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O tatuador vacilão, a inércia do Ministério Público e o avanço da cultura supliciana no Brasil.

Que a cultura do ódio tem alcançado níveis assustadores no país não é novidade. No início de 2014, um jovem negro, suspeito de cometer crimes patrimoniais, foi despido e acorrentado a um poste em via pública [1]. De lá para cá, diversos outros casos chocaram a população pelo nível de atrocidade: apedrejamentos, mutilações e outras barbáries.
Vale dizer que a divulgação de casos onde as vítimas desses atos de injustiça (jamais chame de justiçamento!) não surtiram o efeito didático esperado: frear o desejo social impulsivo de punir com as próprias mãos.
Pois bem. O último e mais famoso caso no país foi o de um adolescente que teve a testa tatuada por um homem ao, supostamente, tentar subtrair a bicicleta de outro [2].
É evidente que os chamados “justiceiros”, que aliás – só praticam injustiça – estão convictos do apoio social a seus atos e sequer se preocupam, por exemplo, em fazê-los na clandestinidade, ao contrário: divulgam vídeos abertamente em redes sociais e não se esforçam para preservar o anonimato (exibem tatuagens, rosto e voz). De igual modo, seus apoiadores não apresentam qualquer timidez no universo real ou virtual.
Semelhantemente ao europeu no Século XVII, o brasileiro busca a punição arbitrária como se progresso fosse e, não bastasse, esbanja criatividade e exibicionismo. Foucault, no clássico “Vigiar e Punir” [3], narra punições de tortura aos sumariamente condenados, acontecidas num grande espetáculo público denominado suplício. Como aconteceu lá e hoje aqui – pasmem – 400 anos depois, a punição arbitrária não basta por si só: a exposição à vergonha e/ou a ostentação da crueldade é requisito. Lá, a exemplo, faziam-se desmembramentos com a força de tração de 4 (quatro) cavalos, destroçando nervos e ossos.
No início do século XVIII, a França e outros países europeus passaram perceber a desumanidade e ineficácia dos suplícios. Aqui a coisa parece que será mais devagar: para que se tenha ideia, Jair Bolsonaro tem 62 anos e a maioria de seus seguidores têm entre 14 e 30.
Diante desse quadro, a legislação brasileira impõe alguma forma de preservar e/ou resgatar a paz social? Sim. O Código Penal prevê, em seus art. 286 e 287, respectivamente, dois crimes de expressão (constituem limite à liberdade de expressão, que possui preferred position na Constituição, mas não é absoluta): um para quem incita crime, e outro para quem faz apologia à fato criminoso já ocorrido ou ao próprio criminoso:

  • Incitar, publicamente, a prática de crime

  • Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime

Ambos são crimes de “ação pública incondicionada”, ou seja, o Ministério Público pode, de ofício, iniciar uma ação penal contra quem incorrer nas condutas acima. Reside também aqui o princípio da oficialidade.
No entanto, o contexto de desequalização política vivido pelo país tem sido o terreno ideal para que as sementes de ódio germinem rapidamente, fato este que deveria ser observado – lá de cima – pelos doutos Promotores de Justiça: aqui em baixo a coisa tá ficando feia!
Não faço aqui uma ingênua proposta de que o Direito Penal seja usado como instrumento apto a suprir a (falta de) educação ou a medievalização cultural, porque dentre os incitadores (art. 286), apologistas (art. 287) e “justiceiros” (art. 385, todos do Código Penal), a maioria tem acesso suficiente à informação.
Ao permitir uma figura penal caducar em tempo que ela seria de extrema importância para a prevenção de crimes, inclusive de ódio (assunto pra outro texto), o Ministério Público faz com que o brasileiro siga usurpando o poder de punir do Judiciário, que aliás já está por demais desmoralizado nos últimos dias. E mais: autoriza que se interprete – equivocadamente – a permissividade de condutas criminosas que estão atormentando a sociedade e tirando-lhe a paz. A mesma crítica pode ser feita à Polícia que, chegando ao local de um crime e vendo o suspeito sendo espancado, detém apenas ele e não seus agressores (neste caso há, em tese, cometimento de crime na forma omissiva por parte dos policiais).
Neste link [4] você pode entender o motivo de o Ministério Público ser mais cobrado que as polícias. Afora a estrutura ministerial, também o poder institucional deve ser considerado.
Outrossim, importa lembrar que a competência investigativa do Ministério Público tem limitações e, ao menos em teoria, nos crimes aqui citados, o órgão não poderia abrir investigação, mas provocar a polícia judiciária para tal, “acompanhar” seu desenrolar e, ao fim, judicializar uma acusação formal. Esperar que essa iniciativa parta das sucateadas polícias é surreal.
Processados, os(as) alimentadores de ódio na internet, incitadores ou apologistas, certamente veriam que o mundo virtual não é terra sem lei. Divulgada a “caça”, outros navegantes pensariam duas vezes.
É isso. A minha esperança caminha na direção de que o Ministério Público desperte e faça cessar o progresso truculento da prática da injustiça com as próprias mãos, restaurando parcela da paz social, ou ao menos impedindo seu regresso, e devolvendo à justiça o que lhe é devido no Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS
[1] https://goo.gl/0cm80j
[2] https://goo.gl/3gTygo
[3] https://goo.gl/XdO0x9
[4] https://goo.gl/sy94R7
Hugo Fernandes – OAB/RN 14.698 (Seccional/subseção Natal)
• Advogado e Sócio-Gerente – Pontes e Fernandes Sociedade de Advogados
[Registro n° 608 OAB/RN]
• ESPECIALIZAÇÕES:
Pós-Graduando (Lato Sensu) em Direito Constitucional – Faculdade Damásio (SP) (380h)
Pós-Graduando (Lato Sensu) em Direito Penal e Processo Penal – UNP (450h)
• Membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM)
• Membro e Secretário-Geral da Comissão de Advogados Criminalistas da OAB/RN (Natal)

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