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O burro com sela de prata

Por: Alex Neder.
Era uma manhã bem cedo,  com um friozinho gostoso e o canto melodioso dos canários da terra anunciava o raiar de mais um dia, após uma daquelas chuvas fortes que estamos vendo acontecer no mês de novembro, deixando o ar com cheiro de mato molhado. Esse momento me arremeteu ao passado distante e  me fez lembrar de uma passagem que muito me serviu e ainda serve na vida profissional, que aprendi com meu saudoso pai  Dr. João Neder, quando ainda era adolescente e acompanhava aquela lenda viva pelos interiores de Goiás, logo depois que se aposentou da promotoria e regressou a advocacia cheio de energia e com uma grande vontade de trabalhar, e eu de apreender.
Estávamos na nossa casa no Setor Sul, quando chegou ali um cliente do meu pai, um homem gordo e alto, desceu da caminhonete modelo novo, branca, mas toda cheia de barro marrom das estradas que ainda não tinham asfalto, e que todo fazendeiro bem sucedido gostava de ostentar. Foi descendo da caminhonete e bateu a porta com muita força, logo vi que parecia estar com raiva de alguma coisa, foi se aproximando em nossa direção, na época nossa casa não tinha muro na frente, e a rua era de terra, aliás, nossa  rua , 132- A, foi uma das últimas ruas a ser asfaltada no setor sul. O homem com a cabeça baixa com chapéu foi chegando e falou: – “boa tarde dotor!”   Meu pai respondeu: -“Boa tarde seu Raimundo! Que surpresa!  Aconteceu alguma coisa? Vamos entrar.”  Logo na entrada de casa era o escritório do meu pai que tinha umas cadeiras com plástico trançado de cor vermelha, nós nos assentamos e meu pai perguntou: – “O que posso ajudá-lo?” O homem com a cara fechada, foi logo dizendo: -“Eu contratei o senho, porque me disseram que era advogado bão e brabo, fiquei sabendo que teve  lá na cidade onde meu fio ta preso, e  foi tomar um café com o juiz, e com o promotor, me disseram que conversou também com o delegado, o senhor também trocou com ele uns dedo de prosa, e meu filho continua preso lá, naquela cadeia suja. A mãe dele clamou pra mim, – que diabo de advogado é esse que ôce arrumou, que veio na cidade toma café com as autoridade e não soltou o Miguel?”
O tal Miguel, conhecido como Miguelzinho, tinha ido numa festa de São João, enchido a cara de cachaça, criado uma confusão danada,vindo a  matar  um  e ainda ferindo outro, estava preso por homicídio qualificado e tentativa  também qualificada, preso em flagrante. Embora fosse jovem, com bons antecedentes e, inclusive, trabalhador na fazenda do pai, quando bebia tornava-se uma pessoa violenta, tanto que fez um estrago na festa de São João da própria família, pessoas tradicionais na cidade. Dizia  a família que o Miguelzinho sofria da cabeça. Fato que foi atestado por medico psiquiatra.
Foi então que meu pai, pacientemente, abriu uma pasta preta que ele sempre guardava os documentos, tirou dali uma petição e explicou para o tal sujeito que  ele foi até a cidade e pediu a liberdade  do Miguel,  que explicou ao Juiz que ele poderia responder o processo em liberdade, pois  além de ser primário, tinha residência fixa e trabalho honesto,  que não criaria nenhum obstáculo para a marcha processual, e que precisava de tratamento médico. Além de tudo, que argumentara, ressaltou que o preso tinha advogados constituídos nas pessoas de meus pais.
Mesmo com toda essa explicação, o tal homem se mostrava inconformado, pois queria um advogado que chegasse à cidade, gritasse com o juiz, agredisse o promotor e intimidasse o delegado, foi quando meu pai, com toda a sinceridade que lhe era peculiar, disse à criatura: -“Olha aqui, senhor Raimundo, o senhor contratou um advogado, se o senhor queria um jagunço, o senhor veio ao lugar errado! Outra coisa, eu sou seu advogado  e de sua família e não sou seu empregado, o senhor me respeita.”
Foi aí que a “ficha” do chapéu atolado caiu, mas já era tarde demais, ele tinha conseguido irritar o meu pai que não levava desaforo pra casa,  muito menos iria aturar desaforo dentro da sua casa e colocou o tal sujeito, com toda a sua ignorância, pra fora.Isso foi numa quinta feira.
Quando o tal sujeito entrou na caminhonete e partiu, meu pai me falou: -“Está vendo, meu filho, isso é um burro com cela de prata.” Eu logo indaguei: -“Burro com sela de prata?”  Ele falou: -“Não adianta o sujeito ter riqueza, se ele é burro, o dinheiro compra muita coisa, mas para a ignorância não tem remédio”.
No início da semana vindoura, meu pai recebeu um telefonema do cartório dizendo que o Juiz tinha deferido o pedido de liberdade provisória  do Miguel, mas que o Juiz queria a presença do meu pai para soltar a criatura, que sem a presença do meu pai e do promotor ele não iria soltar o preso. O juiz queria dar um sabão no rapaz antes de soltá-lo e adverti-lo que se não comportasse até o julgamento, voltaria para  a prisão.
Meu pai disse que no outro dia ele estaria na comarca cedo, e que  avisasse o juiz. Eu perguntei: -“Mas o senhor brigou com o pai do preso, como o senhor vai lá?”  Meu pai disse:  -“Eu dei minha palavra ao juiz que eu iria acompanhar o caso até o final se ele soltasse o rapaz, agora eu vou lá dizer que ele pode soltar, mas eu não advogo mais para esse senhor Raimundo.”
Quando  já era tarde da noite, escutamos um barulho de carro na porta de casa  e logo a campainha  tocou, eu fui abrir, meu pai disse:   -“Cuidado! Espera!” Acendi a luz de fora e vi  a caminhonete do tal senhor Raimundo,  logo avisei meu pai, que mandou eu abrir a porta,e lá estava o senhor Raimundo e a família inteira,inclusive a mulher que botou fogo no marido, para pedir desculpas ao meu pai pela forma grosseira que o tratou. Apesar de ser um homem de temperamento forte e atitude firme, vendo aquela criatura tosca a sua frente pedindo desculpas e acompanhado da mulher e filhos, meu pai o desculpou com a condição de não se meter na defesa que iria patrocinar, e assim foi feito. Depois que os visitantes noturnos foram embora, eu perguntei ao meu pai:  -“Se eles não tivessem vindo aqui em casa, o senhor iria mesmo lá na cidade?” Meu pai me respondeu que sim. Eu falei:  -“Mas o senhor já tinha saído da causa, mandou o homem que ofendeu o senhor embora.” Meu pai, calmamente, me respondeu:  -“Filho, eu iria , eu dei a minha palavra ao juiz e ao promotor.” E olhando nos meus olhos disse: -“Preste bem atenção, um homem sem palavra não vale nada!”
Moral da história, devemos  honrar a nossa palavra em qualquer circunstância, e perdoar, principalmente os ignorantes que acham que advogado é como se fosse jagunço, são os “burros com sela de prata”, infelizmente a pobreza de espírito é imensa, qualquer semelhança com pessoas e fatos é mera coincidência.
Alex Neder é advogado criminalista, consultor jurídico e presidente da ABRACRIM-GO.

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