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Soberania dos veredictos não autoriza execução imediata da condenação

Por Caio Paiva
Contextualizando o tema
A ideia do trânsito em julgado como pressuposto da execução da pena, como quis — certo ou errado — o constituinte de 1988 (artigo 5º, LVII) e o legislador infraconstitucional (CPP, artigo 283, caput; LEP, artigo 105), já pode ser considerada ultrapassada no Direito brasileiro, e isso porque o Plenário do Supremo Tribunal Federal superou seu precedente firmado em 2009 (HC 84.079, rel. min. Eros Grau) para admitir a execução antecipada com o acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação (HC 126.292, rel. min. Teori Zavascki, j. 17/2/2016; MC nas ADCs 43 e 44, rel. min. Marco Aurélio, j. 5/10/2016; ARE 964.246, rel. min. Teori Zavascki, j. 10/11/2016). Como pano de fundo dos argumentos invocados pelo STF para modificar o seu entendimento, se encontra com muita clareza a pretensão de tornar o sistema penal mais eficiente, diminuindo o tempo entre a prática do crime e a efetiva punição do réu.
Mais recentemente ainda, a 1ª Turma do STF, a partir de divergência aberta com o voto do ministro Luís Roberto Barroso, avançou — ou, melhor dizendo, retrocedeu — para afirmar que “a prisão de réu condenado por decisão do Tribunal do Júri, ainda que sujeita a recurso, não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou não culpabilidade” (HC 118.770, rel. min. Marco Aurélio, redator do acórdão min. Luís Roberto Barroso, j. 07/03/2017). Para o ministro Barroso:
“(…) a presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes. No caso específico da condenação pelo Tribunal do Júri, na medida em que a responsabilidade penal do réu já foi assentada soberanamente pelo Júri, e o Tribunal não pode substituir-se aos jurados na apreciação de fatos e provas (CF/1988, artigo 5º, XXXVIII, c), o princípio da presunção de inocência adquire menor peso ao ser ponderado com o interesse constitucional na efetividade da lei penal, em prol dos bens jurídicos que ela visa resguardar (CF/1988, artigos 5º, caput e LXXVIII e 144). Assim, interpretação que interdite a prisão como consequência da condenação pelo Tribunal do Júri representa proteção insatisfatória de direitos fundamentais, como a vida, a dignidade humana e a integridade física e moral das pessoas”.
Com este precedente da 1ª Turma, ganha mais força no Supremo a visão gradualista da presunção de inocência, que submete esse direito fundamental a uma progressiva perda de eficácia na medida em que o processo caminha para a decisão final, tratando-se de um discurso que não tem nada de novo, eis que constava da redação original do Código de Processo Penal de 1941[1]. Se a execução da pena após o acórdão condenatório recorrível — embora contrária ao texto da Constituição — conta com argumentos mais razoáveis, como a interdição da discussão de fatos e provas nos recursos extraordinários, a execução imediata da sentença condenatória do Tribunal do Júri consiste em grave retrocesso e num perigoso precedente a demonstrar para onde marcha o Supremo.
Pois bem. Limitando este texto ao exame do HC 118.770, mediante o qual a 1ª Turma do STF admitiu a execução imediata da sentença condenatória do Tribunal do Júri, apontarei a seguir alguns equívocos no voto do ministro Barroso, já registrando que a minha admiração por Sua Exa. não diminui com nossas divergências em matéria penal.
1. O “grau zero” do entendimento doutrinário. O HC 118.770 representa um leading case na matéria da execução imediata da sentença condenatória proferida pelo Tribunal do Júri e muito provavelmente será invocado pelas instâncias judiciais inferiores para motivar a expedição de mandado de prisão concomitantemente ao fim da sessão de julgamento no primeiro grau. Esperava-se que o ministro Barroso, portanto, ao abrir a divergência, apresentasse um voto com fundamentação mais abrangente, indicando o cenário doutrinário em torno do assunto. O que se viu, porém, foi um voto que partiu de um grau zero sobre a respectiva literatura jurídica, tendo havido apenas duas citações de doutrina (de Guilherme de Souza Nucci e de José Afonso da Silva) que muito pouco ou nada contribuíram para a formação da ratio decidendi do precedente.
