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Patrulhamento sobre juízo de valor é autoritarismo ou incompetência

Por Ruchester Marreiros Barbosa
Ficou cada vez mais fácil constatar que a jurisprudência tem influenciado decisivamente no surgimento de direitos no Direito como ciência, fruto de um messiânico[1] ativismo judicial no âmbito das ciências criminais. Insta salientar que não estamos desconsiderando o fato de que não é somente a lei a fonte jurídica que orienta nosso sistema jurídico. Pelo contrário, defendemos que as fontes da norma devem, sobretudo, se pautar pelas orientações de organismos internacionais que o Brasil é signatário, como a Convenção Americana de Direitos Humanos, e, acima de tudo, as suas decisões nos processos contenciosos, informes, opiniões consultivas, formando o que se denomina de bloco de Convencionalidade.
Não é à toa que o artigo 926 do Novo Código de Processo Civil expande para os Tribunais superiores, Tribunais Estaduais e Tribunais Regionais a técnica advinda do sistema do common law, dos precedentes jurisprudenciais vinculantes. Atualmente, no Brasil, mecanismo afeto somente às súmulas vinculantes produzidas pelo STF, mas após a vigência de Lei 13.105/2015 teremos muito mais precedentes vinculantes capilarizando os precedentes vinculantes, podendo representar um grande avanço no âmbito da segurança jurídica, diminuindo a atual loteria esportiva que se transformaram as decisões provenientes do poder judiciário, principalmente do Supremo Tribunal Federal.
Em homenagem a este conhecido instrumento de uniformização de entendimentos jurisprudenciais, lembramos que dia 22 de outubro de 2014 surgiu importante precedente veiculado no informativo 548 pelo STJ[2], que representou mais do que um avanço no âmbito da análise da insignificância, tendo agido acertadamente aquele tribunal, por ter considerado a atipicidade material do crime de furto em razão da aplicação daquele princípio, mesmo possuindo o réu uma decisão penal condenatória anterior transitada em julgado, propugnando verdadeiro Direito Penal do fato, senão vejamos.
Ora, se a incidência da insignificância acarreta o reconhecimento de atipicidade. Como se poderia condicionar seu reconhecimento a uma situação criminal anterior? Frisemos: seja ela qual for!
Temos um caso prático que deixará a questão bem elucidada. Explico: imagine que Tício seja conduzido à delegacia sob a imputação de que teria furtado uma caneta de R$ 5, no interior de uma sala de aula com uma câmera de filmagem. Colegas do dono da caneta, Mévio, teriam acionado a polícia em defesa do patrimônio da vítima, também colega de turma de Tício, no entanto, a mesma (vítima Mévio) já tinha ido embora e teria pedido aos mesmos para resgatarem a caneta esquecida em sala de aula.
Diante das filmagens, Tício teria sido visto pegando a caneta, e ainda, na lanchonete da faculdade, foi preso e conduzido até a delegacia. Na presença do delegado de Polícia o mesmo alega que achava que a mesma fosse sua.
Em diligência, ainda em sede da apreciação flagrancial, o delegado faz contato com a vítima, Mévio, e solicita sua presença na delegacia. Ao comparecer, informa que tudo teria sido um engano. A caneta estava no fundo da mochila o que tinha lhe dado a impressão de que teria esquecido em sala de aula.
Diante desta falsa percepção, Mévio teria solicitado aos amigos para a resgatarem, mas teriam estes se deparado com Tício subtraindo a caneta descrita pela vítima, que na verdade não pertencia a esta, mas sim àquele, que para terceiros (amigos da vítima), por falsa representação da realidade, estariam flagrando um crime de furto. Em suma, Tício teria pego por engano a caneta da vítima.
Diante de um flagrante erro de tipo o delegado de Polícia, por já ter iniciado formalmente o procedimento flagrancial, deixa de elaborar a nota de culpa após não restar mais suspeitas fundadas da existência de um crime (artigo 304, parágrafo 1º, CPP) liberta Tício em razão da constatação da atipicidade, mesmo tendo visto que o mesmo possuía uma sentença penal condenatória por furto transitada em julgado.
Podem me dizer agora, os leitores, o que difere esta situação de atipicidade por erro de tipo, para a hipótese de reconhecimento de atipicidade material?  Absolutamente nada!
