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A gestão da prova pelo juiz como critério identificador do sistema processual penal vigente

Filipe Maia Broeto Nunes

INTRODUÇÃO

O presente artigo propõe-se a analisar o sistema processual penal vigorante no processo penal brasileiro, a partir do critério da gestão da prova pelo juiz, preconizado por Franco Cordero, na Itália, e por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Aury Lopes Jr., Camilin Marcie de Poli e Sylvio Lourenço Da Silveira Filho, por todos, no Brasil. Para tanto, visando a uma melhor exposição do tema, dividiu-se o trabalho em quatro tópicos específicos, perfunctoriamente delimitados na sequência.

Numa primeira abordagem, discorreu-se sobre a “instrumentalidade constitucional do processo penal e o devido processo legal: noções gerais”, abordando-se não uma visão do processo a serviço (apenas) do direito material, mas, sim, a serviço da Constituição Federal. É dizer, trabalhou-se o processo como um instrumento de efetivação de direitos e garantias fundamentais constitucionalmente assegurados ao cidadão, que figura no polo passivo de um processo penal e que, bem por isso, é a parte hipossuficiente da relação processual penal – daí falar-se em instrumentalidade constitucional.

Num segundo momento, teceram-se algumas considerações acerca de “a imparcialidade como princípio supremo do processo penal”, evidenciando-se a necessidade que o processo (mormente o penal) tem de ser conduzido por um juiz imparcial e equidistante das partes, sob pena de anular-se todo o conjunto principiológico contido, explicita ou implicitamente, na Constituição Federal de 1988, que funciona como um verdadeiro escudo do indivíduo frente ao poder punitivo estatal.

Mais adiante, no terceiro tópico – “noções gerais sobre os sistemas processuais penais” –, o qual se subdivide em três subitens, procedeu-se a uma exposição histórico-jurídica dos sistemas processuais penais, explicitando-se as principiais características do sistema acusatório, inquisitório e misto, fazendo-se, quanto a este último, ponderações relevantes, no sentido de que se trata de um insofismável eufemismo, cujo objetivo é camuflar a real faceta dos sistemas assim adjetivados, os quais não raramente possuem indisfarçavelmente um cariz inquisitivo.

Por fim, no quarto e derradeiro tópico, o qual se prestou à abordagem da “iniciativa probatória do juiz como elemento de identificação do sistema processual penal brasileiro”, buscou-se evidenciar que, a despeito de a Constituição Federal de 1988 ter instituído um sistema acusatório, o que (ainda) se verifica, induvidosamente, é a plena vigência de um sistema processual penal inquisitório, calcado num princípio inquisitivo.

1. INSTRUMENTALIDADE CONSTITUCIONAL DO PROCESSO PENAL E DEVIDO PROCESSO LEGAL: NOÇÕES GERAIS

Praticado o delito, nasce para o Estado o poder-dever de punir o violador de suas normas. Não se pode perder de perspectiva, porém, que da prática delitiva até a imposição da sanção, há um caminho a ser percorrido no qual direitos e garantias fundamentais figurarão como bússola, delimitando o atuar estatal. Isso porque, como bem observa Aury Lopes Jr., “O processo, como instituição estatal é a única estrutura que se reconhece como legítima para a imposição da pena”.[1]

Nesse sentido, uma vez que não existe outro modo, senão por meio do processo penal, para se punir um agente delitivo, entende-se que “o processo penal é o caminho necessário para a pena”[2]; daí a afirmação de seu caráter instrumental com relação ao direito penal, bem como à própria sanção.

Há de se ter em mente que, quando se diz que o processo penal é instrumental[3], não se quer retirar a sua significância ou autonomia[4] científico-dogmática, tampouco afirmar que seja menos importante que o direito material. Todo o oposto! Como asseverado, sendo o processo penal o caminho inexorável à aplicação da pena, essa, para existir, precisa daquele, na medida em que, como bem observa Aury Lopes Jr.:

Não é possível a aplicação da reprovação sem o prévio processo, nem mesmo no caso de consentimento do acusado, pois ele não pode se submeter voluntariamente à pena, senão por meio de um ato judicial (nulla poena sine iudicio). Essa particularidade do processo penal demonstra que seu caráter instrumental é mais destacado que o do processo civil. [5]

Observe-se, assim, que a instrumentalidade do direito processual penal deve ser entendida, hodiernamente, não como (“apenas”) um meio necessário à imposição da pena, mas, sobretudo, como um – imprescindível – mecanismo através do qual se efetivam os direitos e garantias fundamentais, como fatores determinantes para a legitimação da pena. Em apertada síntese, é o processo penal a serviço da Constituição.

Trata-se, nesse panorama, como bem observa Aury Lopes Jr., de uma instrumentalidade constitucional. Vale dizer, de “um instrumento de proteção dos direitos e garantias individuais. É uma especial conotação do caráter instrumental e que só se manifesta no processo penal, pois trata-se de instrumentalidade relacionada ao Direito Penal, à pena, às garantias constitucionais”.[6]

Nesse cenário, tendo em vista que o processo penal objetiva a máxima efetivação dos direitos e garantias fundamentais, consubstanciando-se em verdadeiro escudo do indivíduo frente ao exercício arbitrário do poder punitivo estatal, há no arcabouço principiológico constitucional, dentre tantos, o postulado do due process of law, que vem a ser, na dicção de Gustavo Badaró, “um princípio síntese, que engloba os demais princípios e garantias processuais assegurados constitucionalmente. Assim, bastaria que a constituição assegurasse o devido processo legal e todos os demais princípios dele defluiriam”.[7]

Com efeito, não se pode negar que é justamente do devido processo legal que dimana diversos outros princípios, sem os quais o processo não seria devido, mas, sim, indevido, falacioso, simbólico. A corroborar tal entendimento, Gustavo Badaró sustenta que:

Não se pode imaginar um due process que se desenvolva perante tribunais de exceção ou perante juízes diversos daqueles que definidos na Constituição. O processo não será devido, aliás, nem processo será, mas sim mero procedimento, se não se desenvolver em contraditório. Um processo secreto e com decisões não motivadas será um processo arbitrário.[8]

De se concluir, portanto, que o processo, para ser devido, deve, entre outras coisas, desenvolver-se perante um juiz natural, respeitando, sempre e a qualquer custo, o contraditório (formal e substancial), a ampla defesa, a razoável duração, a presunção de inocência, etc. Sem isto, ter-se-á, quando muito, um mero procedimento, mas jamais um due process of law. Destarte, é com base nesses fundamentos que se sustenta a instrumentalidade constitucional do processo penal, o qual se mostra não como simples instrumento do direito material, mas, sobretudo, como imprescindível ferramenta na efetivação de direitos e garantias fundamentais constitucionalmente assegurados.

