Porque estou me afastando do Ministério Público
Por Afranio Silva Jardim – 14/02/2017
É uma realidade que lamento muito. Foram trinta e um anos “vivendo” intensamente a ascensão desta importante instituição, principalmente durante os debates que antecederam a Constituição de 1988. Foram dezesseis anos lotado em uma promotoria de justiça junto ao quarto tribunal do júri da capital do Estado do Rio de Janeiro. Ninguém passa tantos anos atuando perante esse tribunal popular “impunemente”. Foram vários anos assessorando diversos Procuradores Gerais e participando em vários eventos sobre as reformas processuais em nosso país, dentre tantos outros momentos saudosos.
Na minha avaliação, o Ministério Público brasileiro acompanhava a evolução democrática da nossa sociedade. Era plural e alimentava em seus membros uma visão mais crítica dos problemas sociais. O estudo e a cultura de seus membros era algo incentivado de forma bastante eficiente.
Estou aposentado há quase sete anos. Natural que tenha mudado. Tudo muda. Não advogo, continuo lecionando Direito Processual Penal e lendo muito. Mudei. Mantenho os princípios que direcionaram a minha trajetória de vida, tudo relacionado com a preocupação constante com a justiça social e com o ideário de uma sociedade socialista e democrática.
Acho que o Ministério Público também mudou. Tudo muda. Entretanto, parece-me que está sendo contaminado pelo recrudescimento de uma perspectiva mais “punitivista” que reina, atualmente, em nossa sociedade, muito influenciada por uma mídia despreparada e perversa.
Enfim, eu e o Ministério Público estamos caminhando para lados opostos. O problema é que, algum dia, não mais estarei aqui e o Ministério Público sobrevive, ele é perene …
Abaixo, coloco alguns breves trechos onde justifico este distanciamento, até mesmo doloroso para um “eterno” promotor que sempre e constantemente pugnou por justiça e tolerância. Para nós, principalmente no Tribunal do Júri, mais importante do que “o fato praticado pelo homem” sempre foi “o homem que praticou o fato delituoso”.
Vejam a seguir: a) uma crítica a um recente parecer do atual Procurador Geral da República, o qual justifica as reiteradas e abusivas conduções coercitivas; b) uma solicitação que fiz aos ex-colegas para ser desligado do grupo de Procuradores de Justiça do E.R.J., mantido através da internet. Tal solicitação é, posteriormente, reiterada por mim, conforme textos que transcrevo abaixo e que justificam, ao menos em parte, o que acabo de esclarecer acima.
1 – A CONDUÇÃO COERCITIVA DO RÉU OU DO INDICIADO.
Discordo inteiramente do recente parecer do Procurador Geral de República sobre a interpretação e vigência da regra do art.260 do Cod. Proc. Penal, cujo teor pode ser acessado através do seguinte link: http://s.conjur.com.br/dl/pgr-conducao-coercitiva.pdf
Oportunamente, faremos um estudo mais técnico sobre esta questão jurídica. Por ora, apresentamos uma análise superficial, tendo em vista a ausência circunstancial de mais tempo.
1.1 – Se o réu ou indiciado tem o direito de ficar calado, por que conduzi-lo contra a sua vontade, à presença do Delegado de Polícia? Seria para tomar um “cafezinho” com a autoridade policial?
1.2 – É muito controvertido o chamado “poder geral de cautela” no processo penal. De qualquer forma, se o conduzido não está obrigado a falar, a decisão judicial deveria dizer, expressamente e fundamentadamente, que outra prova a condução coercitiva teria como objetivo trazer aos autos do processo.
1.3 – Não vale o argumento de que é uma medida menos gravosa do que as prisões provisórias. Se uma dessas prisões fosse cabível, deveria ser decretada, mediante devida fundamentação. A condução coercitiva jamais impediria que o conduzido praticasse quaisquer dos atos que legitimariam tal prisão cautelar pois, após “tomar o cafezinho com o delegado”, ele volta para a sua casa.