2. O “grau zero” do entendimento jurisprudencial. O mesmo grau zero se verifica no que diz respeito ao entendimento jurisprudencial, tendo o ministro Barroso apenas feito menção aos precedentes do Plenário sobre a execução das condenações criminais após o julgamento em segundo grau de jurisdição, o que também se afigurou um pouco fora de contexto, já que as matérias não se confundem. Até o dia 6/3/2017, não se conhecia decisões de tribunais — nem proposta doutrinária ou legislativa — que admitissem a prisão automática do réu condenado pelo Tribunal do Júri, exceto quando demonstrada a finalidade cautelar. A partir de 7/3/2017, os juízes de todas as comarcas e subseções passaram a contar com um precedente para justificar a execução imediata das condenações proferidas pelo Tribunal do Júri.
3. O risco da ponderação em matéria penal. No § 12 do seu voto, o ministro Barroso realiza uma ponderação entre o princípio da presunção de inocência e o interesse constitucional na efetividade da lei penal, concluindo que “(…) interpretação que interdite a prisão como consequência da condenação pelo Tribunal do Júri representa proteção insatisfatória de direitos fundamentais, como a vida, a dignidade humana e a integridade física e moral das pessoas”. A ponderação em matéria penal está na gênese do autoritarismo e foi o que sustentou os movimentos legislativos mais cruéis no Brasil e no mundo. Sem a sofisticação e a elegância do ministro Barroso, mas transmitindo o mesmo recado, Francisco Campos assim afirmou na exposição de motivos do CPP de 1941: “Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum”. Além de historicamente equivocado, o voto do ministro Barroso não elimina suas próprias contradições. Ora, se a vida, a dignidade humana e a integridade física e moral das pessoas corre risco num ambiente decisório do Tribunal do Júri, basta que seja decretada a prisão preventiva. Não há aqui, portanto, proteção insatisfatória de direitos fundamentais.
4. A compatibilidade da soberania dos veredictos com o direito ao duplo grau. Passando longe da complexidade da discussão, afirmou o min. Barroso no § 13 do seu voto que “(…) como já observado, tendo em vista a competência privativa do Tribunal do Júri e a soberania dos seus veredictos, o Tribunal não pode rediscutir autoria ou materialidade, ante a impossibilidade de substituir os jurados na apreciação de fatos e provas. Daí ser legítima a execução antecipada da condenação”. Um silogismo equivocado, conforme explicarei a seguir. É antiga a polêmica em torno da prevalência ou da submissão da soberania dos veredictos diante do direito ao duplo grau. Para justificar a soberania absoluta dos veredictos do Tribunal do Júri, é possível invocar a vontade do constituinte de 1988, que rejeitou uma emenda proposta pelo deputado José Egreja, pela qual se consagraria a soberania dos veredictos, salvo quando a decisão for contrária à prova dos autos [2]. No entanto, pouco tempo após a Constituição de 1988, o STF foi instado a se manifestar sobre a matéria algumas vezes e em todas elas afirmou que a soberania dos veredictos ostenta valor meramente relativo, não possuindo as decisões dos jurados intangibilidade jurídico-processual. Nesse sentido, por exemplo, já em 1989 o Supremo conferiu o sentido da garantia constitucional da soberania do Júri, tendo o ministro Moreira Alves ressaltado que “A expressão soberania dos veredictos não pode ser interpretada liberalmente, mas de forma sistemática. Mesmo porque o vocábulo soberania não indica o significado de poder arbitrário e incontrastável” (HC 66.954, rel. min. Moreira Alves, 1ª Turma, j. 31/3/1989). E assim também, em 1991 decidiu o STF:
“A soberania dos veredictos do Júri — não obstante a sua extração constitucional — ostenta valor meramente relativo, pois as manifestações decisórias emanadas do Conselho de Sentença não se revestem de intangibilidade jurídico-processual. A competência do Tribunal do Júri, embora definida no texto da Lei Fundamental da República, não confere a esse órgão especial da Justiça comum o exercício de um poder incontrastável e ilimitado. As decisões que dele emanam expõem-se, em consequência, ao controle recursal do próprio Poder Judiciário, a cujos Tribunais compete pronunciar-se sobre a regularidade dos veredictos. A apelabilidade das decisões emanadas do Júri, nas hipóteses de conflito evidente com a prova dos autos, não ofende o postulado constitucional que assegura a soberania dos veredictos desse Tribunal Popular” (HC 68.658, rel. min. Celso de Mello, 1ª Turma, j. 6/8/1991 [3]).