Insta salientar que além da incidência da insignificância em razão de uma subtração de chocolates no valor de R$ 28, e ainda sendo reincidente no mesmo crime, com diversas anotações, sendo uma delas sentença penal condenatória transitada em julgado, o STJ destacou que “o mencionado princípio não fomenta a atividade criminosa. São outros e mais complexos fatores que, na verdade, têm instigado a prática delitiva na sociedade moderna.”
Voltando a indagação anterior, a diferença haveria se o delegado lavrasse o auto de prisão em flagrante alegando que em razão de seu antecedente criminal este teria afastado a verossimilhança das evidências de erro de tipo e, portanto, deveria deixar para o juízo de instrução a sua análise mais aprofundada, resultando, em outras palavras, em evidente utilização do direito penal como prima ratio, o que é totalmente inconstitucional e contrário ao direito penal democrático e garantista.
Quando os Tribunais impedem a aplicação da atipicidade pela insignificância a pretexto de que há uma condenação anterior, implementa a cada decisão deste tipo um verdadeiro direito penal do autor ou até mesmo um direito penal do inimigo, em total retrocesso à evolução do direito penal do fato.
Neste jaez, não obstante ter agido acertadamente o STJ como verdadeiro guardião da democracia, funcionando como um diapasão do garantismo penal, o instrumentalizador do tom democrático no processo penal como o primeiro juiz do fato será o Delegado de Polícia, diante do inafastável dever de realizar juízo de valor, que nada mais é do que interpretar a norma penal e adequá-la ao caso concreto.
Lembremos que “o Direito Penal não toca em um só pelo do delinquente” (Beling, 1943, p. 2)[3]. Ou seja, é o Processo Penal como instrumento que, dependendo do sistema político vigente, se autoritário ou democrático, servirá de mecanismo de garantias ou sem garantias.
A razão é simples: “o processo é instrumento de atuação estatal vinculado, quase sempre, à diretrizes políticas que plasmam a estrutura do Estado. Impossível por isso, subtrair a norma processual dos princípios que constituem a substância ética do Direito e a exteriorização de seus ideais de justiça.” (Marques, 1980, p. 49)[4]
A Polícia Judiciária enquanto dispositivo democrático, expressão que utilizamos na obra Investigação Criminal pela Polícia Judiciária[5], deve atuar, como maestro da fase investigativa, com a batuta da democraticidade[6]. Por isso, o delegado de polícia em seu juízo de valor sobre a insignificância, em casos de incidência manifesta (art. 397, III do CPP — “fato narrado evidentemente não constitui crime”, causa análoga ao arquivamento, configurando, inclusive coisa julgada extraordinária), ou qualquer outra análise de tipicidade, deve estar atento quanto ao excesso punitivista e servir como um anteparo de contenção do poder, não somente do Leviatã, mas como também da serpente (podendo ambos ser o legislativo, o executivo ou o judiciário), lembrando a frase paradigmática de um camponês de El Salvador, referida por José Jesus de La Torre Rangel e no Brasil difundida por Lenio Streck “la ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos”.
A lei é para ser cumprida, mas acima de tudo, interpretada. Quando se enxerga o direcionamento excessivo para somente uma camada social, que historicamente foi sempre, e somente ela, alcançada pela serpente, em razão de constantes políticas de neutralização de indesejados, de cujos fatos passaram a ser crimes, não pelo fato, mas pelo que as pessoas representavam para a sociedade em razão de sua condição social[7], a democracia deve possuir instituições que assegurem esta correção. Não é somente o judiciário o responsável pela contenção do poder. Ele será o último. Em algumas vezes o primeiro e o último, mas a Polícia Judiciária, em se tratando de questão criminal, na maioria esmagadora das vezes, será o primeiro e as demais agências (MP e Juiz) em segundo.
O Direito Penal historicamente sempre foi instrumento de poder, de instância de poder para fins de controle social. Para fins de dominação e não de correção. A prevenção penal é mecanismo de política autoritária e inútil para os fins prometidos nos crimes de bagatela. Quais sejam, de inibição do crime e reintegração social. Por isso, condicionar a atipicidade material pela insignificância à uma conduta ilibada do autor é realizar controle social penal pela desfaçatez de fatos atípicos. O fato será típico ou atípico secundum eventum persona? Ou seja, secundo a análise da personalidade “delinquente”? Em outras palavras, segundo sua periculosidade, pelos juristas, que sequer tem formação em psicologia?