2. A IMPARCIALIDADE COMO “PRINCÍPIO SUPREMO DO PROCESSO”[9] PENAL

O princípio do devido processo legal é, à margem de qualquer dúvida, aquele que está em posição de destaque no arcabouço principiológico pátrio. Ocorre, todavia, que sem a necessária imparcialidade/equidistância do julgador, tal postulado e (todos) os seus corolários, sem exceção, perdem força, aplicação, efetividade. Isso porque, na esteira de Carnelutti, citado por Aury Lopes Jr., “el juicio es un mecanismo delicado como um aparato de relojería: basta cambiar la posición de uma ruedecilla para que el mecanismo resulte desequilibrado e comprometido.”[10] Sem imparcialidade, pois, perde significância toda a principiologia constitucional.

Ainda que em linhas gerais, sobreleva consignar, antes de se avançar no estudo, que imparcialidade e neutralidade não se confundem, a despeito de estarem insofismavelmente próximas. Com efeito, a neutralidade – de impossível atingimento, esclarece-se –, por ser uma “qualidade” subjetiva, está mais ligada a quem o juiz é e em que ele acredita, do que como opera quando atua na condição de julgador.

A propósito, ao tratar da neutralidade, Jadel Silva observa que:

Não há juízes neutros, imunes aos efeitos que sua formação pessoal ou as influências do meio produzem em suas decisões. A beca não os blinda dos componentes de sua formação. O Juiz não é um mero aplicador da lei, um aparelho programado para apenas processar a norma e extrair uma solução, mas sim, um cidadão comum, que traz ao longo de sua vida experiências, conceitos, sentimentos, opiniões, componentes esses que se refletem de forma direta ou indireta na hora de decidir.[11] (grifou-se)

Nesse mesmo sentido, explicitando a ausência de neutralidade do julgador – que é, sobretudo, humano –, Rodolfo Pamplona Filho, juiz do trabalho, afirma ser impossível para qualquer ser humano conseguir abstrair totalmente os seus traumas, complexos, paixões e crenças (sejam ideológicas, filosóficas ou espirituais) no desempenho de suas atividades cotidianas, eis que a manifestação de sentimentos é um dos aspectos fundamentais que diferencia a própria condição de ente humano em relação ao frio “raciocínio” das máquinas computadorizadas.[12]

Destaque-se, contudo, que, se o juiz não é (nem pode ser) neutro, o mesmo não se deve dizer quanto à imparcialidade, a qual traduz sua conduta objetivamente constatável no “palco processual”. Pode-se afirmar, assim, em linhas gerais, que a imparcialidade é a parte visível, tangível do atuar do magistrado. É, noutras palavras, a contenção entre o pensar/acreditar e o agir/fazer. Age, pois, com imparcialidade o julgador que, a despeito de suas inclinações pessoais, suas convicções filosóficas, políticas e ideológicas, trata de modo paritário, igualitário as partes do processo, mantendo-se alheio aos seus interesses.

Nesse panorama, ao dissertarem sobre imparcialidade do magistrado, na clássica obra “Teoria Geral do Processo”, Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco assim se posicionam:

O juiz, por força de seu dever de imparcialidade, coloca-se entre as partes, mas equidistante delas: ouvindo uma, não pode deixar de ouvir a outra; somente assim se dará a ambas a possibilidade de expor suas razões, de apresentar suas provas, de influir sobre o convencimento do juiz. Somente pela soma da parcialidade das partes (uma representando a tese e a outra, a antítese), o juiz pode corporificar a síntese, em um processo dialético. É por isso que foi dito que as partes, em relação ao juiz, não têm papel de antagonistas, mas sim de ´colaboradores necessários´: cada um dos contendores age no processo tendo em vista o próprio interesse, mas a ação combinada dos dois serve à justiça na eliminação do conflito ou controvérsia que os envolve.[13] (grifou-se)

Tamanha a importância da imparcialidade no processo penal[14] que o legislador cuidou de fornecer às partes o instrumento legal hábil a sanar o vício decorrente de sua ausência, qual seja, a exceção de suspeição, manejável em casos de parcialidade do julgador, uma vez que um juiz parcial não julga, e sim (pré)julga; não colabora com a realização da justiça, mas, sim, a estorva.

A bem da verdade, não basta ao magistrado ser imparcial; não satisfaz apenas “uma posição de terzietà, um estar alheio aos interesses das partes na causa”[15], deve, igualmente, demonstrar sua imparcialidade, porquanto, na esteira de Aury Lopes Jr., “existe ainda um alerta para a ‘estética de imparcialidade’ que devem ter os julgadores aos olhos do jurisdicionado”.[16] Não se acredita, pois, em quem não demonstra imparcialidade ao julgar e “isso afeta negativamente a confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar nos jurisdicionados, especialmente na esfera penal”.[17]

Percebe-se, assim, que nesses casos – de parcialidade do julgador –, não há(verá) justiça, senão injustiça travestida, na decisão do julgador que não trata com igualdade as partes do processo (acusação e defesa; vítima e réu); daí dizer-se, valendo-se da consagrada expressão de Magalhães Noronha, que, em processo penal, deve o magistrado comportar-se como um “convidado de pedra”[18]ou, noutras palavras, um espectador[19], jamais como ator, protagonista.

Feitas essas considerações acerca da neutralidade e da imparcialidade, resta concluir que nenhum juiz é neutro, mas todos devem, inexoravelmente, ser imparciais, sob pena de até mesmo o due process of law, como princípio reitor do processo penal, findar maculado e despido de eficácia[20], sem qualquer densidade prática.

