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CONDUÇÃO COERCITIVA: O SIMBÓLICO COMO NEGAÇÃO DO DIREITO – POR LEONARDO AVELAR GUIMARÃES E LEONARDO MARQUES VILELA

O procedimento da condução coercitiva, lamentavelmente, ainda está previsto no art. 260 do Código de Processo Penal, que assim dispõe:
“Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença. ”[1]
Inicialmente, é importante que se diga que o Código vigente, datado de 3 de outubro de 1941, veio à tona no chamado Estado Novo (ditatura Vargas, como se refere à historiografia). Tal período, de regime autocrático, não era marcado pelo respeito ao devido processo legal ou a princípios de garantia do cidadão contra o arbítrio e controle das ações estatais, mesmo porque a não observância dos direitos humanos era institucionalizado como política criminal.
Mais de 70 anos depois, apesar de algumas “emendas”, nosso Código de Processo Penal continua tendo a mesma missão contida na exposição de motivos: servir como instrumento forte de ”luta contra o crime”, o que se constata mediante sua matiz essencialmente inquisitória, com extrema concentração de poder na figura do juiz, inclusive com a abertura da gestão e produção de provas em prol do chamado livre convencimento deste. Assim, não é surpresa que vários artigos da legislação atual não tenham efetividade[2], muito embora não tenham ainda sido formalmente revogados por lei editada pelo Congresso Nacional.
Voltando à condução coercitiva, da simples leitura de seu dispositivo legal, verifica-se que aqueles que ainda optam pela condução coercitiva como procedimento apuratório, sequer atentam para o seu pressuposto legal e condicionante: “se o acusado não atender à intimação”. A regra, expressamente, limita a sua utilização para os casos em que o acusado não atender a intimação para prestar o depoimento.
Além disso, sob o ponto de vista técnico, “acusado” é aquele contra quem se imputa um fato com relevância penal, o que pressupõe a existência de acusação formal e admitida por um juízo criminal. Não é possível, pois, a sua utilização no Inquérito Policial, durante a investigação criminal, para se atingir o suspeito/investigado, por manifesta ausência de previsão legal que possibilite a realização de ato investigativo deste teor, ainda que autorizado pelo juiz. Relembrando que no código existe referência a ‘acusado’, para tratar do formalmente acusado e ‘indiciado’, para tratar do investigado por fato criminoso.
Deve ser questionado ainda se a condução coercitiva está em conformidade com a Constituição e com as Convenções Internacionais de Direitos Humanos assinadas pelo Brasil. A resposta é negativa. Esse é o ponto principal desta análise: o dispositivo em tela não passa pelo filtro constitucional e convencional, sendo manifestamente incompatível com a normatividade superior e posterior ao início da vigência do Código do Processo Penal de 1941.
O direito brasileiro prevê, como norma de garantia, o princípio da não-autoincriminação, que pressupõe o deslocamento do suspeito/investigado/acusado como mero objeto da investigação/acusação penal para a condição de sujeito de direitos com presumida inocência.
Para inverter a presunção da inocência o Estado deve necessariamente investigar para obter elementos que sustentem uma acusação e como consequência, uma condenação, que somente terá validade se todo o procedimento for pautado no respeito as garantias Constitucionais.
Sendo a investigação, função importante e exclusiva do Estado, não se pode exigir, de quem quer que seja, qualquer obrigação jurídica de contribuir para as investigações/acusações penais formuladas.
Outra denominação comum ao princípio da não-autoincriminação é a expressão latina nemo tenetur se detegere. Ao contrário do que se diz no senso comum, a norma não é originária do direito brasileiro, mas prevista, muito antes, em Tratado Internacional datado de 1969,[3] do qual o Brasil é signatário e adentrou no direito brasileiro em 1992 com o decreto presidencial 678/92.
O artigo 8o da Convenção Americana sobre Direitos Humanos traz garantias judiciais a qualquer pessoa investigada ou acusada criminalmente. Essas garantias não visam beneficiar criminosos, mas, sim, evitar excessos na investigação ou na formulação da investigação criminal, permitindo-se, também, participar da função jurisdicional. O popular direito de não se autoincriminar garante que o investigado ou acusado possa permanecer em silêncio durante sua inquirição, conforme preceitua o item 2, alínea ‘g’ do artigo[4].
Já a alínea ‘c’ do item 2 do mencionado dispositivo determina que ao acusado seja concedido os meios adequados para a preparação de sua defesa. Isto significa que a ele deve ser garantido o acesso ao que já existe de formalizado no procedimento apuratório/processual e, consequentemente, à concessão de tempo suficiente para exercer sua defesa.
Há previsão legal expressa deste direito na legislação brasileira, prerrogativa da advocacia desde 1994, além de ser a interpretação que o STF consolidou como adequada à situação do investigado no âmbito da investigação penal, consoante súmula vinculante n.º 14 do Supremo Tribunal Federal.
A condução coercitiva, então, nos moldes utilizados, tem como único objetivo evitar que o acusado possa constituir advogado, ter acesso ao inquérito e, consequentemente, tenha tempo para preparar sua defesa. Por conseguinte, figura como uma coação psicológica indireta para que o investigado não exerça seu direito ao silêncio, temendo medidas mais graves de restrição de sua liberdade.
É importante que se destaque outro ponto: como é dever do Estado proceder a investigação e coletar provas legítimas para acusar alguém, a manifestação do investigado/acusado em qualquer procedimento apuratório/acusatório não pode ser vista senão como uma oportunidade para o exercício do direito de defesa de modo direto (autodefesa). Assim, se não houver interesse na realização da autodefesa, nenhuma consequência jurídica pode lhe advir.
