Operação Carne Fraca e o sistema de gestão de Compliance/Antissuborno
Por James Walker Jr[1] e Alexandre Fragoso[2]
Na última sexta-feira, dia 17 de março de 2017, a sociedade brasileira mais uma vez foi surpreendida pela “maior operação policial já deflagrada em território nacional pela Polícia Federal” envolvendo cerca de 1100 policiais em seis estados e no Distrito Federal, trata-se da denominada Operação “Carne Fraca”, envolvendo as grandes empresas na área de alimentos, tais como BRF, proprietária das marcas Sadia e Perdigão e o grupo JBS, que engloba a Friboi e Seara.
Nessa operação foi desarticulada uma suposta organização criminosa, composta por executivos de empresas, funcionários e fiscais agropecuários federais, resultando na expedição de vinte e sete pedidos de prisão preventiva, onze de prisão temporária, setenta e sete de condução coercitiva e cento e noventa e quatro de busca e apreensão.
Segundo informações da Polícia Federal, mas ainda não comprovadas, o modus operandi da organização era a utilização de estratégias de redução do custo de produção dos produtos, como: injetar água na carne para aumentar seu peso; maquiagem de carnes com uso de ácido ascórbico, que em altas doses podem provocar câncer; utilização de papelão nas carnes moída, bem como a utilização de carne de cabeça de porco na produção de linguiças, que é vedado por lei.
Esse suposto esquema fraudulento dos grandes frigoríficos brasileiros somente teria sucesso em virtude do pagamento de vantagens indevidas para os fiscais agropecuários, sendo que segundo apurado nessas investigações preliminares, parte do dinheiro adquirido com o pagamento de propinas era destinado à partidos políticos.
Os atores desse cenário são: JBS, a maior empresa de proteína do mundo, duzentos e trinta e quatro unidades de produção, empregando duzentos e trinta mil pessoas, exportando para cento e cinquenta países, como Estados Unidos, Alemanha e Japão, sendo a referência global em qualidade na produção de proteína, com mais de dois mil profissionais dedicados ao controle de qualidade de seus produtos e a BRF, uma das maiores companhias de alimentos do mundo com mais de trinta marcas, incluindo a Sadia e Perdigão, sendo seus produtos comercializados em mais de cento e cinquenta países, possuindo cento e cinco mil funcionários em cinquenta e quatro fábricas em sete países(Argentina, Brasil, Emirados Árabes Unidos, Holanda, Malásia, Reino Unido e Tailândia)
A sociedade brasileira, perplexa com a possibilidade de adulteração em produtos alimentícios utilizados em larga escala por toda a população, reage e indaga, como poderia esse esquema de fraudes, envolvendo frigoríficos e agentes públicos ter passado despercebido pelo sistema de gestão de Compliance/Antissuborno dessas mega organizações?
Trata-se de organizações que exportam fortemente para os Estados Unidos da América e União Européia, mercados que adotam rigorosas práticas de compliance em suas atividades como o FCPA (USA) e UK Bribery.
A resposta passa pela avaliação da efetividade de dois pilares fundamentais de um programa de compliance: o comprometimento do Conselho de Administração ou Alta Direção com a política de compliance e o monitoramento ou supervisão do sistema de gestão de compliance.
O comprometimento do Conselho de Administração ou Alta Direção dessas organizações com uma efetiva política de compliance exige a extensão ao grau de adesão, onde o compliance deverá ser incorporado nas políticas e procedimentos operacionais da organização, sendo fundamental que o responsável pela função de compliance (compliance officer), disponha de elevado grau de autonomia e independência em relação aos demais setores da administração, sendo responsabilidade da Alta Direção ou Conselho de Administração, assegurar à função de compliance (compliance officer), essa independência, para agir e reportar, de forma livre e autônoma, e que a sua atuação não seja comprometida por conflito de interesses.
Haveria conflito de interesses entre a Alta Direção dessas organizações, objetivando a maximização dos lucros, permitindo-se, com isso, a fraude na produção de alimentos e a mitigação de um efetivo programa de compliance?
A supervisão ou monitoramento dos riscos ou das obrigações de compliance, referentes às atividades desenvolvidas pelas organizações, visam garantir que os processos e procedimentos de conformidade se desenvolvam de forma efetiva, sendo que o monitoramento dos riscos é um dos pilares fundamentais de um programa de compliance, constituindo-se em uma das principais ferramentas utilizadas pelo compliance officer para mitigação e correção de incidência de não conformidades.
No caso concreto, pelas investigações desenvolvidas pela Polícia Federal, verificou-se, em tese, uma falha nesse sistema de monitoramento de riscos, que permitiu a prática de não conformidades, tanto no âmbito de compliance, suposta comercialização de produtos de baixa qualidade em não conformidade com os padrões exigidos pela Vigilância Sanitária, como no de antissuborno, possível pagamento de propinas à agentes públicos.
As consequências desse non compliance surgiram de imediato com perdas financeiras bilionárias, visto que no dia 17 de março de 2017, dia da deflagração da Operação Carne Fraca, as ações da JBS caíram 10,79% e as da BRF recuaram 7,25% e as da MAFRIG, 2%, sendo certo que perderam juntas, em um só pregão, R$ 5,9 bilhões de valor de mercado, passando a valer cerca de R$ 62,9 bilhões, fazendo com que o índice IBOVESPA encerrasse o pregão com queda de 2,39%.
Além de perda financeira, o escândalo abalou a imagem do país no exterior, um dos maiores exportadores de carnes do mundo e grande player do setor de agronegócio, o que pode levar à criação de barreiras para a exportação de produtos brasileiros, caracterizando-se uma inquestionável perda reputacional para o Brasil e para as organizações envolvidas, além das repercussões negativas nos negócios dessas organizações no exterior, visto que a JBS é proprietária das marcas Swift e Pilgrim, líderes do setor de alimentos no mercado americano.