É imperioso destacar que a punição de uma pessoa com base na análise da periculosidade consiste em remar para o passado, violador do Direito Penal hodierno e seus postulados democráticos, no qual propugna o sepultamento, afastado o direito penal do autor, inaugurado por Lombroso (1876), Ferri (1931) e Garófalo (1925), na qual justificavam, com critérios científicos da época a distinção entre o homem delinquente ou anormal e o homem não delinquente ou normal, alimentado por uma “perspectiva biopsicopatológica”, orientada pelo “espírito individualista e correcionalista da criminologia tradicional”, critérios totalmente diversos da análise do “delinquente e suas interdependências sociais, como uma unidade biopsicossocial”[8].
Mesmo diante da hodierna realidade, a periculosidade tem sido justificativa como fundamentos de diversas interpretações e de políticas criminais as quais almejam cada vez mais a prevenção da conduta delitiva por meio da antecipação da tutela penal.
Associado a esta herança criminológica de institucionalização ultrapassada do objeto de estudo (etiológico) dos fatores da criminalidade (por que cometeu crime?) das escolas positivistas surge a teoria causal da ação de Franz von Liszt, em 1882, cuja originalidade de sua obra estava em sistematizar a ação criminosa de forma dogmática com profícuo propósito de exercer uma função limitadora da política criminal, vertente de um positivismo criminológico, se diferenciando da italiana porque considerava a existência duas cadeias causais para a ação, uma física e outra espiritual[9].
Ainda que mais adiante seja criticado por Karl Binding (1841-1920), bem com seja melhorado pela teoria neokantisna ou neoclássica, de Max Ernst Mayer, Edmund Mezger e Reinhard Frank, que preconizam a saída de uma orientação causal-naturalista para uma causal-valorativa, ainda assim, o positivismo como método se mantém, posto que a estrutura do crime continua situando a normatividade, ou seja, seu conteúdo valorativo continua situado no campo da culpabilidade[10], que por sua vez, representava a aplicação da pena e não um conceito tripartite de crime como é analisado nos dias de hoje.
Em outras palavras, o Código Penal de 1940, de inspiração italiana do Código Roco de 1930, consequentemente pautada em um conteúdo eminentemente da escola criminológica positivista e dogmaticamente causalista, o que resulta em normas jurídicas penais totalmente descritivas do comportamento, desprovidos de qualquer conteúdo valorativo e dogmaticamente orientado com normas que preconizavam o direito penal do autor.
Neste diapasão, “o Código Penal de 1940 constrói seu sistema dentro do dualismo culpabilidade e periculosidade criminal, pena e medida de segurança. Entretanto, como observa Roberto Lyra, ‘a periculosidade, inclusive presumida, condiciona não só a medida de segurança, como a aplicação da pena, e governa os instrumentos de política criminal.’”[11]
Neste jaez, e sobre esta lógica, de fato, não poderia o Delegado, e nem um Promotor(!), sob a égide deste diploma, estariam autorizados a realizar juízo de valor sobre o fato, por uma razão muito simples, o próprio sistema não permitia. Bingo! Descobrimos o porquê delegado e o promotor de Justiça não poderiam realizar juízo de valor sobre o dolo ou culpa, ou sobre tipicidade material, ou o erro tipo e de proibição (no código de 1940 era, respectivamente, erro de fato e direito), haja vista que a análise desses institutos se situava no campo da culpabilidade, consequentemente, era analisado no momento da aplicação da pena. Sendo assim, a sistemática penal tinha sido concebida de forma antidemocrática (1940), haja vista que o monopólio da análise jurídica se dava no poder judiciário, que por sua vez, também era um mero reprodutor da imperativo penal seletivo.
O finalismo surge em 1938 enunciado por Hans Welzel, e irá influenciar nosso Direito Penal na reforma da parte geral do Código Penal de 1984, porém, ainda, com diversos dispositivos de conteúdo causalista e que até hoje influenciam alguns “manuais” de Processo Penal defender que o Delegado não realiza juízo de valor sobre a análise jurídica de fatos criminais que chegam ao seu conhecimento, preconizando e reproduzindo a irracional e estapafúrdia conclusão de que o exame analítico do crime, ao fato apresentado, seja somente de tipicidade, ou seja, uma subsunção do fato aos elementos descritivos da conduta, tal qual se fazia em 1940, e pior, mesmo perante o atual ordenamento constitucional e finalista, que esculpiram um Direito Penal do fato.
