CALAR A ADVOCACIA É SILENCIAR A DEMOCRACIA
Por: Thiago M. Minagé e James Walker Júnior
Atualmente, de maneira crescente e preocupante, a advocacia, e principalmente, aqueles que exercem a defesa dos direitos de pessoas supostamente envolvidas em processos de lavagem de capitais, têm contra si a pseudo constatação de que “defendem criminosos” logo, também são criminosos.
Duas constatações decorrem do cenário político atual: (i) o fato de não raras vezes a incriminação ser precedida da censura pública, pelos meios de comunicação social; (ii) configurarem ações das agências públicas que propõem colmatar lacunas probatórias em casos rumorosos, valendo-se de argumentos morais que visam intimidar e cercear o exercício do direito de defesa[1]. Tendo como jargões permanentes: cidadão de bem; fim da corrupção; moralidade etc…
O que muitos não percebem é a cultura intimidatória que se cria ao inibir a atuação do advogado, principalmente em âmbito criminal, pelo modo como os profissionais das agências repressivas naturalizaram juízos morais como deveres jurídico-penais, provavelmente sem consciência (ou não) de que esta naturalização agride garantias constitucionais e prerrogativas da advocacia[2], de forma gritante, manipulando-se o inconsciente coletivo por parte da aplaudida mídia influenciadora.
Não custa nada lembrar que a Constituição descreve, em seu art. 133, que “o advogado é indispensável à administração da justiça. Tendo ainda o Estatuto da OAB reafirmado, em seu art. 2º, ser “o advogado indispensável a administração da justiça”, sendo privativo ao advogado “as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas”.
Muito bem, com a edição da Lei 12.683/2012, através do Artigo 9º, parágrafo único, inciso XIV, passou-se a exigir das pessoas sujeitas ao mecanismo de controle o dever de relatar às autoridades competentes as atividades econômicas e financeiras cujos recursos sejam provenientes de infração penal.
A referida norma elencou rol taxativo e, em momento algum, descreveu o exercicio da advocacia como sujeito ao respectivo controle autoritário.[3]
Ainda de acordo com a legislação em vigor sobre o tema, quando a Lei 12.683/2012 modificou a Lei 9.613/1998, trazendo a obrigatoriedade da implantação de mecanismos de controle interno, compliance (na forma do art. 10, III), em tese, inclusive ao advogado, esbarrou no dever de sigilo que o advogado deve guardar em razão dos fatos que tenha conhecimento no exercício de sua profissão.[4]
A pessoa, no caso o cliente, confia ao seu advogado informações que não serão por ele utilizadas para incriminá-lo, em razão da relação que com este guarda e do dever de sigilo do advogado que, caso violado, é criminalmente punível, nos termos do Artigo 154 do CP, in verbis:
Violação do segredo profissional
Art. 154 – Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.[5]
No exercicio da advocacia, o advogado pode atuar de duas formas: consultoria e contenciosa. O advogado atuante em consultoria apresenta pareceres, estudos e presta esclarecimentos jurídicos acerca de um tema com o objetivo de dirimir dúvidas para solução de problemas atuais, pretéritos ou futuros. Já o advogado atuante na área do contencioso é aquele que atua em nome do mandatário, através de instrumento de procuração, em questões já consideradas judicializadas ou às vias da judicialização.
No entanto, no que se refere ao advogado que atua em âmbito contencioso, não estaria submetido à obrigação de relatar às autoridades competentes informações que tenha conhecimento sobre atuações de seus defendidos. Isso porque, em sua atuação, não pratica atividades de assessoria, consultoria, aconselhamento ou assistência nos termos da lei, portanto, não haveria neste caso, fato típico.