Destarte, é com supedâneo nessas constatações que se erige o princípio da imparcialidade à categoria de postulado supremo do processo penal, haja vista que, sem ele, pouco importam o juiz natural, a vedação aos tribunais de exceção, a razoável duração do processo – que certamente conduzirá o feito mais velozmente à condenação –, o contraditório – que, sem imparcialidade, não passa de mera simbologia, letra fria de lei e sem qualquer significado –, a ampla defesa, etc. Sem a imparcialidade, frise-se, todas as garantias constitucionais não passam de meros enunciados vazios, e processo torna-se um faz de contas, simbólico, fantasioso.

3. NOÇÕES GERAIS SOBRE OS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS

Impõe-se esclarecer, ab initio, para inaugurar a temática entelada, o que vem a ser, de fato, um sistema (substantivo) para, depois, qualificá-lo (adjetivá-lo) como inquisitivo, acusatório ou “misto”, haja vista que, “grande equívoco metodológico seria dar início à exposição sem, antes, trazer ao conhecimento a epistemologia da palavra ‘sistema’”.[21]

Ao discorrer sobre os sistemas processuais, Sylvio Lourenço da Silveira Filho, em dissertação apresentada à Universidade Federal do Paraná, com base em Immanuel Kant, explica que “o sistema é o conjunto de proposições deduzidas de um único princípio”[22], de modo que pode ser compreendido como a unidade dos conhecimentos múltiplos sob uma ideia[23].

Já numa perspectiva mais objetiva, aplicada especificamente ao processo penal, Paulo Rangel leciona que o “sistema processual penal é o conjunto de princípios e regras constitucionais, de acordo com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas para a aplicação do direito penal a cada caso concreto”.[24]

Deveras, é justamente por meio do sistema processual penal de uma nação que se pode averiguar seu nível civilizatório, até mesmo por que, segundo J. Goldschimidt, citado por Aury Lopes Jr., “los princípios de la politica procesal de uma nación no son outra cosa que segmentos de su política estatal em general. Se puede decir que la estructura del processo penal de uma nación no es nino el termómetro de los elementos corporativos o autoritários de su Constituición”.[25]

Ainda nessa dimensão, há que se “notar que os sistemas processuais penais refletem as diversidades e interesses políticos e ideológicos imperantes nas diferentes épocas históricas e nos diferentes contextos sociais”.[26]Ou seja, na linha dos ensinamentos de J. Goldschimidt, Camilin Marcie de Poli leciona que são os sistemas processuais penais que “refletem a opção e a concepção de Estado e de indivíduo na administração da justiça, isto é, a luta entre os interesses coletivos e os interesses individuais, entre o princípio de autoridade e a liberdade individual.”[27]

Expostas essas noções introdutórias acerca dos sistemas processuais, antes que se lhes analisem de forma mais objetiva, há de se ter em mente, outrossim, que, a despeito de a doutrina os classificar comumente como inquisitivo, acusatório e misto, todos os sistemas, hodiernamente, são mistos ou, noutras palavras, não são puros.

A propósito, sobre o tema em questão, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho sustenta que “Todos os sistemas processuais penais conhecidos mundo afora são mistos. Isso significa que não há mais sistemas puros, ou seja, na forma como foram concebidos”.[28]

Nesse panorama, reconhecendo-se a inexistência, presentemente, de sistemas processuais puros, há que se investigar qual é o princípio informador – ou núcleo fundante – preponderante em cada sistema processual, visto que “ora o processo é prevalentemente acusatório, ora apresenta maiores caraterísticas inquisitoriais”.[29] Portanto, para reconhecer a qualidade de um sistema, há de se compreender, primeiramente, qual seu traço marcante, vale dizer, o núcleo-fundante ou princípio informador.

Por conseguinte, valendo-se das lições de Camilin Marcie de Poli, citando Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, tem-se que “inquisitivo e acusatório são adjetivos de um sistema que se coloca como substantivo e, como tal, não pode nunca ser esquecido. O ponto de partida que a finalidade vai definir como princípio, no caso, ou é princípio inquisitivo ou é princípio acusatório”. [30]

Desse modo, malgrado se entenda, atualmente, que todo sistema é misto, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, com a maestria que lhe é peculiar, adverte que essa terceira espécie de sistema – misto – é, teoricamente, um equívoco, na medida em que o fato de ser misto significa ser, na essência, inquisitório ou acusatório, recebendo a referida adjetivação por conta dos elementos (todos secundários) que de um sistema são emprestados a outro[31].

Em consequência, como mostrar-se-á mais à frente, o sistema sempre terá como ponto principal que o identificará como sendo inquisitório ou acusatório o núcleo fundante, o princípio informador (acusatório – princípio dispositivo; inquisitório – princípio inquisitivo). Agregados a esse núcleo fundante, haverá (inexoravelmente) os elementos secundários, o que autoriza a conclusão de que, mesmo num sistema acusatório, existirão elementos inquisitivos; assim como também o sistema inquisitório agregará, ainda que secundariamente, elementos acusatórios.

Daí dizer-se, com supedâneo nas lições de Aury Lopes Jr., que é grande reducionismo pensar que basta ter uma acusação (separação inicial das funções) para constituir-se um processo acusatório. É necessário que se mantenha a separação para que a estrutura não se rompa e, portanto, é decorrência lógica e inafastável que a iniciativa probatória esteja sempre nas mãos das partes. Somente isso permite a imparcialidade do juiz.[32]

Em arremate, como será trabalhado doravante, não é (apenas) a separação de tarefas que determina o sistema processual que se adota[33], senão que o modo como se delimita a atuação dos sujeitos processuais, uma vez que de nada adianta(ria) se estabelecer, de um lado, um órgão incumbido de promover a acusação, mas, de outro, se permitir que o julgador produza provas. Nesse exemplo, conquanto haja separação de tarefas (e pessoas), se tem verdadeiro sistema inquisitório.