Aliás, na fase processual, depois de já recebida a denúncia, torna-se facultativo ao acusado exercer, em audiência preparatória ao seu julgamento, a sua autodefesa. Como o ato é de interesse exclusivo do acusado, o seu não comparecimento em qualquer ato do procedimento, não pode ser visto senão como uma manifestação tácita de que ele abdica do exercício da referida modalidade defensiva[5]. Não é por outra razão que, nesses casos, ocorre a revelia, tratada no art. 367 do CPP, tendo como consequência jurídica apenas a dispensa de intimação pessoal para os atos ulteriores do procedimento.
Assim, a condução coercitiva afigura-se como prática autoritária, arbitrária e ilegítima, que ignora tanto os preceitos da Convenção Internacional, quanto da própria Constituição. Tem, portanto, efeito simbólico de se apregoar responsabilidade penal sem devido processo legal, sobretudo nos casos onde ocorre publicidade da medida.
Em vários casos, as conduções coercitivas são acompanhadas de grande publicidade por parte da autoridade policial — inclusive com entrevistas coletivas — utilizando forte aparato nomeado de “força tarefa” ou “operação conjunta” com objetivo de destacar simbolicamente a eficiência do sistema punitivo.
Embebido apenas da necessidade de mostrar uma representação do funcionamento da máquina punitiva, revela-se um quadro característico da sociedade do espetáculo descrita por Guy Debord[6]. Rubens Casara faz a necessária conexão dessa visão sociológica para explicar a atual lógica de atuação penal nos casos em que se espetaculariza o caso antes mesmo da investigação/processo/julgamento pelas agências que exercem o poder punitivo, ao denominar o que se assiste como o Processo Penal do Espetáculo. Nele, destaca Casara, com apoio em Debord, “não se deseja chegar a nada que não seja ele mesmo” [o espetáculo]. Daí porque, a função de garantia do Processo, “inerente ao processo penal no Estado Democrático de Direito (marcado por limites ao exercício do poder), desaparece para ceder lugar à dimensão de entretenimento[7]. Quem o vê assim, desconectado da normatividade que funda e põe em funcionamento o Sistema de Justiça Criminal, conclui, apressadamente, que a máquina punitiva funciona e está em plena oposição à inocência.
No Processo Penal do espetáculo, as informações acerca do fato investigado decorrem exclusivamente da inquestionável fala da autoridade responsável pelo caso, que já define todas as premissas com as quais fundamenta o resultado da investigação. As premissas, uma vez publicizadas, e aliadas à utilização da “prisão temporária” ou da “condução coercitiva”, coloca a notícia sobre o crime apurado e o modo de se conduzir a apuração em destaque, simbolizando-se a punição, o que se dá em detrimento da própria apuração, fim ao qual busca a investigação criminal.
Um ponto para a reflexão: uma investigação voltada para se apurar fatos jamais se volta contra pessoas suspeitas, mas, sim, para buscar arrecadar informações que confirmem ou infirmem a notícia que aportou antes de ser instaurada.
Utilizar a condução coercitiva como ato de investigação criminal despreza não só a normatividade que acima se aludiu, mas, sobretudo o próprio objeto constante da notícia-crime, porque o procedimento apuratório é direcionado para o apontamento de contradições na fala do suspeito, decorrendo, daí, a presunções de mentiras, desfalcastes, enganos e diatribes; o que, não raro, são possíveis de se ocorrer em razão do efeito surpresa causado pela precariedade de qualquer assistência jurídica de quem presta depoimento nestas circunstâncias.
Investigar notícias sobre crimes é extremamente importante, mas deve ser feito mediante a observância irrestrita à principiologia constitucional, que estabelece não só direito de defesa e, por isto, o direito ao advogado, como também, consequentemente, o direito de tomar conhecimento do que se apura, para, assim, exercer o direito à não autoincriminação e a autodefesa, tudo em consonância com a previsão constitucional do “status” jurídico de inocência, normatização que incompatibiliza a adoção da condução coercitiva em qualquer apuração criminal.
Por fim, importa saber que tramitam no Supremo Tribunal Federal as ADPF´s (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 395 e 444 que questionam a não recepção constitucional da condução coercitiva. Ambas estão pendentes de inclusão na pauta pela presidência do Tribunal. Esperança, enfim, de que a Corte ponha fim a essa prática inquisitorial e, assim, faça valer a normatividade jurídica vigente. Aliás, um dos traços do Estado de Exceção, é justamente se relegar a ordem jurídica, a pretexto de se resolver um conflito interno, hipotético configurador de um ilícito penal, o que se faz de maneira apriorística, imediata e simbólica, fazendo apenas parecer para quem a vê, numa óptica obtusa, que as instituições estão funcionando, o Sistema de Justiça criminal é eficiente e o Estado não é leniente com qualquer ato ilegal.
[1] Código de Processo Penal – art. 260.
[2] http://justificando.cartacapital.com.br/2016/06/17/o-codigo-de-processo-penal-de-1941-tudo-o-que-voce-disser-podera-ser-usado-contra-voce/
[3] Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 1969
[4] Art. 8º (…) 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada;
[5] STJ – RHC 59564 – Rel. min. Maria Thereza de Assis Moura – Dje 10/06/2015 e STJ – HC 87.875/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 10/02/2015, DJe 23/02/2015).
[6] DEBORD, Guy. A Sociedade do espetáculo.
[7] CASARA, Rubens R. R.. Processo Penal do Espetáculo. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
Imagem Ilustrativa do Post: Operações Policiais // Foto de: Fotos GOVBA // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/agecombahia/6020523995
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Fonte: http://emporiododireito.com.br

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