O foro privilegiado no mundo. Afinal, sua queda avançou no Brasil
Depois que oito ministros tinham votado pela restrição do foro privilegiado, o ministro Dias Toffoli, num estranho pedido de vista, alegou que precisava de mais tempo para estudar o processo, e com isso impediu a decisão no dia 23 de novembro de 2017, pelo Supremo Tribunal Federal sobre o alcance do foro privilegiado em crimes cometidos por deputados e senadores.
Embora a maioria dos ministros já tenha se manifestado a favor de restringir o foro de parlamentares no STF aos crimes relacionados ao exercício do mandato, com o pedido de vista de Toffoli, não havia data para o julgamento ser retomado.
Ao final daquela sessão, a presidente, ministra Carmen Lúcia, fez uma proclamação provisória do resultado: oito dos 11 ministros votaram pela restrição do foro privilegiado de parlamentares federais – 7 acompanharam o relator e um, Alexandre de Moraes, divergiu em relação ao alcance da restrição.
O foro por prerrogativa de função, o chamado “foro privilegiado”, é o direito que têm, entre outras autoridades, presidente, ministros, senadores e deputados federais de serem julgados somente pelo Supremo, e nesse processo analisa justamente o alcance do foro privilegiado, ou seja, em que situações a prerrogativa valerá.
Para justificar o pedido de vista, Toffoli ponderou que o Congresso também discute outras formas de restringir o foro privilegiado.
A proposta em estágio mais avançado de tramitação, aprovada na véspera daquele julgamento interrompido, em comissão da Câmara, deixa no Supremo somente casos ligados aos presidentes da República, da Câmara, do Senado e do próprio STF. Na verdade, o projeto do Legislativo é mais radical: o que parece estranho: como, por exemplo, um ministro do STJou de qualquer corte iria submeter-se ao julgamento de um juiz de primeiro grau? Se bem que seria a aplicação da Justiça para todos.
“Esse é um tema que tem sido debatido por toda sociedade brasileira. O simples fato de ter colocado este tema em debate fez com que o próprio Congresso Nacional fosse instado a deliberar sobre ele. Discutir, e mais do que discutir, deliberar, porque já há uma PEC aprovada no Senado e cuja admissibilidade ocorreu nesta semana”, disse o ministro.
No julgamento, foram apresentadas duas formas de restringir o foro. A primeira, proposta pelo ministro Luís Roberto Barroso e que já conta com seis votos, deixava no Supremo somente os processos sobre delitos cometidos durante o mandato e necessariamente relacionados ao cargo.
Na prática, a proposta de Barroso, seguida pela maioria dos ministros, também tira do STF e leva para a primeira instância acusações contra parlamentares por crimes como homicídio, violência doméstica e estupro, por exemplo, desde que não ligados ao cargo.
A segunda proposta, de Alexandre de Moraes, deixa no Supremo todas as ações sobre crimes cometidos durante o mandato, mesmo aqueles não ligados ao exercício da função de parlamentar. Para Moraes, mesmo esses crimes, ainda que sem relação com o cargo, mas se cometidos durante o exercício do mandato, devem ser julgados pelo STF.
Ao final da sessão, Barroso disse que, no término do julgamento, após a proclamação do resultado final e caso sua proposta prevalecesse, a regra poderia valer também para outras autoridades com foro no STF, como ministros de governo.
“Meu voto era relacionado a parlamentar federal. Para esta situação eu propus uma regra geral e acho que essa regra valerá para todas as situações, ou seja, eu penso que a maioria do Supremo endossará que a regra geral é de que as pessoas devem ser julgadas pelo juiz de primeiro grau”, disse.
O foro privilegiado das autoridades brasileiras não tem paralelo no mundo. Levantamento feito em 20 países da América, Europa, África e Ásia mostra que o benefício aqui não só atinge um número maior de pessoas como pode ser usufruído por autoridades dos três Poderes.
Enquanto em alguns Estados brasileiros, como o Rio de Janeiro, até vereadores usam o direito do julgamento em instâncias diferentes do restante população, nos Estados Unidos, nem o homem mais poderoso do mundo, o presidente Donald Trump, tem o benefício. Por lá, tanto integrantes do Executivo como os parlamentares podem ser julgados na primeira instância da Justiça.
Na Alemanha, a primeira-ministra Angela Merkel também tem tratamento comum. Apenas o presidente, que exerce uma função menos relevante no país, pode ser julgado pela Corte Constitucional nos casos de crime de responsabilidade – desde que autorizado, antes, pelas Câmaras do Parlamento.
O estudo produzido pelo consultor legislativo da Câmara dos Deputados Newton Tavares Filho, em julho do ano passado, analisou como funciona o sistema de julgamento de autoridades em 16 países (França, Itália, Alemanha, Portugal, Espanha, Áustria, Dinamarca, Noruega, Suécia, Estados Unidos, México, Venezuela, Colômbia, Peru, Chile e Argentina). “Nenhum país estudado previu tantas hipóteses de foro privilegiado como previu a Constituição Brasileira de 1988”, conclui o relatório do consultor legislativo.