A prevalecer este entendimento, sob o pretexto de não prender o réu ou o indiciado, o Estado poderia quase tudo. Sempre diria: isto é menos gravoso do que sua prisão… Eu poderia (deveria, então) prendê-lo, mas como “eu sou bonzinho”, lhe crio outras restrições e constrangimentos, embora não previstos em lei. Seria uma forma cínica de abandonar o princípio da legalidade.
1.4 – O réu ou indiciado não pode ser impedido de assistir à busca domiciliar em sua residência (até para fiscalizá-la) ou de se comunicar, previamente, com seus advogados ou mesmo outros réus ou investigados. O cidadão em liberdade pode falar com quem quer que seja …
1.5 – Acho até que não se trata de inconstitucionalidade do art. 260 do Cod. Proc. Penal. Entendo que ele foi revogado pela Constituição de 1988, sendo incompatível com o sistema processual acusatório e várias outras regras e princípios constitucionais.
1.6 – Nada disso vale para a condução coercitiva das testemunhas, que têm o dever de prestar depoimentos. Calar a verdade é crime de falso testemunho (como mentir também).
1.7 – De qualquer forma, pela regra processual mencionada, a condução coercitiva, em qualquer hipótese, pressupõe uma intimação prévia e que ela tenha sido desatendida.
Acho incompatível com o Estado Democrático de Direito que se permita acordar uma pessoa às seis horas da manhã (para mim, já uma tortura …) e forçá-la, até fisicamente, a comparecer a uma delegacia, em um carro da polícia, tudo na frente dos filhos, cônjuge e vizinhos. Um constrangimento absurdo, até por que ele é presumido inocente pela Constituição.
Nem cabe aqui elencar outros danos que isto pode causar a esta pessoa. Imagine perder uma viagem ao exterior, onde tinha um relevante compromisso, apenas para tomar um cafezinho com o Dr. Delegado …
Na democracia, os fins não podem justificar os meios. Não é valioso postergar garantias conquistadas pelo nosso processo civilizatório, criando instabilidade e insegurança na população, apenas para mais rapidamente tentar obter uma prova. Dias sombrios estes nossos…
2 – ESTOU PEDINDO PARA SAIR
Solicito ao colega Paredes que proceda ao meu desligamento deste grupo de contato entre Procuradores de Justiça via internet.
Esta decisão decorre da avaliação pessoal em relação às minhas poucas intervenções nesta “lista”. Posso estar errado, mas estou seguro de que o meu pensamento sobre diversas questões jurídicas, sociais e políticas é absolutamente minoritário entre ex-colegas do Ministério Público do nosso Estado. Sinto certo desconforto em saber que não sou desejado aqui, muito em decorrência de minha visão crítica sobre o corporativismo que contagia as nossas relevantes instituições que atuam no chamado “sistema penal de justiça”.
Quero dizer que minhas concepções acima referidas me acompanharam em todos os meus 31 anos de Promotor e Procurador de Justiça. Ao me aposentar, com 60 anos, tinha dedicado mais da metade de minha vida ao Ministério Público, vivenciando-o intensamente e dele não me afastando em momento algum, sequer para tratamento de saúde. Se critiquei e critico esta “nossa” instituição é porque gosto dela e acredito que muito pode contribuir para a nossa sociedade.
Sempre achei que o Direito e as suas instituições não são um fim em si mesmos, mas meios engendrados pela sociedade democrática para viabilizar o “bem comum”, para atender aos interesses de nossa população. Não foi por outro motivo que, há décadas passadas, perdi a eleição para a nossa Amperj por ter “denunciado”, publicamente e em congresso jurídico, que juízes, membros do Ministério Público e parlamentares só recolhiam imposto de renda sobre metade de seus vencimentos, pois parte deles era “disfarçada” como “verba de representação”. Fui honesto e ético e, por isso, não fui bem aceito pelos colegas. Esta foi a primeira das poucas decepções que tive na minha vida funcional.