Diante dos fatos, cabe-nos uma breve reflexão sobre a importância e a contextualização do compliance criminal no cenário corporativo contemporâneo, enfrentando a dialética estabelecida em nosso sistema jurídico para efeito de responsabilização das pessoas individuais e coletivas, a partir da constatação de atos de desconformidade, sob a perspectiva das acepções metodológicas introduzidas pelo advento da Lei 12.846/13.
A sociedade brasileira contemporânea vem experimentando, nas últimas décadas, um modelo de (des)contenção dos fenômenos criminais, alicerçado em um paradigma sistêmico de matriz autoritária e punitivista, em que o Direito Penal é lançado, jurídico-politicamente, ao patamar de solução da criminalidade.
As transformações sociais, a agilidade do avanço tecnológico e a fluidez da informação, dinamizaram o denominado risco global, delineando novos contornos para as relações jurídicas e suas proteções.
Invariavelmente as autoridades utilizam o Direito Penal como pseudossolução para questões que, na prática, podem e devem ser tratadas ao largo da ciência criminal. Para tanto, existe o compliance como instrumento de consecução das boas práticas, tendentes ao afastamento dos atos ilícitos.
Paralelamente à criminalidade “comum”, vale dizer, aquela que tende a vitimizar a sociedade diuturnamente pela ocorrência contumaz dos delitos de maior incidência (crimes contra o patrimônio, contra a pessoa e narcotráfico), apresenta-se em desmedida escalada a criminalidade empresarial, ensejando uma nova perspectiva para a abordagem repressiva estatal.
Encerrando interesses que residem para além do exercício da persecução penal, os crimes perpetrados na esfera empresarial têm reflexo impactante na economia e no sistema capitalista de manutenção e geração de riqueza, porquanto tendem a desestabilizar desde a geração de emprego, transitando pela afetação arrecadatória e confluindo, por vezes, para o arrebatamento corporativo, tanto em seu segmento produtivo, quanto na projeção reputacional do ente coletivo, com a consequente e indesejável perda de ativos.
Com efeito, o menoscabo aos princípios reitores de conformidade (compliance), propicia a proliferação de um ambiente fértil às práticas ilícitas corporativas, confluindo para a desestabilização das relações interinstitucionais entre os entes coletivos e o poder público.
Nesse contexto, desponta o instituto do compliance criminal como instrumento de prevenção, detecção e combate às ilicitudes do mundo corporativo, buscando-se, além da remediação dos efeitos deletérios dos atos de corrupção, ajustar os mecanismos de conformidade e governança às normatizações postas pelo ordenamento jurídico.
Parece-nos que, na denominada Operação Carne Fraca, a sociedade pôde mensurar os efeitos nefastos da espetacularização do processo penal, aliada ao menoscabo às regras de compliance, que acabou por determinar um duro golpe ao Brasil.
Toda a União Europeia, China, Coreia do Sul e Chile já suspenderam a compra de carne brasileira.
Estamos falando de um mercado que emprega 6 milhões de brasileiros, que levou quase 15 anos para se firmar no cenário internacional, submetendo-se ao crivo sanitário dos países que importam seus produtos.
Em relação as consequências da Operação Carne Fraca no mundo corporativo, deixamos como alerta a mensagem de Paul McNulty, ex-subprocurador de Justiça americano “If you think Compliance is expensive, try non-compliance”.
[1] Advogado Criminalista, Professor de Processo Penal e Compliance, Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa – UAL, especialista em Direito Penal e Compliance pela Universidade de Coimbra – Portugal, Especialista em Corporate e Criminal Compliance pela Fordham University School of Law – Nova Iorque, Presidente da Comissão de Anticorrupção e Compliance da OAB Barra RJ, Presidente do IBC – Instituto Brasileiro de Compliance, Presidente da ABRACRIM-RJ – Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas, Professor do Curso de Pós-Graduação (especialização) de Compliance da FDV Faculdade de Direito de Vitória, Auditor Senior Líder em Compliance (ABNT). Autor do livro: DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO: Uma visão garantista da unicidade do injusto penal tributário, 2016, Coautor do Livro Crimes Federais, Palestrante do III Congresso Internacional de Compliance, Sócio do escritório Walker Advogados Associados (www.jwalker.adv.br).
[2] Advogado Criminalista, Sócio fundador do escritório F.FRAGOSO ADVOGADOS ASSOCIADOS, Diretor de Projetos do IBC-Instituto Brasileiro de Compliance, Membro da Comissão de Compliance e Anticorrupção da OAB/BARRA-RJ, Membro da ABRACRIM-RJ, Doutorando em Ciências Jurídicas na Universidade Autónoma de Lisboa, Mestre em Direito, Pós Graduado em Direito Penal e Processual Penal, Pós Graduado em Direito Público e Tributário, Professor do Curso de Pós Graduação Direito Público e Tributário em crimes financeiros e tributários (AVM-UCAM-RJ), Professor do Curso de Pós Graduação Direito Penal-Legislação Especial (AVM/UCAM-RJ), Professor do Curso de Pós Graduação Direito Tributário em crimes contra ordem tributária (ESA/UCAM-RJ), Professor do Curso de Pós Graduação- Direito Penal Econômico em crimes contra o Mercado de Capitais (AVM/UCAM-RJ). Professor de Sistemas de Gestão de Compliance/Antissuborno -IBC-Rj. Auditor Senior Líder em Compliance (ABNT). Autor do livro: DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO: Uma visão garantista da unicidade do injusto penal tributário, 2016.