3.1.Do sistema processual penal inquisitório e o princípio inquisitivo

Reitere-se, antes de qualquer coisa, que não há, atualmente, sistema puros, os quais são, precisamente, modelos históricos. Assim se argumenta, na medida em que, como dito anteriormente, todo sistema “inquisitório” terá, como elementos secundários, traços do sistema acusatório, assim como todo sistema acusatório trará, em sua composição – sempre em caráter mediato –, marcas inquisitivas. Daí a importância de se saber as características de cada um para, por meio de análise comparativa, averiguar qual núcleo fundante vigora em determinado sistema processual.

A inaugurar a temática entelada, constata-se, com supedâneo nas lições Jacinto de Mirada Coutinho, que “O Sistema Inquisitório aparece no âmbito da Igreja Católica e tem seu marco histórico (1215) em face do IV Concílio de Latrão”[34], fundamentando-se num possível receio, por parte da Igreja Católica, em perder seu domínio sobre o mundo, haja vista o fato de que sua doutrina vinha carecendo de força, e esse (notório) declínio dogmático, segundo suposições da época, decorria do surgimento de intituladas “doutrinas heréticas”.

Ainda de acordo com Jacinto de Mirada Coutinho:

[…] desde o século anterior (século XII), mais particularmente em seu final, a Igreja Católica se debatia com um fenômeno social interessante: pensavam alguns estar em risco o seu domínio sobre o mundo conhecido, do qual era detentora da grande parte. Sua doutrina – era visível – já não encontrava ressonância plena e, portanto, havia discórdia em alguns pontos capitais. Pensava-se que isso era fruto de “doutrinas heréticas” e, portanto, de postulados contrários àqueles pregados desde Roma. Sabia-se, por sua parte, isso só ser possível em razão de outros fundamentos epistêmicos e, assim, não era tarefa fácil, nem banal, o seu combate.[35] (grifou-se)

Nessa contextura, tal como leciona a pupila de Jacinto de Mirada Coutinho, Camilin Marcie de Poli, em sua obra intitulada “Sistemas Processuais Penais”, o sistema inquisitório foi “criado e instituído como uma resposta defensiva à evolução daquilo que se convencionou chamar de doutrinas heréticas”.[36]

Com efeito, para a Igreja Católica, a vontade divina estava consubstanciada nas sagradas escrituras, competindo ao Magistério – composto pelo Papa e pelos Bispos – transmiti-la ao povo, de modo que, nas questões referentes à fé e à moral, era ele – o Magistério – o único portador da verdade absoluta, o detentor máximo do caminho que conduziria à vida eterna.

Nesse cenário, explica Camilin Marcie de Poli, “não haveria lugar para indagações, questionamentos ou dúvidas, pois tudo já estava esclarecido. Qualquer acontecimento ou indício diverso dessa verdade seria um erro, um equívoco”.[37] Dessa forma, prossegue a autora, “para estar em conformidade com a vontade de Deus, bem como para garantir a vida eterna, bastaria que as pessoas ouvissem e vivessem os ensinamentos do Magistério”.[38]

Assim, estando contida nas sagradas escrituras a vontade Deus, a qual seria transmitida aos povos por meio do Magistério, qualquer pensamento que lhe fosse contrário era compreendido como um ataque à própria divindade, merecendo, por consectário, a devida reprovação. A propósito, na dicção de Coutinho, visando combater os hereges:

Algumas medidas já haviam sido tomadas: Inocêncio III, o papa de então, havia baixado uma Bula (Vergentis in senium), em 1199, equiparando o crime de heresia ao de lesa majestade, historicamente o mais grave dos crimes. Ela, como tal, produziu poucos efeitos, porque eventual punição ainda estava afeta aos leigos que, ademais, começavam a avolumar poder em face do crescimento das nascentes cidades medievais, construídas não pela decadência dos feudos, mas, sobretudo, em função da necessidade dos senhores das caravanas melhor conduzirem e distribuírem suas mercadorias, fato determinante não só da criação dos entrepostos comerciais, mas, principalmente, para serem eles regidos por uma outra mentalidade, ligada ao comércio e, portanto, muito diferente daquilo que se tinha nos feudos.

Entrementes, à vista da reduzida eficácia da singela Bula (Vergentis in senium), de 1199, a qual, como explicitado alhures, equiparou o crime de heresia ao de lesa majestade – o mais grave de todos, à época –, no início do século XIII, Inocêncio III reúne a cúpula da Igreja Católica, em São João de Latrão, para, em 1215, optando pela força, dar origem a um novo modelo processual, qual seja, o inquisitório.

Visando ao aprimoramento do neófito sistema, decide-se, no IV Concílio de Latrão, criar, dentre outras coisas, o “instituto” da confissão pessoal obrigatória, a realizar-se pelo menos uma vez ao ano. Foi, a propósito, a confissão pessoal anual o marco histórico desse novo sistema – o inquisitório. Valendo-se uma vez mais das lições de Jacinto, percebe-se que:

Tudo se consolida com uma Bula de Gregório IX (Ex Excomuniamus), de 1231, donde se delineia o arcabouço técnico; e com a Bula Ad extirpanda, de Inocêncio IV, em 1252, estendida ao mundo em 1254, pela qual abriu-se o espaço definitivo para os métodos utilizados na Inquisição, de modo que Inquisitor e Socius se absolvessem mutuamente por eventuais demasias, entre elas na tortura.[39]

Implementa-se, pois, definitivamente, a barbárie que até hoje causa espécie. A Igreja católica incide no erro que tanto havia criticado no início do catolicismo romano, no qual católicos foram perseguidos, torturados e mortos. Nesse “novo” (e perverso) sistema, o réu, visto como verdadeiro pecador, era o detentor de uma verdade, a qual deveria ser-lhe extraída de qualquer modo, a qualquer preço, admitindo-se, inclusive, a tortura.

Nesse diapasão, o processo assume as feições tiranas dos detentores do poder da época, sendo caracterizado pelo uso da tortura e a predominância do sigilo. Com a bula do Papa Gregório IX em 1231, que instituiu os Tribunais do Santo Ofício, passaram a ser perpetradas toda sorte de crueldades, como execuções em praça pública e torturas em geral.[40] É justamente em virtude disso que se diz ser o acusado, aqui, um mero objeto do processo, despido de qualquer dignidade, do qual se busca extrair uma “verdade”, como dito, de qualquer modo e a qualquer custo.