Por outro lado, sempre foi pública a minha preferência pelo chamado “pensamento de esquerda”, preocupado que sempre fui pela justiça social. Neste particular, assim como a nossa sociedade, a maioria dos membros do Ministério Público se distancia, cada vez mais, de uma visão e concepção crítica dos problemas políticos e sociais de atualidade.
No plano jurídico, como professor de Direito Processual Penal por mais de 36 anos e como membro do Ministério Público, jamais tive uma postura liberal e sempre sustentei que o processo devesse ter efetividade e fosse um método democrático de aplicação do Direito Material ao caso concreto. Entretanto, o processo deve pressupor não apenas regras jurídicas, mas também os valores éticos cunhados pelo nosso longo processo civilizatório. Como costumo dizer, não é valioso punir a qualquer preço.
Julgo ser de bom alvitre que o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Polícia e as Forças Armadas não tomem partido na reconhecida divisão que, infelizmente, está tomando conta de nossa sociedade, muito em razão da massiva “parcial propaganda” da grande mídia. Evidentemente, individualmente, é até desejável que todos tenham posições claras sobre as suas opções ideológicas, mas não devem “contaminar” as suas instituições de Estado.
Enfim, acho que este já não é mais o “meu” Ministério Público, daí por que o meu “desconforto” de aqui debater com os atuais ex-colegas. Continuarei a minha luta por um Ministério Público mais democrático em outras trincheiras…
Destarte, da lista me despeço, desejando felicidade pessoal a todos os membros deste grupo qualificado.
Rio de Janeiro, 07 de dezembro de 2016
3 – CONTINUO PEDINDO PARA SAIR.
Agradeço aos poucos colegas que, de alguma forma, se solidarizaram com a minha participação aqui neste grupo de Procuradores de Justiça.
Assumindo o risco de cair no chamado “lugar comum”, julgo que o mais importante não é a quantidade, mas sim a qualidade.
Continuo achando que sou “demais” aqui no grupo, até por que já aposentado. Embora não exerça a advocacia, já não tenho tantos interesses e visões em comum com os colegas que estão na ativa.
Não saio magoado, pois já me acostumei a ser minoria. Não saio da “luta” enquanto a idade e saúde permitirem que eu possa me expressar de alguma forma. Continuarei em outros “locais de fala”, como a universidade, palestras, livros e a minha coluna semanal no site “Empório do Direito”.
Por tudo isso, posso dizer que não é uma despedida e que sempre estarei pugnando por um Ministério Público mais culturalmente preparado, mais democrático, mais generoso com a desgraça alheia e que não se deixe levar pela pressão popular simplista, acreditando que o “sistema penal” resolve todos os males de nossa sociedade.
Acho que a “espetacularização” do processo penal insere a “nossa” instituição em uma das divisões ideológicas que fomenta a “cultura do ódio” em nossa população. Alguns membros do Ministério Público de nosso país, segundo minha avaliação, estão “deslumbrados” com a notoriedade que a parceria com a grande mídia lhes está granjeando. Isto não é bom para a “nossa” sociedade. Hoje amados, amanhã, odiados…
Quem conhece a minha trajetória de 31 anos no Ministério Público deste Estado, bem como minha vida acadêmica, sabe que nunca fui adepto de um direito penal e processual liberais e sequer aceito o rótulo de “garantista”.
Entretanto, o Tribunal do Júri me despertou uma visão mais humanista da nossa atuação, me fazendo perceber, mais claramente, que estamos em torno da desgraça das pessoas e de seus familiares. Por isso, nunca tive “raiva” dos réus e nunca postulei contra eles nada mais do que entendia ser justo. Peço desculpas para dar um exemplo: não me conformo com a subversão da teoria do delito para tratar homicídios culposos como sendo dolosos (dolo eventual).
