Uma crítica (sobrenatural?) ao Tribunal do Júri – Por Bruno Torrano
Por Bruno Torrano – 14/09/2016
Nunca fui fã do Tribunal do Júri. Como poderia? Ali, aparências, atecnia e retórica cega formam uma unidade capaz de punir o maior dos inocentes e absolver o pior dos culpados. Vejam: nem mesmo a analogia difundida nos corredores universitários, no sentido de que se trata de “um teatro”, é rigorosamente correta. Em qualquer peça teatral, há uma narrativa estruturada a ser seguida. Há um roteiro precedente. Há algum limite racional que demarca, de um lado, a trama – e suas possíveis interpretações –, e, de outro, as vontades e as expectativas do público. No Júri, sucede-se coisa diversa: trama e público confundem-se em um único corpo. É o público, por vezes impressionado, por vezes sonolento, quem decide qual deve ser o fim da tragédia. A justificativa? Um conceito caolho de “instituição democrática”, reduzido a um risível “counting heads without accountability”. O otimismo? Erros esdrúxulos podem vir a ser anulados pela segunda instância.
Não à toa, como consequência daquela força centrípeta que só uma convicção íntima inabalável pode gerar, nunca me dispus a participar de um Plenário do Júri nos meus anos inaugurais de advocacia criminal. Nada contra os advogados que não possuem essa objeção de consciência. Apenas não é minha praia. Ao me deparar com um pretenso cliente acusado de homicídio doloso, a resposta era sempre a mesma: “Vamos tentar a absolvição sumária ou a impronúncia. Se não for o caso, resta o tango argentino”.
Foi isso que L. ouviu de mim naquela manhã de terça-feira. Grisalho e de nariz pontudo, em 55 anos nem sequer um cafezinho havia tomado nas dependências de um Fórum Criminal. Na mesa de reunião do escritório, seus olhos lacrimejantes e suas pernas agitadas traíam a tentativa de dissimular o desespero e a desilusão que acometem aqueles que não mais sabem dizer até quando poderão acordar e respirar o ar fresco da rua.
“Essa denúncia é absurda, doutor”. Aparentemente, a vítima havia sido assassinada por queima de arquivo após uma festa do bairro. L. narrou os fatos e apontou as razões pelas quais aquela morte estava sendo imputada a ele. Após ouvir, pensei: eis o testa de ferro perfeito. Ingênuo, mal instruído, com voz débil, saúde precária, situação financeira caótica, poucos familiares e baixa capacidade argumentativa. E, claro, o bolo tinha uma baita cereja vermelha: dias antes L. havia se desentendido com a vítima, de quem era vizinho. O motivo? Som alto no período noturno.
Estudei o processo, fui silenciosamente ao bairro e conversei com vizinhos a respeito do meu cliente e do crime. L., de fato, parecia estar falando a verdade. Reuni as provas necessárias, arrolei testemunhas, tracei toda a estratégia defensiva. Cerca de três meses após nosso primeiro contato, chegou o dia da audiência de instrução. Encontrei-o no saguão do Fórum e notei que ele estava um pouco mais jovial e otimista. Esboçava sorrisos, batia-me às costas. Afirmei que havia chances concretas de impronúncia ou absolvição sumária. As testemunhas de acusação teriam grande dificuldade em aponta-lo como autor do crime. As de defesa eram uníssonas quanto à existência de um álibi. E o juiz era dos bons (leia-se: sabia que a extrema gravidade dos fatos narrados na denúncia não era pretexto para uma atitude antigarantista contra o réu, como se culpado fosse).
Faltavam cerca de trinta minutos para a nossa audiência. Sentamo-nos em uma longarina de três lugares que havia no corredor do Fórum. Um ao lado do outro, quase em frente à sala onde seria realizado o ato. L. parecia tranquilo. Quieto, limitava-se a observar o pouco movimento. Eu, concentrado, dava a última revisada no processo. Permanecemos algum tempo assim. Até que percebi, pelo canto dos olhos e pelo movimento do banco, algo relativamente estranho.