Maiores questionamentos surgem quando da atividade de consultoria exercida pelo advogado, no entanto, algumas questões devem ser enfrentadas, tal como analisado por Gustavo Badaró e Pierpaolo Bottini, que afirmam, com base no principio da especialidade da atuação do advogado, que a mesma está revestida da obrigação de sigilo, prevista no Estatuto da OAB (Lei 8.906/1994) que nesse caso, haveria uma sobreposição ao suposto dever do advogado de comunicar às autoridades informações, conforme previsto na Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/1998). “A obrigação genérica de comunicação é afastada diante da especialidade do sigilo dirigida ao advogado”.[6]
Mesmo por que, podemos imaginar surreal, que “beira a insensatez pretender que o advogado vá denunciar as atividades de seus clientes às autoridades pertencentes aos organismos públicos que controlam as atividades econômico-financeiras do país”.[7]
Não podemos ignorar o fato de que, no exercício profissional, o advogado recebe informações revestidas pela relação de confiança com o cliente, seja para emissão de pareceres, aconselhamentos ou consultorias. O advogado não pode funcionar como um fiscal da lei e contribuir para a incriminação de seu cliente, revelando o que lhe foi confiado no exercício de sua profissão.[8]
A Diretiva 2001/97/CE da Comunidade Européia em seu item 17 dispõe que o advogado em atividade de consultoria jurídica ou representação judicial administrativa está exonerado da obrigação de comunicação, em razão de seu dever de sigilo.[9] O Estatuto da Ordem dos Advogados de Portugal também exige do advogado o dever de sigilo, deixando claro que tal dever deve ser guardado tanto nas relações que envolvam representação judicial quanto nas atividades extrajudiciais, ainda que não remuneradas, é o que se verifica em seu Artigo 87º, que trata do segredo profissional.[10]
Em Portugal, verifica-se discussão muito parecida com a que ocorre no Brasil, referente a imposição do dever de comunicação ao advogado por força da Lei de Branqueamento de Capitais (Lei 25/2008) versus o dever de segredo profissional. Verificando-se que este se sobrepõe a qualquer outra obrigação quando o advogado estiver exercendo os limites da profissão, isentando-o de realizar qualquer comunicação, seja no exercício da advocacia contenciosa, seja consultiva, é o que a Ordem dos Advogados de Portugal afirmou ao emitir parecer sobre o tema em 21 de março de 2013:
1- Os advogados, em circunstância alguma, deverão ficar sujeitos a qualquer dever de comunicação e de informação à Unidade de Informação Financeira (UIF) ou a qualquer outra entidade, ainda que através do Bastonário da respectiva Ordem, sobre quaisquer factos que lhes tenham sido revelados pelos respectivos clientes e que, de forma directa ou indirecta, possam ter por objecto actos ou operações de branqueamento de capitais e/ou de financiamento do terrorismo, sob pena de, por via do Direito Comunitário, se violar uma das garantias fundamentais de um Estado Direito Democrático que não pode prescindir do dever de segredo profissional imposto aos advogados para assegurar a confiança dos cidadãos e a defesa dos seus direitos e liberdades fundamenatais e dessa forma garantir a boa administração da justiça, através de um processo justo e equitativo.[11]
Quer na atividade contenciosa, quer consultiva, o advogado encontra-se exonerado do dever de comunicação, em razão do dever de sigilo e relação de confiança que deve guardar com seu cliente. No entanto, a proteção pelo sigilo não pode ser entendida de forma absoluta, o advogado deve guardar os preceitos éticos e agir de acordo com a legalidade.
