Inquérito policial se sujeita a nulidades que contaminam o processo penal
Por Henrique Hoffmann Monteiro de Castro
A investigação policial, a par de sua importância, costuma ser campo fértil para reducionismos e generalizações, especialmente quando a discussão envolve vícios ocorridos no inquérito policial e suas consequências.
Não são incomuns as afirmações de que “irregularidades verificadas no decorrer do inquérito policial não contaminam a ação penal”,[1] “máculas ocorridas no inquérito não contaminam a ação penal”,[2] “vícios ocorridos no inquérito policial não se transmudam automaticamente para o processo”[3] e outras expressões sinônimas.
Esse raciocínio se baseia no fato de o inquérito policial consistir supostamente em procedimento apenas informativo, sem incidência dos postulados do contraditório e da ampla defesa. Nesse sentido, hodiernamente ainda prevalece que os defeitos na investigação policial consistem em meras irregularidades que não afetam a substância do ato nem sequer atingem o processo penal subsequente. Segundo essa visão, as imperfeições nos atos investigativos não ocasionariam nulidade, que é uma sanção aplicável ao ato defeituoso a fim de que seja privado de seus regulares efeitos.[4]
Todavia, é preciso investigar com mais profundidade o regime aplicável aos vícios do inquérito policial, e consequentemente as decorrências do seu reconhecimento.
Em primeiro lugar, o inquérito policial não produz exclusivamente elementos de informação, mas também provas:
A inquisitoriedade (…) não impede que o contraditório e a ampla defesa quanto a um elemento produzido pela Polícia Judiciária incidam de modo obrigatório, postergado para o processo penal. É o que ocorre com as provas cautelares e não repetíveis, elementos de convicção presentes na esmagadora maioria dos inquéritos policiais. Nesses casos, a atuação da defesa ocorrerá necessariamente, conquanto de maneira diferida (na fase processual), conferindo valor probatório a essas informações. (…) Logo, é totalmente equivocada a afirmação de que o “inquérito policial produz apenas elementos informativos” ou que o “inquérito policial é mera peça informativa”.[5]
Ademais, não faz sentido sustentar a primeira etapa da persecução criminal seja alheia às garantias constitucionais e à legalidade, como se fossem restritas à fase processual da persecução penal:
A natureza administrativa do inquérito policial não o blinda contra as garantias processuais próprias do sistema processual penal constitucional brasileiro. (…) A não transmissibilidade de um vício do plano administrativo ao judicial (…) significaria que haveria um nível de proteção de direitos fundamentais diferente conforme se trate de um e outro plano jurídicos (…). A alusão de que o inquérito policial não se subsume ao controle de legalidade equivale a uma declaração de presunção absoluta de sua regularidade. (,…) Imunizar esse ato contra qualquer declaração de invalidade é blindá-lo contra o exame de legalidade. Assim, o magistrado utilizaria os autos da investigação em sua sentença como elemento de motivação, mas paralelamente o acusado não poderia alegar sua invalidade.[6]
Não há como aceitar a versão que não admite vícios no Inquérito Policial, visto que a formalidade dos atos existem (eis o CPP, artigo 4 a 23) e a forma, como visto, mormente na esfera criminal, é garantia do cidadão perante os atos do Estado.[7]
Outrossim, existe uma extensibilidade processual dos atos policiais, o que significa que os elementos informativos (que podem ser embasar indiretamente uma condenação) e dos elementos probatórios (que podem sustentar diretamente uma condenação e cujo contraditório foi postergado para a fase processual) são incorporados na sentença como motivação (artigo 155 do CPP), convertendo-se os atos do inquérito policial em atos processuais decisórios. Por isso, os atos investigativos, ao ingressarem no plano processual, devem se submeter aos mesmos critérios de legalidade e constitucionalidade da própria sentença, a ela transmitindo suas virtudes e defeitos.[8]
Nesse panorama, assim como a tipicidade processual significa que a atividade estatal no processo penal é regulada através de formas que devem ser obedecidas,[9] existe uma tipicidade a ser respeitada no inquérito policial, seja em relação aos atos administrativos ordenados por autoridade própria do delegado (elementos informativos – ex: interrogatório), seja quanto às medidas cautelares determinadas pela autoridade policial após chancela judicial (elementos probatórios – ex: interceptação telefônica). Isso também significa que a teoria da ilicitude de provas é perfeitamente aplicável à fase policial da persecução penal (artigo 5º, LVI da CF e artigo 157 do CPP).[10]
Considerando não só a doutrina processual penal[11] mas também a administrativista[12], tendo em conta que os atos do inquérito policial são emanados de órgão do Executivo mas seguem a forma do CPP e da CF com necessidade de chancela judicial em alguns casos, os vícios podem ser classificados em:
a) irregularidades (ato irregular): imperfeições sem consequência – ex: não entrega da nota de culpa ao preso em flagrante que em seu interrogatório foi cientificado de suas garantias constitucionais, do motivo da prisão e dos nomes do condutor e testemunhas;
b) invalidações (ato anulável ou ato nulo): defeitos que acarretam a invalidação do ato, seja por nulidade relativa (prejuízo precisa ser comprovado – ex: decisão de indiciamento não fundamentada) ou absoluta (presume-se a perda – ex: interceptação telefônica sem autorização judicial);[13]
c) inexistências: deficiências que acarretam a não existência do ato, pois a imperfeição antecede a própria consideração sobre a validade do ato – ex: relatório de inquérito policial assinado não pelo delegado, mas pelo escrivão.
