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Estupro de vulnerável e a contemplação lasciva

Por Fernando Capez

O crime de estupro

O estupro cometido contra pessoa sem capacidade ou condições de consentir, com violência ficta, deixou de integrar o art. 213 do CP para configurar crime autônomo, previsto no art. 217-A, sob a nomenclatura “estupro de vulnerável”. Seu teor é o seguinte: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. § 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. § 2º (Vetado.) § 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos. § 4º Se da conduta resulta morte: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos”.

Dessa forma, as condições acima aludidas passaram a integrar o tipo penal do art. 217-A, com sanções próprias, distintas das reprimendas impostas ao crime sexual praticado com violência real. Antes, o operador do direito necessitava lançar mão da ficção legal contida no art. 224 do CP para lograr enquadrar o agente nas penas do art. 213 ou do revogado art. 214 do CP. Agora, a subsunção típica do fato será direta no 217-A do CP.

Mencione-se que a criação do art. 217-A do CP foi acompanhada, de outro lado, pela revogação expressa do art. 224 do CP pela lei 12.015/09, mas, como veremos mais adiante, de uma forma ou de outra, todas as condições nele contempladas passaram a integrar o atual dispositivo legal, que não mais se refere à presunção de violência, mas às condições de vulnerabilidade da vítima, daí a rubrica “estupro de vulnerável”.

Há, contudo, que se fazer uma distinção. Vulnerável é qualquer pessoa em situação de fragilidade ou perigo. A lei não se refere aqui à capacidade para consentir ou à maturidade sexual da vítima, mas ao fato de se encontrar em situação de maior fraqueza moral, social, cultural, fisiológica, biológica etc. Uma jovem menor, sexualmente experimentada e envolvida em prostituição, pode atingir à custa desse prematuro envolvimento um amadurecimento precoce. Não se pode afirmar que seja incapaz de compreender o que faz. No entanto, é considerada vulnerável, dada a sua condição de menor sujeita à exploração sexual.

Por esse motivo, não se confundem a vulnerabilidade e a presunção de violência da legislação anterior. São vulneráveis os menores de 18 anos, mesmo que tenham maturidade prematura. Não se trata de presumir incapacidade e violência. A vulnerabilidade é um conceito novo muito mais abrangente, que leva em conta a necessidade de proteção do Estado em relação a certas pessoas ou situações. Incluem-se no rol de vulnerabilidade casos de doença mental, embriaguez, hipnose, enfermidade, idade avançada, pouca ou nenhuma mobilidade de membros, perda momentânea de consciência, deficiência intelectual, má formação cultural, miserabilidade social, sujeição a situação de guarda, tutela ou curatela, temor reverencial, enfim, qualquer caso de evidente fragilidade.

Quem é o vulnerável?

É o indivíduo menor de 14 anos ou aquele que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

Tanto o homem quanto a mulher podem ser sujeitos passivos do crime em exame.

Vejamos, agora, cada uma das circunstâncias legais previstas no art. 217-A do CP, de onde se depreende a vulnerabilidade da vítima:

a) Vítima com idade inferior a 14 anos. O menor de idade, pela imaturidade, não pode validamente consentir na prática dos atos sexuais. Verifique-se que o legislador incorreu em grave equívoco, na medida em que, se o crime for praticado contra a vítima no dia do seu 14º aniversário, não haverá o delito do art. 217-A nem a qualificadora do art. 213 do CP. Poder-se-á configurar, no caso, o estupro na forma simples, havendo o emprego de violência ou grave ameaça. Se houver o consentimento do ofendido, o fato será atípico, sendo a lei, nesse ponto, benéfica para o agente, devendo retroagir para alcançá-lo.

Vale notar que a tendência na doutrina era emprestar valor relativo a essa presunção (juris tantum), corrente essa minoritariamente partilhada pela jurisprudência. Assim, afastava-se essa presunção nas seguintes hipóteses: vítima que aparentava ser maior de idade; que era experiente na prática sexual; que já se demonstrava corrompida; vítima que forçou o agente a possuí-la; que se mostrava despudorada, devassa. Para essa corrente, a presunção não poderia ser absoluta, sob pena de adoção indevida da responsabilidade objetiva. O dispositivo em questão teria como intuito proteger o menor sem qualquer capacidade de discernimento e com incipiente desenvolvimento orgânico. Se a vítima, a despeito de não ter completado ainda 14 anos, apresentasse evolução biológica precoce, bem como maturidade emocional, não haveria por que impedir a análise do caso concreto de acordo com suas peculiaridades. Por exemplo: rapaz de 18 anos, que namorasse uma menina de 12 anos há pelo menos um ano, e com ela mantivesse conjunção carnal consentida. Se a garota tivesse um desenvolvimento bem mais adiantado do que sugerisse sua idade, e se ficasse demonstrado seu alto nível de discernimento, incomum para sua fase de vida, para essa corrente não haveria por que considerar o autor responsável por estupro, já que a presunção teria sido quebrada por circunstâncias específicas do caso. Entretanto, os Tribunais Superiores vinham adotando entendimento no sentido de que a presunção de violência seria absoluta quando o crime fosse praticado contra vítima menor de idade (juris et de jure). Assim, sustentava-se que o consentimento de menor de 14 anos para a prática de relações sexuais e sua experiência anterior não afastariam a presunção de violência para a caracterização do estupro ou do atentado violento ao pudor; da mesma forma, o comprovado concubinato do réu com a vítima menor de 14 anos não teria o condão de elidir a presunção de violência.