Essa conclusão é alcançada praticamente pela unanimidade da doutrina processual penal. Em primoroso estudo sobre o devido processo penal, Nereu José Giacomolli afirma que “Fosse absoluta a soberania, não se justificaria o Tribunal de apelação determinar um novo julgamento”[4]. Contextualizando o tema a partir das características do Estado de Direito, Fauzi Hassan Choukr defende que “a possibilidade de revisão [das decisões do Júri] justifica-se pela estrutura do Estado Democrático, em que inexistem atividades de poder estatal ‘absolutas’”, concluindo que “Ao não se admitir a revisão dos veredictos (numa imperfeita visualização do primado constitucional), estar-se-ia instituindo uma função estatal sem controle, impensável no sistema do Estado de Direito”[5].
Assim, não é difícil perceber o equívoco do silogismo empreendido pelo ministro Barroso, pois a premissa de que o Tribunal não pode substituir o convencimento dos jurados na apreciação dos fatos e das provas, embora verdadeira, apenas delimita — e não elimina, repita-se — a competência recursal da segunda instância, em nada legitimando a suposta lógica do resultado interpretativo, pois o exercício do duplo grau pode invalidar o julgamento e implicar que outro seja realizado.
5. A invocação de um direito fundamental do réu contra o réu. Na nota de rodapé 5 do seu voto, o ministro Barroso defende uma interpretação conforme à Constituição ao artigo 597 do CPP, de forma a deixá-lo compatível com a soberania dos veredictos, permitindo, consequentemente, a execução provisória da condenação proferida pelo Tribunal do Júri. Temos aqui a invocação de um direito fundamental do réu — a ser julgado por um Tribunal do Júri soberano — contra o próprio réu, o que senão viola, pelo menos subverte toda a teoria dos direitos fundamentais.
Conclusão
Primeiro se admitiu a execução antecipada da pena após o segundo grau. Agora, já se está admitindo a execução da pena após a sentença — de primeiro grau — do Tribunal do Júri. Até onde se irá para convergir o processo penal com as expectativas sociais? Que o sistema de justiça criminal possui déficits de eficiência no processamento das causas penais, adiando em alguns casos a justa pretensão da vítima e da sociedade de ver punidos os culpados, estamos de acordo. Quanto às formas de modificar este cenário e principalmente sobre quem irá pagar pela ineficiência do Estado, porém, registro a minha respeitosa divergência ao entendimento do STF. E assim o faço com este breve texto, concluindo que:
(I) A ideia de eficiência do sistema penal deve encontrar limites; (II) Tanto a doutrina quanto a jurisprudência, salvo excepcionalíssimas divergências, sempre entenderem que a decisão do Tribunal do Júri não é imediatamente exequível; (III) A ponderação em matéria penal é um jogo no qual o réu jamais vencerá, pois seus direitos são — equivocadamente — considerados individuais quando comparados com o interesse público da sociedade na efetivação da lei penal; (IV) A soberania dos veredictos não é absoluta e convive em harmonia com o sistema recursal desenhado pelo CPP; (V) O fato de o tribunal, no julgamento de apelação contra decisão do Tribunal do Júri, não estar legitimado a efetuar o juízo rescisório, em nada influencia nem tampouco implica na execução imediata da sentença condenatória, pois permanece incólume a sua competência para efetuar o juízo rescindente e determinar, se for o caso, um novo julgamento.


[1] Para uma crítica da visão gradualista da presunção de inocência, v. MORAES, Maurício Zanoide de. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 454-456.

[2] Este registro histórico é trazido por STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: símbolos e rituais. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 163. A respeito da soberania do Júri no histórico da legislação brasileira, v. BADARÓ, Gustavo Henrique. Manual dos Recursos Penais. São Paulo: RT, 2016, p. 231 e seguintes.

[3] Entendimento reiterado outras vezes posteriormente, como no HC 70.193, rel. min. Celso de Mello, 1ª Turma, j. 21/09/1993.

[4] GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal: abordagem conforme a CF e o Pacto de São José da Costa Rica. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 458.

[5] CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal: comentários consolidados e crítica jurisprudencial. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 1118.
Fonte: www.conjur.com.br
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