Fato é que, o advogado, como qualquer outro profissional, deve se abster de participar ou contribuir com atos ilícitos”[12]. Nessa mesma linha é o pensamento de Pierpaolo Botinni quando afirma que, “o advogado não tem o dever de comunicar atos suspeitos de lavagem, mas tem o dever de se abster de contribuir com eles.”[13]
Há quem defenda que sendo o advogado conhecedor da origem ilícita do dinheiro com o qual será pago haveria a possibilidade de aplicação do dolo eventual, amoldado a teoria da cegueira deliberada ao advogado. Os honorários recebidos pelos advogados presumem-se de boa fé, sendo impossível que a cegueira deliberada seja aplicada para condenar o profissional.[14]
O advogado é essencial para a administração da justiça (Artigo 133, CRFB/1988), sendo direito do acusado ser assistido por defensor de sua escolha (Pacto de São José da Costa Rica, Artigo 8, 2, alínea d), portanto, deve o acusado ter liberdade na escolha de seu advogado, que em contrapartida, no exercício dos limites de sua profissão, não concorre para a prática da lavagem de dinheiro, mas promove a ampla defesa e o direito ao contraditório do acusado.
Na quadra político-jurídica contemporânea, o exercício da advocacia tem experimentado um enfrentamento autoritário, que denota um ideário de esvaziamento defensivo das garantias e direitos fundamentais, na perspectiva de um duelo maniqueísta que, para consecução de uma reversão política anômala, empreende duros golpes ao direito de defesa.
Nos dizeres do Professor Diogo Malan “Segundo NORBERTO BOBBIO e outros, o autoritarismo é originário da conjuntura na qual o poder político ainda é considerado legítimo por quem o detém, mas deixa de sê-lo por parte dos seus destinatários. Tal contexto tende a ensejar profundo conflito social, no qual tanto mandatários quanto subordinados sentem-se defraudados quanto a seus próprios valores e expectativas”.[15]
Exsurge a advocacia criminal como a cliente primeira dos atos de autoritarismo, resultado de um processo artificial e equivocado de hipertrofia do exercício de poder que, no atual cenário de esvaziamento do discurso democrático, significa ela, a advocacia criminal, uma ameaça aos (des)propósitos de consecução de atalhos deslegitimadores dos poderes republicanos democraticamente constituídos através do livre sufrágio.
Estabeleceu-se no Brasil uma odiosa dialética entre o exercício de poder jurisdicional versus o livre exercício da advocacia, onde o advogado é visto como um obstáculo consecutório de uma virada política abortiva da lógica democrática, tendo o poder judiciário, em todas as suas instâncias, personificado o mito de “salvador da pátria”, esquecendo-se que “Também o Supremo Tribunal é um juiz e, como todos os juízes, pode errar. Infelizmente os juízes erram tanto mais facilmente quanto mais se acreditam seguros de não errar”.[16]
Entendam, todo advogado carrega o estigma da defesa do criminoso, chegando ao ponto dele próprio ser equiparado a um criminoso, justamente por considerarem criminoso aquele eleito pelo processo de crimininalização. Se pobre: advogado de porta de cadeia; se rico: mafioso; honesto: duvido! Porém, inegável a tamanha importância de um advogado livre, independente e corajoso, para efrentar os desmandos estatais, na luta pelo direito que sequer é seu. Antes do exercício defensivo de qualquer cliente, o advogado defende o direito de defesa, garantia democrática da manutenção das liberdades individuais, pelo que, calar a advocacia criminal, é silenciar a própria democracia.
** Thiago Minagé é Doutorando pela UNESA. Mestre em Direito. Professor de Direito Penal da UFRJ/FND. Professor de Processo Penal da UNESA. Advogado Criminalista. (thiagominage@hotmail.com).
** James Walker Júnior é Doutorando em Ciências Jurídicas pela UAL – Universidade Autônoma de Lisboa. Professor de Processo Penal e Compliance em programas de pós-graduação. Presidente da ABRACRIM-RJ. Advogado Criminalista. (james@jwalker.adv.br – www.jwalker.adv.br).
[1] PRADO. Geraldo. Ações Neutras e a Incriminação da Advocacia – www.emporiododireito.com acessado em 28/03/2015.
[2] Ibid Idem.
[3] BRASIL. Lei 9.613, de 03 de Março de 1988. Capítulo V
Das pessoas Sujeitas ao Mecanismo de Controle
Art. 9º Sujeitam-se às obrigações referidas nos arts. 10 e 11 as pessoas físicas e jurídicas que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não:
(…)
Parágrafo único.
