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A questão prisional – Entre o panóptico e a rebelião

A questão prisional tem sido, há séculos, tema de debates e reflexões nos mais variados sistemas de pensamento. O presente artigo se coaduna com esta tradição, na medida em que traz à baila o pensamento de Michel Foucault sobre a questão prisional, procurando equacionar os dizeres foucaultianos com a realidade prisional de nossa cidade. A díade rebelião-massacre representa o encetamento principal que procuramos utilizar nessa nossa reflexão. Relacionar tal díade com o pensamento Foucaultiano, assim como apontar caminhos para uma reflexão mais profunda que objetive lançar luz sobre tal problema é o objetivo principal do presente artigo. O PENSAMENTO FOUCAULTIANO Quando Foucault pontuou que (2003, p. 13) “a execução pública é vista então como uma fornalha em que se acende a violência” um dado fulcral foi posto: o de que a execução acenderia, muito mais, a violência do que a combateria. A punição por disciplinamento físico, tortura e meios cruéis foram postos, portanto, em xeque. A questão não era deixar de punir os então criminosos, mas fazer com que essa punibilidade pudesse, de facto, e não apenas de juris, possibilitar o combate à violência, ao crime, sem abrir espaço para mais violência e possíveis insurreições. É neste sentido que Foucault pontua que “não é mais o corpo, é a alma” (2003, p. 18) que deve ser punida. Há, portanto uma outra tecnologia de poder, um novo modus operandi que aí será instituído. O objetivo de vigiar e punir ganha, portanto, novos alicerces, novas interpretações. É na aurora do iluminismo que se passa, mais fortemente, a “considerar as práticas penais mais como um capítulo da anatomia política, do que uma consequência das teorias jurídicas” (2003, p. 28). É por entender que o sistema de poder que sentencia também se subjaz a um sistema de poder, por assim dizer, político que, é preciso escrutinar as anatomias políticas que embasarão tanto a idéia de vigiar quanto a prática de punir. No pensamento foucaltiano, portanto, “o suplício não restabelecia a justiça; reativava o poder” (2003, p. 43), por conta de uma violência desmedida que apagava a subjetividade do condenado, eliminando, de todo, a sua condição social. Neste sentido, a condenação de um supliciado se dava muito mais por conta da tentativa de alinhar, em um sistema de poder, os que assistem à execução, do que em punir e oportunizar novas possibilidades de inserção social ao condenado. A prisão, como a conhecemos, sem os suplícios reais, típicos do período anterior ao iluminismo, nasce em um momento em que as vozes políticas proclamam liberdade, mas também ditam a disciplina. Em se tratando de análise prisional, o que acontece para que a cadeia surja é, exatamente, uma inversão da masmorra (2003, p.166). A masmorra é um sistema de poder político repressivo; por assim dizer, real, somem pouco a pouco; no seu lugar, surge um novo engendramento: a prisão que coloca o prisioneiro à plena luz; ele é vigiado, disciplinado, controlado por uma série de atividades. É nesta lógica do observar tudo, sem ser visto, que se constitui o chamado panoptismo (2003, p. 168). Algo, portanto, que a prisão instituída pelo sistema panóptico não é: é, com certeza, a masmorra. As questões, agora, são postas a olhos vistos. E este controle sobre os prisioneiros atingia, como já foi dito anteriormente, as almas e não os corpos. Mas não se trata de apenas controlar corpos e vigiar almas; o panoptismo atinge, diretamente, o inconsciente dos prisioneiros; algo que, como já pensava Freud, subjaz as nossas ações, pensamentos e emoções (2003, p. 166-167). As citações acima demonstram algo indelével: o panoptismo é um estilo de poder. Através dele se controlam os detentos. A masmorra sai de cena para que os detentos sejam escrutinados em seus mais ínfimos detalhes. O poder meramente repressor que gerava os suplícios sai de cena para que, um novo sistema, mais complexo, seja implementado. O panoptismo não precisa apenas de vigias para observar os presos, mas também de uma série de profissionais que “cuidarão” deles; médicos, enfermeiros, professores estariam neste sistema de observação que, nota após nota, observação após observação, construiriam conclusões sobre os presos e, portanto, sobre a prisão como um todo. O panóptico depende de uma complexidade sistêmica justamente, porque, o iluminismo nos traz as disciplinas e a sua consequente arma política: a obediência. Espera-se que esse maquinário do poder produza presos obedientes; em um dizer foucaultiano – corpos dóceis. A docilidade aqui empregada deve ser compreendida em seu aspecto adjetival mais intrínseco: não se trata obviamente de pessoas dóceis, mas de sujeitos obedientes. Lembrar do sistema panóptico é essencial para compreender o pensamento foucaultiano que teoriza sobre o sistema prisional; pois traz à baila características constitutivas que possibilitou ao pensador francês afirmar (2003, p. 187). A similaridade existente entre a prisão, os hospitais, as escolas e as fábricas somente podem ser compreendidas; se pontuarmos que, todas