Diante dessa sucinta exposição histórica e com supedâneo nos ensinamentos da doutrina pátria, costuma-se atribuir ao sistema processual inquisitório, como características marcantes, a concentração de poder nas mãos do juiz, o qual exerce também as funções de acusador e julgador; a confissão do réu como sendo a rainha das provas; a ausência de debates orais, com predominância de procedimentos exclusivamente escritos; a impossibilidade de recusa dos julgadores; os procedimentos totalmente sigilosos; os juízes parciais; a ausência de contraditório; bem como a existência de uma defesa meramente simbólica.

Em reforço ao esposado, valendo-se das lições de Rogério Filippetto e Luísa Carolina Vasconcelos Chagas Rocha, tem-se que:

[…] o sistema inquisitivo, marcado pela ausência de contraditório e paridade processual, era caracterizado pela concentração de atividades de acusação, julgamento e defesa nas mãos de uma só pessoa: o Juiz. Este, ex officio, exercia com liberdade a colheita de provas e, pautado em critérios subjetivos, valorava-as, sendo-lhe oportunizado, até mesmo, o emprego de tortura como forma de compelir o sujeito à confissão, meio probatório considerado suficientemente apto a fundamentar uma decisão condenatória.[41] (grifou-se)

Daí que, na mesma linha, Aury Lopes Jr. conclui ser da “essência do sistema inquisitivo a aglutinação de funções na mão do juiz e atribuição de poderes instrutórios ao julgador, senhor soberano do processo”.[42] Por consectário, segundo o autor, no sistema processual inquisitório “não há uma estrutura dialética e tampouco contraditória. Não existe imparcialidade, pois uma mesma pessoa (juiz-ator) busca a prova (iniciativa e gestão) e decide a partir da prova que ela mesma produziu”.[43]

Em semelhante posição, Marcellus Polastri Lima assevera que “Neste processo (ou inquisição), a função acusatória, de defesa e julgamento se concentra na pessoa do juiz acusador, ou seja, do inquisidor, sendo o acusado mero objeto do processo, não sendo sujeito de direitos e não havendo relação processual”.[44]

Destarte, a finalizar as exposições acerca do sistema processual inquisitório, pautado no princípio inquisitivo, observa-se, com espeque no escólio de Camilin Marcie de Poli, que “Na estrutura inquisitória a finalidade encarrega essencialmente o juiz da obrigação de buscar e trazer à tona o conhecimento, de modo que a iniciativa probatória é sua (eis o princípio inquisitivo)”.[45]

À vista do esposado, como anunciado alhures, é grande reducionismo pensar que basta ter uma acusação (separação inicial das funções) para constituir-se um processo acusatório ou não a ter para dar existência ao sistema em inquisitório. Deveras, pode-se assegurar que principal característica do sistema inquisitivo vem a ser “a extrema concentração de poder nas mãos do órgão julgador, o qual detém a gestão das provas”[46], ainda que nele exista um órgão, em separado, responsável pela acusação.

3.2.Do sistema processual penal acusatório e o princípio dispositivo

Impõe-se repisar, uma vez mais, que não existem, presentemente, sistemas processuais puros, os quais são modelos históricos. Isso porque, como exposto alhures, todo sistema é, de certa forma, “misto”. Por consequência, se sustenta que mesmo o sistema processual “inquisitório” terá, como elementos secundários, traços do sistema acusatório, assim como todo sistema acusatório trará, em sua composição – sempre em caráter mediato –, marcas inquisitivas.

Feito esse esclarecimento em certo grau até repetitivo, parte-se para uma breve exposição histórica e, depois, para a análise das principais características de um sistema processual dito acusatório.

Consigne-se, ab initio, que, malgrado se busque explicar o sistema acusatório a partir das ideias iluministas e da Revolução Francesa, não se desconhece a existência de um “sistema processual acusatório” bem anterior ao comumente abordado. Bem se sabe, é verdade, que mencionado sistema processual teve suas origens na Grécia e Roma Republicana, num período em que, na dicção de André Luiz Chaves Gaspar de Morais Faria, valiam as acusações privadas, nas quais “ao particular competia a função acusatória”[47], onde vigorava a famigerada vingança privada.

De efeito, em consonância com as lições de Ney Moura Teles, citado por André Luiz Chaves Gaspar de Morais Faria, tem-se que:

A primeira fase da evolução do Direito Penal, denominada Vingança Privada, revela um ‘Direito Penal’ praticado pelo próprio ofendido ou pelo que dele se apiedasse a quem ficava reservado o direito de voltar-se contra o ofensor sem nenhuma limitação. Além de fazer justiça pelas próprias mãos, as penas não guardavam a devida proporção com o delito que visavam responder.[48]

Veja-se, outrossim, que no sistema acusatório da antiguidade, adversarial na essência, tal como no sistema acusatório concebido no início da Baixa Idade Média (Século XI) e, posteriormente, pelos liberais (Século XVIII), havia uma espécie de combate entre acusação e defesa. Contudo, as técnicas desenvolvidas em um e outro eram totalmente diferenciadas, sendo certo que, no tempo dos juízos de Deus e dos duelos, aceitava-se, inclusive, a violência entres as partes, que ficavam frente a frente numa verdadeira “arena”.[49]

Registre-se, todavia, que não se fará, nesta ocasião, uma abordagem histórica exaustiva do sistema processual acusatório na antiguidade. Dessa forma, feitas as considerações supra, avança-se no tempo para, com supedâneo nos escólios de Camilin Marcie de Poli, consignar-se que “o sistema acusatório, na forma como é estudado hoje, surgiu na Inglaterra, no século XI, após a invasão e conquista de Guilherme, Duque da Normandia, em 1066. Todavia, foi no reinado de Henrique II (1154-1189) que se deu a construção desse novo sistema processual”.[50]