Um conselho de um velho colega: não se deixem contaminar por um “espírito” exageradamente persecutório, até por que todos nós, algum dia, já cometemos crimes. Procurem sempre se imaginar no lugar do outro; vejam as questões também da ótica do adversário. Sempre é possível que não estejamos sendo justos e JUSTIÇA É O QUE IMPORTA.
Enfim, mais uma vez, peço licença para colocar, abaixo, breve texto que enderecei a vários Promotores de Justiça (muitos meus ex-alunos), quando recebi deles grandes manifestações de afeto e consideração, no mês de minha aposentadoria, ocorrida há quase sete anos.
Grande abraço para vocês todos.
“Colegas, tomando conhecimento das carinhosas manifestações em relação à minha aposentadoria, através da minha filha Júlia, venho expressamente agradecer tais gestos de apreço, não podendo responder a cada um individualmente.
Foram 31 anos de pleno exercício das minhas funções de membro do Ministério Público, antecedidos por 5 anos de advocacia na área cível. Ao chegar aos 60 anos de idade, concluí que era chegada a hora de dedicar os meus 15 anos restantes de “vida útil” (se tanto) a outros afazeres prazerosos.
Confesso que tal decisão veio fortalecida pela minha total decepção com a forma pelos quais os julgamentos são realizados pela maioria das Câmaras Criminais do nosso Tribunal de Justiça. Assisti e consegui impedir que processos de 3 ou 4 volumes fossem julgados em cerca de 20 segundos. Mal dava tempo para localizar a cópia do parecer da Procuradoria de Justiça para a nossa sustentação oral. Ao invés de relatório do processo, desembargadores se limitam a ler a ementa de seu voto e os demais o acompanham sem conhecimento do que estão julgando. Mesmo assim, já dado o voto, eu fazia a sustentação oral, contra a má vontade de todos. Ao menos lia as razões do colega de primeiro grau. Briguei (literalmente) muito e o desgaste foi inevitável. Diante de nosso inconformismo, sessões chegaram a ser interrompidas. Ao final, percebi que alguns desembargadores já não mais me ouviam, não prestando atenção à minha sustentação oral, em um total desrespeito. Nada obstante, não esmoreci até o último dia, tendo a sessão terminado por volta das 11:00 horas da noite. Saí como entrei: de cabeça erguida.
É preciso que haja uma mudança radical na forma de atuar dos Procuradores de Justiça, com a criação de órgãos de atuação específica com legitimação para interpor recursos especiais e extraordinários. Mas isto é tema para outros embates.
Aqui, gostaria de dizer que “a luta” continua e a minha aposentadoria não significa acomodação e resignação. Não vou advogar, mas procurarei outros “locais de fala” para continuar lutando em prol de prestação jurisdicional mais qualificada e, principalmente, em prol da necessária e indispensável justiça social, pressuposto de tudo o mais.
Continuo achando que, dentre os meios institucionais, o Ministério Público tem muito a contribuir para o melhoramento de nossa sociedade.
Ao me despedir do Ministério Público, sinto a grande satisfação de ter cumprido, fielmente, uma promessa que fiz a mim mesmo quando nele ingressei: jamais atendi, ainda que indiretamente, a qualquer “pedido” para beneficiar uma parte em algum processo. Como advogado, sempre ficava indignado com o conhecido tráfico de influência em nosso meio jurídico. Cumpri integralmente este “voto de dignidade” e saio ileso.
Peço a vocês que ficam que não esmoreçam nunca, resistam sempre à pressão do sistema. Se algum dia precisarem deste velho colega, tenham a certeza de que podem me chamar que “eu caio dentro”. Não tenham medo de nada, ou melhor, só tenham medo de ter medo. Felicidades para vocês. Afranio Silva Jardim.”
Rio de Janeiro, verão de 2017
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Afranio Silva Jardim é professor associado de Direito Processual Penal da Uerj. Mestre e Livre-Docente de Direito Processual (Uerj). Procurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público do E.R.J.
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Fonte: http://emporiododireito.com.br