essas instituições se entrelaçam em um sistema de poder disciplinar que toca os sujeitos em sua alma; que domestica as vontades; que dociliza os dizeres e faz com que a obediência seja um dever para consigo próprio. Sujeitos docilizados em seu âmago, em sua “alma”, vigiam a si próprios, se autorregulam e procuram estar sempre sincronizados com o sistema que lhes está à frente. Isso, em tese, melhoraria o aspecto prisional, mas segundo o próprio Foucault (2003, p. 196): “Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa quando não inútil. E entretanto não “vemos” o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão”. Não se pode pensar sobre prisão, em um sistema de pensamento foucaultiano sem que, se pense sobre panoptismo; e, levando em consideração que o sistema panóptico está profundamente interconstituido com a questão do poder; é preciso, em última instância pensar na questão do poder como um todo. Quando pensamos (2005b, p. 8): “se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não, você acredita que seria obedecido?” A resposta parece um tanto óbvia – uma clara negativa. O poder apenas repressivo entraria em colapso se não abrisse exceções e possibilidades de tolerância para as suas próprias regras. É neste ínterim que Foucault pontua que o poder não pode apenas dizer não; ele constrói seus significados com as assertivas positivas e alguns talvez. É desta forma que um sistema de poder consegue se manter, em suas mais diversas acepções. Quando Foucault pontua que (2005b, p. 61): “o tribunal é a burocracia da justiça” temos um desdobramento dessas questões do poder para o que se poderia chamar de poder jurídico. É na burocratização da justiça que as injustiças podem, não apenas acontecerem, mas também se inscrustarem como elementos constitutivos do sistema jurídico. O risco de tal fato acontecer é que, caso a injustiça surja de questões burocráticas do sistema judiciário, elas podem se perpetuar, pois “a disciplina exerce seu controle, não sobre o resultado de uma ação, mas sobre seu desenvolvimento” (FOUCAULT, 2005b, p. 106). A mesma estratégia de poder que se usa dentro da prisão, também pode dificultar a correção de erros acontecidos no ambiente prisional e, quiçá, no ambiente judiciário. A disciplinarização e a obediência estimulam os sujeitos a repetirem sempre os mesmos procedimentos, mesmo que tais procedimentos tragam, em seu bojo, pontos negativos, pois (2005b, p. 106) “a disciplina é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos”. Isso faria, em última instância, com que, mesmo substituindo pessoas, as subjetividades que as engendram não sejam assim tão díspares. Dessa forma, mesmo substituindo pessoas, em um organograma de poder, as subjetividades que produzem determinados resultados ainda estariam presentes. É preciso, portanto, pensar as ideias de Foucault com o adágio de Arendt quando disse que não há pensamentos perigosos, pois pensar é perigoso. A REBELIÃO As últimas rebeliões acontecidas na cidade de Manaus, por exemplo, foram adjetivadas com outro epíteto: massacre; e destoaram do rito clássico (tomada do ambiente prisional para negociação onde se exigem direitos, julgamentos de processos atrasados, libertação de presos com a pena cumprida, etc.). A primeira questão, portanto, seria etimológica: na verdade, os presos, no caso específico de Manaus, não se rebelaram, de forma propriamente dita; mas sim, agiram em quadrilha para assassinar outros presos. Uma ação criminosa „simples‟, mas ao mesmo tempo extremamente complexificada por conta do que isso representa à luz dos pensamentos que nortearam a prisão como instituição. Primeiramente, é preciso pontuar que se determinado contingente de detentos toma de assalto a prisão onde cumprem pena para assassinar outros presos, isso mostra dois fatos indeléveis: há um poder interno de presos que oprime, sobretudo, outros presos. Este poder criminoso, obviamente, precisa ser abastecido por armas e uma série de outras facilidades (telefones, informações privilegiadas etc.) para que os seus desígnios de poder, de facto, aconteçam. Não há, portanto, uma rebelião; há um massacre, em um sentido – a significação de que detentos foram brutalmente mortos. Por outro lado, a palavra massacre não contempla, em seu significado, o que gerou a organização criminosa que domina a instituição prisional. Há de se perguntar se o panoptismo continua vigente em uma prisão onde uma facção criminosa massacra outros presos; eles são vigiados? Há a disciplinarização pontuada no pensamento foucaultiano? Ao que tudo indica, não há. Parece que o que ocorre é uma inversão do sistema panóptico; os presos que ocupam uma posição privilegiada de poder observam „panopticamente‟ as atividades criminosas que ocorrem do lado externo da prisão; e se movimentam dentro do ambiente prisional com o intuito de preservar seus interesses. O poder estaria aqui, claramente, fazendo concessões; uma questão problematizadora é que essas concessões se tornam tão lenientes que não há controle efetivo do ambiente prisional; pois caso houvesse, uma facção criminosa não teria se instalado com o exercício do poder