A propósito, de acordo com Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Henrique II, que governou de 1154 a 1189, ajudou a implantar o sistema feudal na Grã-Bretanha:

[…] porque interessava aos normandos a centralização do poder. Assim, colocando-se no lugar de senhor de todos os feudos, transformou os suseranos em grandes vassalos. Sua luta foi destinada à unificação da Grã-Bretanha, o que conseguiu a partir de 1171, quando avança sobre a Irlanda. Para manter o controle integral e desestabilizar o poder dos suseranos/grandes vassalos, Henrique II, seguindo um modelo visivelmente romano, impõe uma lei do exército, pela qual impede a manutenção e criação de exércitos feudais em troca de proteção que a todos daria desde Westminster. Eis o lugar da força, enfim concentrada em suas mãos.[51]

Na seara jurídica, no mesmo período, visava-se à extinção dos traços marcantes do sistema processual acusatório da antiguidade, quais sejam, os Juízos de Deus. Para tanto, buscou-se concentrar as decisões, para todos, na jurisdição de Westminster. Entrementes, consoante Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:

O problema é que alguns resistiram, como seria natural. Foi o que se passou com o bispo de Canterburry, Thomas Becket, morto por sicários do rei. Assim, todos os que se sentissem prejudicados poderiam reclamar ao rei e o faziam por meio de petições. Essas, em regra, eram recebidas e decididas pelo Lord Chanceler e, em nome do rei, emitiam-se ordens escritas (writ) aos representantes reais (locais), ditos sheriff, a fim de que esse ordenasse que o indicado dessa satisfação ao queixoso ou, se fosse o caso, comparecesse para dar explicações.[52]

Como se podia prever, todavia, a concentração de todas as decisões na jurisdição de Westminster (forms of action) acabou por, inexoravelmente, inviabilizar o sistema, que, sem qualquer solução, rumava para a estagnação. Diante desse cenário, no qual não se vislumbrava uma saída adequada, Henrique II instituiu, em 1166, um Trial by Jury, que viria a ser, para Jacinto, “quem sabe, o grande passo à construção de um modelo singular”.[53]

Por meio do Trial by Jury, explica Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:

[…] um Grand Jury, composto por 23 cidadãos (boni homines) indictment um acusado e, se admitida a acusação, seria ele julgado por um Petty Jury, composto por 12 membros. Nele, o Jury dizia o direito material, ao passo que as regras processuais eram ditadas pelo rei. O representante real, porém, não intervinha, a não ser para manter a ordem e, assim, o julgamento se transformava num grande debate, numa grande disputa entre acusador e acusado, acusação e defesa.[54] (grifou-se)

Sem maiores digressões históricas acerca do sistema acusatório, cumpre registrar que tal panorama indicava, a priori, uma “luta” mais leal entre acusação e defesa, evidenciando, outrossim, pelo menos aparentemente, uma paridade de armas entres os contendores, já que, como mencionado, o representante real, nesse modelo, não intervinha, senão para manter a ordem.

Nesse contexto, essa disputa entre acusação e defesa, levada a efeito em local público, transformava o processo num verdadeiro jogo dialético entre os argumentos de acusação (tese) e defesa (antítese), devendo o juiz, ao final, alheio ao interesse das partes, proferir uma decisão, a qual consubstanciaria uma justa síntese processual.

Com efeito, numa linha temporal evolutiva, principalmente após as revoluções burguesas – Revolução Inglesa, 1640/88, e Revolução Francesa, 1789[55] –, visando à total superação do Estado Absolutista e seu sistema inquisitório, cujo núcleo fundante é(ra) o princípio inquisitivo, o sistema processual acusatório passou a ser bem delimitado. Finalmente, observa Aury Lopes Jr., “no século XVII, a Revolução Francesa e suas novas ideologias e postulados de valorização do homem levam a um gradual abandono dos traços mais cruéis do sistema inquisitório”.[56]

Deveras, foi com o advento do iluminismo, o qual pôs fim ao “período das trevas”, que se difundiu a “ideia da liberdade individual, restringindo-se ao máximo a ingerência do Estado e do Juiz, na esfera individual”. [57] Estava, pois, consagrado o Estado Abstencionista. Diante desses novos ideais revolucionários, preleciona Luiz Flávio Gomes, “a acusação não mais poderia ser feita de ofício, sendo retirada do juiz a função investigativa, já que os iluministas atacaram, de forma veemente, o denominado juiz inquisidor”.[58]

Buscava-se, assim, no sistema acusatório, cujo núcleo fundante é o princípio dispositivo, um “juiz espectador”, separado das partes – mormente da acusação –, visando-se, com isso, preservar a sua imparcialidade[59]. Portanto, ao contrário do sistema inquisitório, em que o juiz era o protagonista do processo, um magistrado ativo e soberano, no sistema acusatório o que se busca é justamente o oposto. Vale dizer, aqui, deve o julgador ser imparcial, equidistante das partes, alheio aos interesses processuais que lhe são deduzidos.

Ao discorrer sobre o sistema processual acusatório, Aury Lopes Jr., com a maestria que lhe é peculiar, observa que as suas principais características são:

a) Clara distinção entre as atividades de acusar e julgar; b) a iniciativa probatória deve ser das partes (decorrência lógica da distinção entre as atividades); c) mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigação e passivo no que se refere à coleta da prova, tanto de imputação como de descargo; d) tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidades no processo); e) procedimento é em regra oral (ou predominantemente); f) plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte); g) contraditório e possibilidade de resistência (defesa); h) ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional; i) instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica (e social), da coisa julgada; j) possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição.[60]

Em arremate, ainda no tocante aos principais aspectos do sistema processual acusatório, Giovanni Leone preleciona que a) o poder de decisão pertence a um órgão estatal; b) o poder de acusação pertence a uma pessoa diversa do juiz; c) o processo penal não pode iniciar sem a acusação; d) o magistrado não pode investigar nem selecionar provas, ficando restrito às provas produzidas pela acusação; e) o processo deve se desenvolver de acordo com os princípios do contraditório, da oralidade e da publicidade do debate; f) até a sentença o acusado deve permanecer livre.[61]

Desse modo, ao menos inicialmente, é a partir dessa separação de tarefas entre acusação e órgão julgador que se formará a estrutura de um e outro sistema (acusatório/inquisitório), de modo que a aglutinação da acusação, defesa e julgamento numa só pessoa (o juiz) materializa, ainda que superficialmente, um sistema inquisitório; ao passo que a divisão de tarefas se apresenta (também, mas não fundamentalmente[62]) como a característica marcante de um sistema processual acusatório.