Importante sublinhar que o reconhecimento da nulidade do elemento informativo ou probatório produzido no inquérito policial pode ser feito, de ofício ou a requerimento, tanto judicialmente pelo magistrado em razão da inafastabilidade da jurisdição (artigo 5°, XXXV da CF), quanto administrativamente pelo próprio delegado em virtude do princípio da autotutela (súmula 473 do STF e artigo 53 da lei 9.784/99).
Pois então. O reconhecimento da nulidade não importa necessariamente no insucesso do processo penal. A imperfeição pode ser convalidada pela repetição, seja no inquérito policial (caso reconhecida pela autoridade de Polícia Judiciária antes do recebimento da denúncia), seja no processo penal (se detectada na fase processual pelo juiz), e o elemento viciado pode estar acompanhado de outras provas válidas.
A análise das nulidades do inquérito e do grau de contaminação do respectivo processo penal devem considerar a individualidade ou pluralidade do elemento informativo ou probatório viciado, o efetivo saneamento do vício e a derivação das demais provas, senão vejamos.
De um lado, o processo penal restará prejudicado se o elemento de convicção nulo for o único a amparar a denúncia e não puder ser produzido novamente, ou se apesar de existirem outras provas elas decorrerem exclusivamente do vestígio viciado (teoria dos frutos da árvore envenenada). De outra banda, a persecução poderá seguir seu curso normalmente se for possível convalidar o elemento informativo ou probatório, ou se apesar de não saneada a nulidade do vestígio ele estiver acompanhado de outros elementos que dele não derivarem.
Destaque-se ainda que o recebimento da denúncia não convalida todas as nulidades da fase pré-processual. Os vícios em elementos investigativos não serão superados pelo simples fato de o processo ter sido iniciado. Em outras palavras, o recebimento da denúncia não supera as irregularidades ocorridas no inquérito policial, e não exaure sua suposta função meramente informativa.
Não obstante as cortes superiores não admitirem com todas as letras o regime de nulidades do inquérito policial, em inúmeros julgados acabam por invalidar os atos investigativos praticados sem a observância das formalidades e garantias devidas. São exemplos: a) busca e apreensão domiciliar cumprida em endereço não especificado no mandado judicial; [14] b) quebra de sigilo de dados amparada exclusivamente em denúncia anônima; [15] c) interceptação telefônica executada por agentes não policiais civis ou federais;[16] d) interceptação telefônica iniciada por denúncia anônima desacompanhada de diligências preliminares.[17]
Nota-se que as próprias cortes superiores reconhecem que a investigação policial possui força probante e reconhecem nulidades, rechaçando uma imunidade dos atos policiais contra qualquer declaração de invalidade, ainda que não digam com essas palavras.[18] Assim agindo, entram em contradição com seus próprios julgados, que difundem o lugar-comum de acordo com o qual não há nulidade no inquérito policial.
Em adição, apesar de a legislação ainda não explicitar de maneira clara essa sistemática, evolução pode ser constatada no artigo 7º, XXI do Estatuto da OAB (Lei 8.906/94), segundo o qual é direito do advogado assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento.
O direito à prova, como os demais direitos fundamentais, não é absoluto, daí a inadmissibilidade das provas ilícitas (artigo 5º, LVI da CF). A imperfeita reconstrução da verdade não pode ser feita a qualquer custo, senão pelo respeito às garantias:
É preciso que se compreenda, definitivamente, que em um processo penal democrático e constitucional, forma é garantia e limite de poder. Á luz da legalidade processual, todo poder é condicionado e precisa ter seu espaço de exercício claramente demarcado. É uma decorrência lógica e inafastável da ‘tipicidade processual’. (…) Também não se pode esquecer que, com base nos atos do inquérito, se pode retirar a liberdade (prisões cautelares) e os bens de uma pessoa (medida assecuratórias), ou seja, com base nessa peça “meramente informativa” (como reducionistamente foi rotulada ao longo de décadas), podemos retirar o “eu” e “minhas circunstâncias” (Ortega y Gasset)…[19]
Por fim, vale ressaltar que, em que pese ser importante a observância da tipicidade dos atos investigativos, obviamente não é um fim em si mesmo. O reconhecimento de nulidades no inquérito policial deve ser feito cum grano salis, impedindo o formalismo estéril e o desvirtuamento da finalidade da investigação criminal, qual seja, servir como instrumento para a aplicação do direito penal. Se de um lado não se pode admitir um amorfismo que abandone a máxima da persecução penal de que forma é garantia, de outro norte é preciso evitar que a investigação criminal seja campo fértil para chicanas jurídicas.
Fonte: www.conjur.com.br