Ora, se a escola clássica surge no século XVIII e influencia fortemente a dogmática causalista até final do século XX, não causa estranheza que uma mudança em 1984 (Direito Penal do autor e finalismo) e 1988 (Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais), lamentavelmente (menos de meio século), ainda não seja o suficiente para que alguns membros da Magistratura e do Ministério Público, os mesmos que reclamam do PLS 280/16, por permitir patrulhamento ideológico no conteúdo da interpretação que os mesmos realizam sobre o complexo sistema jurídico brasileiro, contudo, esses mesmos membros realizam de forma desarrazoada e cotidianamente patrulhamento ideológico das decisões dos Delegados, que possuem ínsito em sua função técnico-jurídica a interpretação das leis[12], e que muitas das vezes, reproduzem interpretação dos próprios Tribunais, locus onde estas mesmas questões, por vezes polêmicas, irão repercutir, e que demanda, também, inúmeras vezes, interpretar contrariando a lógica autoritária do sistema, contra dispositivo literal de lei. Mas quem disse que aplicar norma é reproduzir um artigo de forma isolada?
Ainda assim, vemos, pasmem(!), nos dias de hoje, interpretação jurídica realizada pelo Delegado, que em regra é resultado da adoção de um ou outro entendimento doutrinário ou jurisprudencial, sendo perseguidos com ameaças de ações de improbidade administrativa por membros do Ministério Público ou solicitações de instauração de procedimentos administrativos disciplinares por magistrados, porque simplesmente algum desses discordou daquela interpretação.
Como dizia Bertolt Brecht, perseguido pelo nazismo: “que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio.”


[1]   TZVETAN, Todorov. Os inimigos da democracia. Tradução de Joana Angelica d’Avila Melo, São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[2] HC 299.185-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 9/9/2014.
[3] BELING, Ernest. Derecho Procesal Penal. Tradução de Roberto Goschmidt e Ricardo C. Nuñez. Córdoba: Imprensa de la Universidad. Segundo o autor:“El Derecho Penal no le toca al delinquente un solo pelo.”
[4] MARQUES, Frederico José. Tratado de Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva.
[5] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Polícia Judiciária Enquanto Dispositivo Democrático. In HOFFMANN, Henrique; MACHADO, Leonardo Marcondes; ANSELMO, Márcio Adriano; GOMES, Rodrigo Carneiro; BARBOSA, Ruchester Marreiros.  Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
[6]  PRADO, Geraldo; MARTINS, Rui Cunha; CARVALHO, L.G. Grandinetti Castanho de. Decisão Judicial:  a  cultura  jurídica  brasileira  na  transição  para  a  democracia.  Madrid,  Barcelona,  Buenos Aires, São Paulo: Marcial Pons, 2012, p. 80. Assevera Rui Cunha Martins, que “o sistema processual de inspiração de-mocrático-constitucional só pode conceber um e um só ‘princípio unificador’: a democraticidade; tal como só pode conceder um e um só modelo sistémico: o modelo democrático. Dizer ‘democrático’ é dizer contrário de ‘inquisitivo’, é dizer contrário de ‘misto’ e é dizer mais do que ‘acusatório’.”
[7] Basta lembrarmos que o art. 28, §2º da lei de drogas, para diferenciar o “usuário” do “traficante” define como critério diferenciador a condução social do agente, in verbis: art. 28, §2º – “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”
[8] SUMARIVA, Paulo. Criminologia: teoria e prática. 4ª Ed., rev., ampl. e atualizada. Niterói: Impetus, 2017, p. 38 e 39
[9] ZAFFARONI, Raúl E.; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. 4ª Ed. 2ª reimp. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 582 e 583.
[10] ______. Direito Penal Brasileiro: segundo volume: introdução histórica e metodológica, ação e tipicidade. 2ª Ed. 1ª reimp. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 85
[11] TAVARES, Osvaldo Hamilton. A Escola Positiva e sua influência na Legislação Penal Brasileira. Revista Justitia. Disponível em: , acesso em: 24/04/2017.
[12] Art. 2º da Lei 12.830/13
Fonte: www.conjur.com.br

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