(…)
XIV – as pessoas físicas ou jurídicas que prestem, mesmo que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza, em operações:
a) de compra e venda de imóveis, estabelecimentos comerciais ou industriais
ou participações societárias de qualquer natureza;
b) de gestão de fundos, valores mobiliários ou outros ativos;
c) de abertura ou gestão de contas bancárias, de poupança, investimento ou de valores mobiliários;
d) de criação, exploração ou gestão de sociedades de qualquer natureza, fundações, fundos fiduciários ou estruturas análogas;
e) financeiras, societárias ou imobiliárias;
f) de alienação ou aquisição de direitos sobre contraltos relacionados a atividades desportivas ou artísticas profissionais
[4] COIMBRA, Marcelo de Aguiar e MANZI, Vanessa Alessi (Organizadores). Manual de Compliance: preservando a boa governança e a integridade das organizações. São Paulo: Atlas, 2010. p. 2. o dever de cumprir, de estar em conformidade e fazer cumprir as leis, diretrizes, regulamentos internos e externos, buscando mitigar o risco atrelado à reputação e o risco legal/regulatório.
[5] BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. DECRETO-LEI No2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Código Penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm. Acesso em: 22 fev. 2015.
[6] Ibidem. p. 143.
[7] BADARÓ, Gustavo Henrique e BOTTINI, Pierpaolo Cruz. op.cit. p.143.
[8] SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. op. cit. p. 104.
[9] DIRECTIVA 2001/97/CEDO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHOde 4 de Dezembro de 2001 que altera aDirectiva 91/308/CEEdo Conselho relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais Disponível. (17) Todavia, sempre que membros independentes de profissões que prestam consulta jurídica, legalmente reconhecidas e controladas, tais como os advogados, determinem a situação jurídica de um cliente ou representem um cliente no âmbito de um processo judicial, não seria adequado, ao abrigo da directiva, impor a esses profissionais forenses, a respeito dessas actividades, uma obrigação de notificarem as suas suspeitas relativas a operações de branqueamento de capitais. Há que exonerar de qualquer obrigação de declaração as informações obtidas antes, durante ou depois do processo judicial, ou no processo de determinação da situação jurídica por conta do cliente. Por conseguinte, a consulta jurídica permanece sujeita à obrigação de segredo profissional, excepto se o consultor jurídico participar em actividades de branqueamento de capitais, se a consulta jurídica for prestada para efeitos de branqueamento de capitais ou se o advogado souber que o cliente pede aconselhamento jurídico para efeitos de branqueamento de capitais.
[10] PORTUGAL. Ordem dos Advogados. Estatuto da Ordem dos Advogados. Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro de 2005. – Aprova o Estatuto da Ordem dos Advogados e revoga o Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de Março, com as alterações subsequentes. In diário da República. – S.1-A n.18 (26 Janeiro 2005), p.612-646. Alterada pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro e pela Lei n.º 12/2010, de 25 de Junho. Artigo 87.º
[11] PORTUGAL. Ordem dos Advogados. Parecer da OA – branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo. Disponível em: < http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=5&idsc=
115187&ida=124406> Acesso em: 17 fev. 15.
[12] BADARÓ, Gustavo Henrique e BOTTINI, Pierpaolo Cruz. op cit. p. 146
[13] CALLEGARI, André Luís e WEBER, Ariel Barazzetti. op. cit. p. 125.
[14] CALLEGARI, André Luís e WEBER, Ariel Barazzetti. op. cit. p. 120.
[15] MALAN, Diogo. Autoritarismo e Processo Penal Brasileiro. Matrizes Autoritárias do Processo Penal Brasileiro (Org. Geraldo Prado e Diogo Malan). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 8.
[16] CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. São Paulo: Conan, 1995. p. 74.