réu ou ocorrência da infração penal, enfim, se não tem certeza da inexistência do fato ou tem dúvida sobre sua existência, determinar ele a realização de diligências probatórias significa que já está imbuído de um espírito contrário à presunção de inocência e à aplicação da dúvida a favor do réu, tornando-se suplente da acusação e perquirindo elementos de imputação que cabem à acusação apresentar. Neste caso, o juiz simplesmente deve absolver o réu com fundamento em algum dos incisos I a VI do artigo 386 ou no artigo 415 do CPP”.

Não é preciso maiores comentários para sublinhar o perigo que é prosseguir nessa senda de modo a conferir ao Ministério Público o poder de cunhar denúncias genéricas inobservando o preceituado no artigo 41 do CPP, a seguir reproduzido:
“Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.”

Vale reproduzir também o verbete do autor desta Enciclopédia intitulado “denúncia vaga”:
“A denúncia não pode se referir a fatos genéricos, pois tem de descrever o fato delituoso com todas as suas circunstâncias. Nos processos políticos é muito comum a vaguidez da denúncia, dificultando sobremodo a defesa, pois é difícil alguém se defender de uma acusação imprecisa, informe, sem apontamento de fatos concretos. Tem-se discutido muito este assunto nos tribunais. Todavia, este processo de acusação é bastante antigo, e, curiosamente, ninguém se lembra de citar as páginas clássicas que Guizot escreveu sobre isso. Guizot condenava as acusações baseadas em “fatos gerais”. Ele denominava assim a acusação que construía um quadro do crime de forma genérica e inominada, utilizando-se a promotoria do seguinte processo: análise dos acontecimentos passados, estado da opinião pública, pedaços de conversas particulares, depoimento de pessoas que não tiveram a mínima relação com o fato, analogia de opiniões, etc. Não se faz uma instrução criminal, agita-se uma questão política. É o mesmo que dizer: o papismo é perseguido na Inglaterra, logo todo católico, pelo simples fato de sê-lo, fez o complô. Não se fala de fatos concretos, mas de intrigas surdas, projetos criminosos, facções, conspirações, etc. Não é um processo, é a exposição de uma política. É imenso o campo dos fatos gerais, é uma rede acusatória estendida sobre toda a sociedade. Merecem releitura as páginas maravilhosas de Guizot (capítulo IV da obra abaixo citada, intitulado “dos fatos gerais”). B. — De las conspiraciones y de la justicia política. Ed. Cruz del Sur Santiago de Chile, s.d.”

A posição do STF ao consentir em tal alarmada “elasticidade” da prova na acusação não quebranta apenas a importantíssima regra inerente ao devido processo legal constante no artigo acima citado, mas também as cláusulas garantidoras da liberdade e dos direitos individuais, inclusive a garantia da ampla defesa, pois é tarefa diabólica provar a inocência diante de uma acusação que se funda apenas no discurso e em indícios de materialidade, ficando esta como uma sombra, um espectro fantasmagórico do fato criminoso sem nenhuma evidência concludente, legando ao Estado um poder exorbitante a tomar fôlego na demagogia de justiça à custa do bode expiatório.

Uma histeria judicializada parece tomar conta da Nação ao acompanhar o julgamento do mensalão e, infelizmente, o STF parece ter-se contaminado dos ânimos ressentidos de populares ignorantes, jornalistas, políticos ou intelectuais tonificados pelo revanchismo, os quais dão o tom do momento. Ingenuamente alguns vibram com a ideia de um messianismo moral advindo deste processo como se a corrupção e a correlata impunidade de cinco séculos no Brasil fosse assim redimida, como num passe de mágica. No lugar da sonhada redenção, periga-se alargar a sombra do Estado sobre o pátio da liberdade, com prejuízo muito maior do que seria a própria frustração que a impunidade carreia, pois mais importante do que a expiação dos culpados é a preservação dos valores e normas que escudam a inocência e sem os quais vive-se perenemente sob o signo da ameaça.

Por Félix Soibelman

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