da própria vida. Na ausência de uma organicidade administrativa que, de fato, funcione dentro do ambiente prisional; a própria força criminosa se organizou. Ironia de uma instituição que nasceu em substituição à masmorra. Um fato que chama a atenção para os eventos ocorridos durante o massacre perpetrado nas cadeias manauaras é que o poder jurídico não tem sido eficaz no sentido de evitar o massacre e também a rebelião (um problema que parece ter sido sucedido por um outro pior). Se, no dizer de Foucault, o tribunal é a burocracia da justiça, caberia a essa burocracia estender seus efeitos de sentido-poder ao ambiente prisional. Aqui cabe a reflexão do fato de tais prisões serem terceirizadas. Não é o intuito deste artigo refletir sobre questões organizacionais ou de ordem apenas administrativa; mas sim, pontuar que, se antes, com um controle estatal havia rebeliões; agora, há massacres, e em número bem maior. Na ausência da vigilância e da punição, do sistema panóptico ter sido alijado pelo controle de poder dos próprios presos, a rebelião pode ganhar um outro sentido. A significação das reivindicações históricas acontecidas em uma série de rebeliões faz eco, em um momento, onde não há mais algo a se reivindicar, mas apenas controle criminoso a ser estabelecido. As rebeliões pretéritas, portanto, podem servir como um caminho a ser seguido em um momento histórico onde os movimentos prisionais se constituem como um morticínio com interesse criminoso. Vigiar e Punir precisa ser, em grande medida, restaurado. Ao refletir sobre o poder como governo é necessário lembrar a frase foucauldiana (2008, p.62) “o governo só se interessa pelos interesses”. É nesse contexto de interesses que o modelo panóptico de Benthan se evidencia não apenas como um componente local de controle, o sistema de vigilância ultrapassa o binômio vigilante-vigiado. O controle, a observação, a regulação e a disciplina não se constituem, portanto, como um sistema localizado de gerência de uma prisão, mas sim uma peça importante de uma engrenagem maior e um tanto complexa intitulada governo. Ao refletirmos sobre o vaso de Soissons (FOUCAULT, 2005b), por exemplo, podemos perceber que a luta militar não era apenas pelo território, mas sobretudo pela população. E é através do governo que se percebe o controle dos sujeitos que constituem essa população. O absolutismo, e com ele, a figura de um soberano, não apenas disciplina uma técnica majoritária de governo, mas sobremaneira, funda formas de obediência. Ao percebermos que o aforismo de Clausewitz mostra uma outra face da conclusão de Boulainvilliers – a guerra só pode ser vista como a política por outros meios, porque anteriormente, a política revela-se como a guerra por outros meios -, pontuamos um dado importante que liga a guerra à política: a utilidade para o governo. A forma do poder ser exercido não pode, portanto, ser vista de forma isolada a uma pessoa, ou uma classe social, ou tampouco a uma determinada ideologia. Da mesma maneira, não se pode perceber o poder apenas pela repressão, pela forma de dizer não; como o próprio pensamento foucauldiano demonstra, apenas a repressão não causaria a obediência. O nascimento da prisão, do hospital e da escola ajudam a constituir a sociedade disciplinar, onde o controle, a vigilância e, é claro, a punição, serão habilmente administradas. O governo, ao se interessar pelos interesses, faz mais que controlar e vigiar os mesmos, os administra politicamente: “Governar consiste em conduzir condutas.” Podemos dizer, paralelamente, que o presidiário é um sujeito que, igualmente, não mais se possui; tutelado pelo Estado, tem sua liberdade restringida; caso essa prisão não encontre, de facto et de juris, uma formulação adequada, as rebeliões podem „evoluir‟ para massacres constantes, pois o poder de governabilidade das facções criminosas terão o governo de facto do ambiente prisional e o poder sobre a constitutividade dos presos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Foucault explica o sistema de poder-saber que criou a prisão moderna e enterrou o modelo da masmorra. Em nossa época, contudo, outros problemas urgem por solução: as rebeliões dão lugar, paulatinamente, a massacres efetuados por organizações criminosas. O poder prisional, hoje, ironicamente, pertence a presos com o intuito de atuarem de forma organizadamente criminosa (e não mais com um modus operandi aleatório). Quando tais eventos ocorrem, o poder jurídico se movimenta para evitar novos massacres; contudo, os elementos básicos que tornam o massacre possível, continuam lá. É mister que tais fatores sejam pesquisados, discutidos e debatidos. A questão das penalidades e da vida prisional precisam perfazer uma equação que terá como resultado uma prisão que funcione. O encetamento da prisão que não funciona deve, portanto, ser o objetivo básico de pesquisas ulteriores; é neste ínterim que escrevemos o presente artigo. RODRIGO SILVA RIBEIRO é Advogado, Vice-Presidente da ABRACRIM-AM, Conselheiro Titular da OAB/AM, Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UFAM.

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