Não há dados precisos sobre o número exato de autoridades com foro no Brasil, mas levantamento mais recente feito pela Associação dos Juízes Federais (Ajufe) mostrou que são 45,3 mil beneficiados nas diversas instâncias do Poder Judiciário. O número é mais do que o dobro da estimativa conhecida até então, feito pela força-tarefa da Lava-Jato, em 2015 – de 22 mil pessoas com foro especial.
Além dos países avaliados pelo estudo da Câmara, sabe-se como funciona o foro na China, na Inglaterra e em dois países da África: Cabo Verde e Moçambique. No país asiático, os 2.987 integrantes do Congresso Nacional Popular chinês só podem ser julgados com a autorização da cúpula da Casa, formada por 178 representantes.
A Inglaterra é outro país que não concede o benefício nem para a sua mais alta autoridade do governo. A primeira-ministra Theresa May ou qualquer um de seus ministros e parlamentares estão sujeitos a julgamento na primeira instância da Justiça como qualquer outro cidadão do país.
Em Cabo Verde, país da África que, assim como o Brasil, foi colonizado por Portugal, a Constituição não prevê o benefício do foro. Já em Moçambique, os deputados só podem ser presos em flagrante e processados após autorização votada no Parlamento.
Mas o caso brasileiro é raro. Os países mais desenvolvidos não têm foro e as autoridades respondem diante dos juízes de primeiro grau. A ampliação do número de autoridades com direito ao benefício no país aconteceu principalmente a partir da promulgação da Constituição de 1988, quando houve um alargamento do número de autoridades com direito ao foro. As constituições estaduais, que foram promulgadas em seguida, ampliaram o foro para outras autoridades, como comandantes da Polícia Militar e delegados. O único país que se aproxima do Brasil no foro privilegiado, mas, mesmo assim, com uma quantidade menor de autoridades beneficiadas, é a Colômbia, onde o presidente só pode ser julgado com autorização do Senado; parlamentares, o procurador-geral, ministros, governadores, magistrados, generais e almirantes também têm o foro especial.
Assim como no Brasil, na Colômbia já ocorreram casos de políticos que se valeram do foro privilegiado para tentar postergar apurações: Num escândalo conhecido como “o caso dos parapolíticos”, uma ampla investigação iniciada em 2006 que apurou a ligação entre congressistas e grupos paramilitares de extrema-direita, mais de 30 deputados abriram mão de seus mandatos para que o processo fosse direcionado a uma outra instância. Assim, recomeçaria do zero. Em 2009, no entanto, a Corte Suprema de Justiça decidiu que os políticos não tinham o direito de abrir mão do foro.
A análise das constituições pelo mundo mostra ainda que o benefício de escapar das regras comuns da Justiça muitas vezes é dado a monarcas. Na Suécia, por exemplo, o rei tem imunidade absoluta. Já as demais autoridades do país não possuem qualquer privilégio de foro. Na Noruega, o rei também está fora do alcance do Poder Judiciário. Mas os representantes do Conselho de Estado, da Corte Suprema e do Parlamento contam com o foro.
Modelos semelhantes ao proposto pelo ministro Luís Roberto Barroso, de só conceder o benefício para os crimes cometidos no exercício do cargo e for fatos ligados a ele, já são adotados em outros países. Em Portugal, por exemplo, o presidente, o primeiro-ministro e o presidente da Assembleia são julgados pelo Supremo Tribunal de Justiça apenas em casos de crimes eventualmente praticados no exercício do mandato. Delitos cometidos no período fora da função são julgados após o político deixar o poder, na primeira instância. Parlamentares do país não têm qualquer benefício.
O propósito de Barroso era desafogar o STF, que hoje tem dificuldade para dar andamento a todas as ações penais que envolvem políticos, pois apenas 0,74% dos processos concluídos no Supremo, entre 2011 e 2016, resultaram em condenação. Na verdade, o STF não tem vocação, nem estrutura, para instruir processos; tribunal existe é para rever decisões de instâncias inferiores. A lei começou a se igualar para todos.
Mas, levando o processo de volta ao Plenário, Toffoli acompanhou o relator, seguido por Gilmar Mendes e Lewandowski, para pacificar o entendimento.
Agora, muitos daqueles que se julgavam bacanas e intocáveis verão seus processos tomarem rumo na instância de piso, e centenas de investigados e processados estarão no seu devido lugar. O temor não é outro, senão ver estancada a possibilidade de prescrições, que, após anos e anos, vêm acontecendo, para alívio dos bandidos que, mamando nas tetas do Governo, empoleiram-se nos cargos e até formando oligarquias.
(Publicado no “Dário da Manhã” de 01/06/2018)