De se consignar, por derradeiro, que a simples divisão de tarefas, como será demonstrado em tópico oportuno, não é o bastante, por si só, para a caracterização de um sistema processual acusatório. Para tanto, há de se analisar não só a posição topográfica das partes no cenário processual, mas, sobretudo, a iniciativa e gestão das provas pelo juiz, vale dizer, seus poderes instrutórios.

3.3.Do sistema processual penal misto e sua indefinição conceitual

A abordagem do sistema processual penal misto é, sem sombra de dúvida, deveras problemática, uma vez que, por mais que se queira traçar suas principais características, não se consegue obter sucesso. A explicação para isso é óbvia: o que é misto é “alguma coisa que não é nada, mas também não é tudo”. É uma indefinição que, como se verá mais à frente, tem uma finalidade eufemística, a qual busca manipular a essência, o núcleo fundante de um determinado sistema processual.

A esmagadora maioria da doutrina pátria explica que o sistema misto é uma junção dos sistemas inquisitório e acusatório, cuja origem remonta ao Code d’Instruction Criminelle (Código Napoleônico), de 17 de novembro de 1808, que passou a vigorar em 1881.[63] Nessa senda, Renato Brasileiro de Lima explica que “Após se disseminar por toda a Europa a partir do século XIII, o sistema inquisitorial passa a sofrer alterações com a modificação napoleônica, que instituiu o sistema misto”[64]. Segundo o autor, “trata-se de um novo modelo, funcionando como uma fusão dos dois modelos anteriores, que surge com o Code d’Instruction Criminelle, de 1808. Por isso, também é denominado de sistema francês”.[65]

Sem maiores digressões históricas nesse tocante, presentemente, explica-se tal sistema, de modo muito superficial, é verdade, como sendo composto por duas fases: a primeira, investigativa, de caráter inquisitorial, sem contraditório e sem ampla defesa; a segunda, por sua vez, a fase de instrução, levada a efeito perante um juiz, observados, sempre, os princípios do contraditório e da ampla defesa. Na fase inaugural, “objetiva-se apurar a materialidade e autoria do fato delituoso. Na segunda fase, de caráter acusatório, o órgão acusador apresenta a acusação, o réu se defende e o juiz o julga, vigorando, em regra, a publicidade e a oralidade”.[66]

Não obstante a explicação supra estar consagrada em grande parte das doutrinas brasileiras, ela não traduz a realidade dos sistemas processuais atuais, haja vista que a classificação em sistema processual misto “deixa de lado o ‘núcleo fundante’, ou seja, o que, verdadeiramente, diferencia as duas sistemáticas processuais penais. Esse ‘núcleo fundante’ não é a simples (apesar de essencial) separação entre os órgãos de acusar e julgar”.[67]

Com efeito, não é apenas e isoladamente o fato de haver uma divisão de tarefas que torna(rá) o sistema processual acusatório, de modo que se afigura falsa “a conclusão de que a presença do Ministério Público no processo penal, com o monopólio da ação penal, corresponda ao modelo acusatório. Há que se buscar outros referenciais para distingui-lo do sistema inquisitório reformado”.[68]

Dessa forma, entende-se que, existido regras procedimentais de viés inquisitório, ter-se-á, insofismavelmente, uma desfiguração do sistema acusatório, não sendo suficiente a eufemística expressão “misto” para falsear uma realidade tangível, reveladora de um sistema inquisitório, lastreado no princípio inquisitivo. Essa nomenclatura, aliás, observa Thums, não passa de uma maneira simpática encontrada para chamar o modelo inquisitório dos tempos atuais[69].

Nesse contexto, à guisa de conclusão, correto está Jacinto Miranda de Coutinho quando assevera que “ser misto significa ser, na essência, inquisitório ou acusatório, recebendo a referida adjetivação (misto) por conta dos elementos (todos secundários) que de um sistema são emprestados a outro”[70]. Destarte, o fato de um processo ser de partes não o torna acusatório, bastando uma simples revisão histórica para mostrar que a maior referência inquisitória, as Ordonnance Criminalle (1670), do Rei Luiz XIC, previa um processo penal de partes.[71]

Conclui-se, por conseguinte, com supedâneo nas palavras de Aury Lopes Jr., que “o fato de um determinado processo consagrar a separação (inicial) de atividades, oralidade, publicidade, coisa julgada, livre convencimento motivado, etc., não lhe isenta de ser inquisitório”. Assim, a despeito da consagrada explicação comumente dada pela doutrina ao abordar o sistema misto, fato é que não passa de uma vã tentativa, às vezes inconsciente, de, por meio de uma indefinição conceitual, falsear uma verdade inegável.

4. A INICIATIVA PROBATÓRIA DO JUIZ COMO ELEMENTO DE IDENTIFICAÇÃO DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO

Sempre que se está a falar de sistemas processuais penais, a maior parte da doutrina utiliza a separação das atividades como o principal ponto de distinção entre o sistema acusatório e inquisitório. Entretanto, como bem pondera Aury Lopes Jr., seria grande reducionismo pensar que bastaria haver uma acusação (separação inicial das funções) para constituir-se um processo acusatório. É necessário, diz o autor, “que se mantenha a separação para que a estrutura não se rompa e, portanto, é decorrência lógica e inafastável que a iniciativa probatória esteja sempre nas mãos das partes. Somente isso permite a imparcialidade do juiz”.[72]

De igual forma, Sylvio Lourenço Da Silveira Filho observa que o critério da (in)existência da inicial separação entre as atividades de acusar e julgar não se mostra suficiente para delimitar a natureza do sistema processual. Para o autor, a propósito, “essa comum afirmação doutrinária sucumbe diante da análise da Ordonnance Criminelle de 26 de agosto de 1670, do Rei Luis XIV da França, que instaurou um processo de partes, porém manteve a estrutura inquisitorial típica do processo penal canônico do medievo, inclusive com emprego da tortura”.[73]