Note-se que, se houvesse erro de tipo, não haveria a configuração típica, uma vez que nesta o agente desconhece a idade da vítima, ignorando, assim, a existência da elementar típica. Por exemplo: sujeito inexperiente vai a uma casa noturna, na qual só podem entrar maiores de 18 anos; lá conhece uma prostituta muito bem desenvolvida fisicamente, combina um “programa” e com ela se dirige a um motel; após apresentarem seus respectivos documentos de identidade na portaria, chegam ao cômodo; tão logo se encerra o ato sexual (negocial), a polícia invade o quarto e prende o agente, uma vez que a moça tinha apenas 13 anos de idade. Duas alegações seriam possíveis: (a) a moça tem desenvolvimento físico e psicológico prematuro e já possui razoável experiência sexual, de modo que não haveria como o agente supor a menoridade; (b) o agente não sabia, nem tinha como saber, que mantinha conjunção carnal com uma menor, pois ela estava em um local onde só ingressariam maiores, apresentou documento falso e tinha físico de adulto. A segunda hipótese seria a do erro de tipo essencial, o qual excluiria o dolo e tornaria o fato atípico, diante da ausência de previsão legal. Não poderia incidir a agravante do art. 61, II, h (crime contra criança). A menoridade seria provada mediante certidão do registro civil.

Em recente decisão, de 26-8-2014, o ministro Rogério Schietti, da 6ª Turma do STJ, reformou decisão absolutória de primeira e segunda instâncias que absolviam o agente acusado de estupro de vulnerável diante de peculiaridades do caso concreto. Para o STJ, a presunção de vulnerabilidade de menor de 14 anos é absoluta e não admite prova em contrário nem sequer pode ser relativizada.

b) Vítima que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato. O art. 224, b, do CP fazia menção à vítima alienada ou débil mental e exigia que o agente devesse conhecer essa circunstância. O art. 217-A, § 1º, do CP abrangeu a referida hipótese, mas também incluiu a vítima enferma, que, na realidade, já era tutelada pelo art. 224, c, do CP. Deve-se provar, no caso concreto, que, em virtude de tais condições, ela não tem o necessário discernimento para a prática do ato. Cumpre, portanto, que sejam comprovadas mediante laudo pericial, sob pena de não restar atestada a materialidade do crime, por se tratar de elementar, a qual integra o fato típico. Vejam que, pela própria redação do tipo penal, não há como não se exigir uma análise concreta acerca da caracterização ou não da situação de vulnerabilidade da vítima.

c) Vítima que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. Trata-se de hipótese que já constava do art. 224, c, do CP. Por vezes, a vítima não é menor de idade nem tem enfermidade ou deficiência mental, mas, por motivos outros, está impossibilitada de oferecer resistência. Exemplos: embriaguez completa, narcotização etc. A presunção aqui também era relativa, e devia ser provada a completa impossibilidade de a vítima oferecer resistência. Cremos que, com as modificações legais, tal necessidade permanece, pois não há como não se exigir a comprovação no caso concreto de que a vítima não tenha condições de oferecer qualquer oposição.

A contemplação lasciva caracteriza o tipo penal?

Para o STJ, sim!

Eis a decisão do STJ:

A conduta de contemplar lascivamente, sem contato físico, mediante pagamento, menor de 14 anos desnuda em motel pode permitir a deflagração da ação penal para a apuração do delito de estupro de vulnerável. Segundo a posição majoritária na doutrina, a simples contemplação lasciva já configura o “ato libidinoso” descrito nos arts. 213 e 217-A do Código Penal, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido. (STJ. 5ª Turma. RHC 70.976-MS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 2/8/2016 (Info 587).

Entende-se por contemplação lasciva o ato de, sem tocar na vítima, mesmo a distância, satisfazer a sua libido com a nudez alheia.

Quando essa contemplação lasciva é realizada junto com o ato de constranger a vítima, teremos o tipo penal contra dignidade sexual.

E se a vítima se enquadra no conceito legal de vulnerável, estarão preenchidas todas as elementares típicas do crime de estupro de vulnerável – art. 217-A.

Reza o tipo penal:

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

Por certo, a contemplação lasciva não se enquadra na expressão conjunção carnal, mas, de acordo com a maioria da doutrina e do STJ, pode ser caracterizada como ato libidinoso diverso da conjunção carnal e, nesse caso, não se exige contato físico entre ofensor e vítima para fins de tipificação.

Realizada a adequação típica, o fato de o agressor não ter tocado na vítima não serve para isentá-lo de responsabilidade criminal, mas pode influenciar a dosimetria da pena, respeitando a proporcionalidade entre um infrator que tocou na vítima e o outro que apenas a contemplou lascivamente.

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*Fernando Capez é Procurador de Justiça licenciado, Deputado Estadual, e Presidente da Assembleia Legislativa do Estado de SP. Mestre em Direito pela USP e doutor pela PUC/SP. Professor Honorário da Universidade Presbiteriana Mackenzie, da Escola Superior do Ministério Público e de Cursos Preparatórios para Carreiras Jurídicas. Presidente do Colégio de Presidentes das Assembleias Legislativas do Brasil.

Fonte: http://www.migalhas.com.br

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