Sem nenhum motivo aparente, L. começou a se estapear nas pernas com ambas as mãos, em golpes intervalados. Levantei a cabeça e imaginei que os órgãos inferiores poderiam estar adormecidos. Mas meu cliente logo subiu as pancadas. Poucos segundos depois estava açoitando, de forma bem aleatória, o peito, o rosto, a nuca e eventualmente até os ombros e as costas. Olhei para o rosto dele. Com olhos cerrados, continuava virado para frente em uma aura de normalidade. Olhei para o outro lado do corredor na esperança de encontrar alguém que compartilhasse de meu espanto. Em vão. Aqueles que se sentavam à distância não haviam percebido. Lá estava eu, solitário com um indivíduo que se autoflagelava sem o menor sentido.
Quando tomei coragem suficiente, fiz a mais intuitiva das indagações: “Algum problema aí, meu querido?”. Sem se voltar para mim e sem interromper os tapas, L., que continuava de olhos fechados, abriu um sorriso e respondeu com voz tranquila: “As entidades, doutor. Não se preocupe. São as entidades”. Com as sobrancelhas contorcidas e sem disfarçar certa angústia, dei mais uma olhada no ambiente para certificar que tudo aquilo era real e, uma vez ciente de que não estava sonhando, tornei a perguntar: “Desculpe, não entendi. Entidades?”. “Sim, doutor. Fique tranquilo. Vai dar tudo certo. Elas estão com a gente”. Deixei a cópia dos autos repousando por um tempo em minhas pernas para liberar minhas mãos. Apertei com força descomunal o apoio de braços da longarina e respondi: “Ah… que bom…”. Houve mais algumas dezenas de segundos de tapas. E, enfim, fez-se o silêncio.
Confesso que entrei na sala de audiência meio pálido. Estava ainda sem entender aquele episódio. Cenas de filmes de horror passaram em minha cabeça. Gosto, mas nunca fui o espectador mais entusiasmado. Dessa vez, era eu quem havia participado de uma obra, se não inexplicável, ao menos absurda. L., no entanto, parecia mais relaxado e confiante do que nunca. Tive que me esforçar para retomar a concentração. Sentei-me. E começaram os trabalhos.
As alegações finais não foram orais. Semanas depois, veio a sentença. Absolvição sumária. Não tardei a ir ao Fórum para conversar com o promotor. Não tinha intenção de recorrer, disse-me. Estava claro que L. não havia sido o autor do crime. Aguardei o trânsito em julgado da decisão. Nunca gostei de dar “boas novas” sem saber ao certo se a situação jurídica poderia alterar-se no futuro. No processo penal, falsas esperanças podem potencializar desnecessariamente os traumas. Definida a questão, eu me senti feliz. L. era um sujeito um pouco estranho, mas gente boa. Liguei animado para comunica-lo. Falei que não tinha mais volta. Era isso. Bola pra frente. Emocionou-se ao telefone. Agradeceu por vários minutos. Fez alguns elogios. Disse que, quando eu precisasse de alguma obra, poderia chama-lo. Faria o serviço de graça. Nada sobre entidades.
A moral da história poderia ser: em instituições deficientes como o Tribunal do Júri, o sobrenatural pode, de vez em quando, dar uma mãozinha aos justos. Mas o que até hoje me atormenta é não saber se devo jubilar-me por ter, com meus esforços, conseguido a absolvição sumária de L., ou se devo atribuir a sorte de meu cliente a forças supra-humanas que me fogem completamente ao controle. Há, no entanto, algo indiscutível: é melhor ficar na dúvida. Não quero que as “entidades” de L. venham me responder. Muito menos se for à noite.
Bruno Torrano é Mestre em Filosofia e Teoria do Estado, Pós-graduado em Direito Penal, Criminologia e Política Criminal, Pós-graduando em Direito Empresarial, Assessor de Ministro no Superior Tribunal de Justiça. Autor do livro “Democracia e Respeito à Lei: Entre Positivismo Jurídico e Pós-Positivismo”..
Imagem Ilustrativa do Post: “The soul can not think without a picture.” ~ Aristotle // Foto de: Otto Kristensen // Sem alterações
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