Onde está o “Livro de Regras”?
[1] qualquer outra abordagem sobre o filme Ponte dos Espiões (Bridge of Spies) dirigido por Steven Spielberg tornou-se dispensável, mas mesmo assim, atrevo-me a tecer algumas considerações tardias sobre o ótimo filme e o atual momento sombrio.
Baseado em acontecimentos reais, o filme ressalta, entre outras coisas, a importância do sagrado direito de defesa e da missão do advogado. Em plena guerra fria o advogado de seguros James Donavan, interpretado pelo ator Tom Hanks, por questões políticas é designado para defender Rudolf Abel (Mark Rylance) um “espião soviético” que fora preso. Embora contra tudo e todos, inclusive sua família, Donavan acaba aceitando a missão e sofrendo toda espécie de ataque por ter assumido a defesa de um “inimigo dos EUA”.
O julgamento, na verdade, era apenas de “fachada”, já que o destino do “espião soviético” estava selado. Tratava-se, apenas e tão somente, de dar aparência de legalidade para justificar a punição do inimigo. Só que eles, inclusive a CIA, esqueceram-se, literalmente, de “combinar com os russos”, ou melhor, com o advogado do “espião soviético”. James Donavan recusou, veementemente, fazer parte daquela farsa.
Em determinado momento do filme, Donavan é perseguido por um agente da CIA que lhe acaçapa ambicionando saber o que o “espião soviético” havia dito ao advogado, insistindo para que DONAVAN quebrasse a confiança – indispensável na relação advogado/cliente – e violasse o sigilo profissional. O agente da CIA, mandando as favas qualquer escrúpulo – eles não têm nenhum – disse ao advogado, que nesses casos, não se seguia nenhum “livrinho de regras”, ao que Donavan responde: “Você é descendente de alemães e eu de irlandeses. Sabe o que faz de nós, americanos? Só uma coisa: uma, uma, uma — o livro de regras. Chamamos a isso de Constituição. Concordamos com as regras e é isso que nos faz americanos”.
Lenio Streck em seu referido artigo salienta:
O direito vale… mesmo para o inimigo. Contra tudo e contra todos. Por que? Por uma questão de princípio. Princípio é um padrão de comportamento. É deontológico. E o livrinho de regras? Ele vale. Contra tudo e contra todos. Constituição é um remédio contra maiorias. Eis o livrinho. A Constituição e a doutrina vigilante são os mecanismos externos para conter o solipsismo. Por isso o direito tem um grau de autonomia.[2]
Lamentavelmente, em “tempos sombrios” e de “exceção” o “Livro de Regras” vem sendo rasgado aqui e acolá, notadamente, quando se trata daquele que foi alçado à condição de inimigo.
Referindo-se ao inimigo no direito penal, Raul Zaffaroni assevera que:
[3]
Mais adiante o jurista argentino observa que:
[4]
O “Livro de Regras” não se aplica ao inimigo. Assim, não tem o inimigo, como no caso do “espião soviético” e em alguns casos em “Pindorama” – com licença do Lenio – direitos e garantias que decorrem da Constituição da República. Ao inimigo é negado o devido processo legal e o direito de ser julgado por um juiz imparcial. A presunção de inocência se converte em presunção de culpa no caso do inimigo. A defesa para o inimigo deveria apenas cumprir seu papel formal.
Outro momento interessante do filme, entre tantos, ocorre quando Abel (espião soviético) em conversa com James Donavan, indaga o porquê do advogado nunca lhe ter perguntado se ele era inocente. Donavan respondeu: não me importa. O que importa é que o Estado é que deve provar isso. E não o contrário.
O ônus da prova, como decorrência da presunção de inocência, é sempre do Estado acusador.
Nota-se também que para aniquilamento do inimigo, a manipulação da sociedade através da mídia se faz necessária. No filme, a opinião pública(da) transforma o advogado defensor do inimigo também em inimigo. Neste particular, chama a atenção à cena em que Donavan no metrô para o trabalho está lendo o mesmo jornal manipulador que os demais passageiros, sendo observado por eles com um misto de repulsa e ódio no olhar, posto que a imprensa – em desprezo ao direito de defesa – também, passou a tratar o advogado do espião como inimigo.
Por fim, quando o “Livro de Regras” é abandonado o Estado Democrático de Direito é assaltado. Nada, assevera Rubens Casara, “ao menos nas democracias, legitima a ‘flexibilização’ de uma garantia constitucional, como a presunção de inocência tão atacada em tempos de populismo penal (…)”.[5] Quando as enigmáticas “razão de estado” ou a perversa lógica de que “os fins justificam os meios” começam a prevalecer sobre as verdadeiras razões do Estado de direito é porque a fronteira que separa o Estado democrático do Estado fascista e de exceção já foi ultrapassada.
Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado e Doutor em Ciências Penais (UFMG).
[1] Disponível em:< http://www.conjur.com.br/2016-fev-11/senso-incomum-fator-stoic-mujic-juiza-kenarik-papel-advogados-hoje
[2] Disponível em:< http://www.conjur.com.br/2016-fev-11/senso-incomum-fator-stoic-mujic-juiza-kenarik-papel-advogados-hoje
[3] ZAFFARONI, Eugenio Raùl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 11.
[4] Idem, p. 82.
[5] CASARA, Rubens. “Vamos comemorar um tribunal que julga de acordo com a opinião publica?” in Brasil em Fúria: democracia, política e direito. Giane Ambrósio Alves et al. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2017.
Fonte: http://justificando.cartacapital.com.br