Nessa mesma ordem de ideias, Nobili leciona que um dos monumentos do sistema inquisitório na Europa Continental, a Ordonnance Criminelle de 1670 de Luís XIV, de fato previa a figura do Ministério Público e, embora aquela que cremos ser característica principal do [sistema] inquisitório – qual seja, a identificação entre órgão da ação (acusação) e órgão da decisão – nem sempre é uma marca indefectível daquele modelo.[74]

Nesse panorama, fica evidente que o critério (apenas) de separação das atividades dos sujeitos processuais não é o quanto basta para delimitar a natureza do sistema processual penal de determinada nação. Isso porque, ainda na esteira de Sylvio Lourenço Da Silveira Filho, é o poder de aquisição da prova que melhor funcionará como parâmetro de delimitação do princípio informador do sistema – se acusatório (princípio dispositivo) ou inquisitório (princípio inquisitivo).[75] Destarte, “é o critério da gestão das provas aquele capaz de promover adequadamente a distinção entre os respectivos sistemas processuais penais”.[76][77]

Feitas essas considerações iniciais, proceder-se-á à análise da postura do juiz no processo penal brasileiro, a fim de se verificar se o que vigora no Brasil é, de fato, um sistema acusatório, tal como indiscutivelmente implementado pela Constituição Federal de 1988, ou inquisitório, em que o protagonismo judicial é franqueado aos magistrados, os quais, em tese, deveriam portar-se com imparcialidade.

Adotar-se-á, por todos, como ponto nevrálgico para a abordagem do tema sob análise, o famigerado artigo 156, do Código de Processo Penal, cuja redação foi dada pela 11.690, de 2008, implementada 20 (vinte) anos após a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988!

Referido dispositivo, inserido no processo penal 20 (vinte) anos após o advento da Constituição Cidadã, a qual fez clara opção por um sistema processual penal acusatório, traz o seguinte permissivo:

Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:

I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;

II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. (grifou-se)

No inciso I, verifica-se a autorização legal dada ao juiz para que, mesmo sem qualquer provocação por parte do Ministério Público, o qual é o titular da ação penal (129, I, CF), determine a produção antecipada de provas consideras urgentes e relevantes, até mesmo em sede de inquérito policial. Nada mais absurdo!

Como dito no tópico dedicado à análise dos sistemas processuais, num sistema acusatório não pode o magistrado comportar-se como protagonista, sob pena de quebra da imparcialidade. Às partes cabe a produção de prova, mais precisamente ao Ministério Público, que é quem deve provar a culpa do imputado, já que a inocência é – ou pelo menos deveria ser – presumida.

Não agindo o Parquet, não caberá ao magistrado, terceiro equidistante e imparcial, fazê-lo, até mesmo porque, se as provas são consideradas “urgentes e relevantes”, com mais razão deve(ria) o dominus lites atuar. O juiz deve avaliar a relevância da prova já produzida pela acusação, e não da prova a se produzir.

Mas não é só!

Causa acentuada estranheza o inciso II, do artigo 156, permitir que o magistrado determine, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. Há, aqui, a toda evidência, uma das maiores afrontas ao sistema acusatório e à ordem constitucional posta, que alça à condição de garantia fundamental o princípio da presunção de inocência.

Não custa rememorar, com auxílio de Aury Lopes Jr., que:

[…] ao sistema acusatório lhe corresponde um juiz-espectador, dedicado, sobretudo, à objetiva e imparcial valoração dos fatos e, por isso, mais sábio que experto; o rito inquisitório exige, sem embargo, um juiz-ator, representante dos interesses punitivos e, por isso, um enxerido, versado no procedimento e dotado de capacidade de investigação.[78]

Como falar-se em sistema acusatório se se permite ao juiz, na dúvida, produzir a prova faltante para a tomada de decisão? Não parece um equívoco sustentar-se que tal permissivo é voltado, exclusivamente, para a acusação, haja vista que para absolver aquele sobre o qual paira a dúvida, bastaria invocar o in dubio pro reo, e não ir em busca da prova absolutória – o que é um contrassenso!

Note-se que a questão é mais complexa do que pode parecer, uma vez que “ao determinar a produção de provas, ainda que, em tese, desconhecendo o resultado final, o julgador está abdicando da posição de espectador e inclinando-se (movimentando-se) em direção à defesa ou à acusação”.[79]

A bem da verdade, percebe-se que essa margem para a atuação do juiz, na prática não revela qualquer possibilidade de propensão às teses defensivas, porquanto, geralmente, quando o magistrado “vai em busca da prova”, em complemento à atividade da acusação, não raro o faz para condenar, visto que, como mencionado, se para absolver fosse, não se faria necessária a atividade do julgador, em razão da presunção de inocência, a funcionar, aqui, como “regra de julgamento” – in dubio pro reo.

Com efeito, razão assiste a André Luiz Chaves Gaspar de Morais Faria quando leciona que, num sistema verdadeiramente acusatório, os poderes instrutórios do juiz não podem ser aceitos, porquanto dessa forma ele estaria ocupando o papel reservado à acusação, o que significaria, em tese, ofensa aos princípios da igualdade, do contraditório, da paridade de armas, ampla defesa e imparcialidade, pois esses poderes investigatórios, após a Constituição de 1988, não pertencem ao juiz.[80]

Ademais, não se pode ser ingênuo ao ponto de acreditar que quando o juiz ordena a produção de uma prova não saiba, em absoluto, que resultado advirá de sua conduta instrutória inquisitiva ativa. É evidente que o “julgador-ator” sabe (bem) aonde quer chegar! Nesse tocante, a propósito, Geraldo Prado preleciona que “a ação voltada à introdução do material probatório é precedida da consideração psicológica pertinente aos rumos que o citado material, se efetivamente incorporado ao feito, possa determinar”.[81]

Assim, tem-se com Geraldo Prado que “que

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