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A omissão nossa de cada dia

As imagens são mais do que chocantes. Existe um terror que somente conseguiria avaliar na sua real dimensão quem estivesse ao lado daquela jovem mulher, brutalmente espancada pelo marido. Poucas vezes na vida, pudemos ver com tamanha riqueza macabra de detalhes o que, de resto, é uma estarrecedora rotina em uma sociedade de extrema violência, como é a sociedade brasileira, cenas tão aterrorizantes, que é a eliminação de mulheres por homens machistas e misóginos.

Aquela mulher, cujo nome preservaremos, foi espancada no interior do carro, e seguiu espancada, perseguida; desesperada, tentou correr e escapar de seu marido, foi chutada caída, jogada no interior do elevador, onde continuou a ser seviciada; no corredor do andar, tentou correr, mas, já não havia para onde. Foi uma morte horrenda.
Ela gritou, ela se debateu, ela correu. Há imagens da barbárie, que não permitem dúvidas de seu absoluto desamparo, de sua mais absoluta solidão, tentando, feito uma caça, correr de seu predador. Correu porque sabia que estava à beira de ser morta. Ela percebeu o intento criminoso de seu marido, como todas percebem. Talvez nela resistisse uma esperança de surgir alguém que fizesse interromper aquela perseguição, por isso corria e gritava. Em vão.
No prédio, as famílias permaneceram dormindo. Ou, pode ser que fingissem que dormiam ou que assistiam a um filme ou a uma pregação pela TV, ou estivessem ocupadas, vasculhando as redes sociais, enquanto ela era massacrada a poucos metros.
No elevador, aquela caixa fechada que sobe e desce, na noite dos condomínios, todos os ruídos de pavor, ódio, terror e sadismo se fizeram ouvir. Ela correu pelo corredor do andar. Seus vizinhos ou seus cães nada ouviram, como ninguém parece ter ouvido o barulho ensurdecedor do corpo atingindo o solo, como ninguém viu que ele a trouxe de volta, arrastando a mulher que despencara ou que atirara do prédio.
Ninguém saiu, ninguém abriu uma porta, ninguém ofereceu à mulher que era espancada uma opção de acolhimento ou de fuga. Do porteiro do prédio ao síndico, ninguém a acudiu do brutamontes que a estraçalhava.
Qual é o limite jurídico para a solidariedade humana?
Havia obrigação de alguém, dentre os que ali residem, em socorrê-la? Sempre que digo “obrigação”, falo no sentido jurídico do termo, como “dever jurídico”, ou seja, sob pena de ser processado criminalmente. A omissão, no Direito Penal, é um dos temas mais fascinantes e mais mal compreendidos, porque há muitas vezes misturamos num mesmo balaio a obrigação moral e a obrigação jurídica.
Todos nós, sem exceção alguma, passamos por pessoas miseráveis, que dormem sob marquises, famintas, ensopadas da chuva, enregeladas do vento de inverno, que, finalmente, resolveu despertar e esfriar corrimões de escada, águas, torneiras, pisos, tudo. Passamos e nos omitimos porque nenhum de nós, depois de recolhido ao quentinho de nossas casas, saímos cobrindo os que dormem na rua. Não o fazemos, como não atendemos a criança, miserável e semi-nua, que no farol nos pede um real. Aquele homem idoso irá aguardar longos momentos, na faixa de pedestre. Aquela mulher com seu filho no colo passa por mim, sendo que jamais ofereci a ela e a seu rebento uma carona de trezentos metros até o Posto de Saúde.
São exemplos de omissões cotidianas que nos diminuem apenas enquanto nação. Continuamos a saga da sociedade ordeira em busca de um ideal, nem que seja uma varanda-gourmet.
Mas, ninguém ter aberto a sua porta a uma mulher que era espancada barbaramente pelo vizinho, aquele com quem cruzamos no elevador, no carrinho de compras, nas reuniões de condomínio, nas festas infantis, aquele um com quem comentamos a rodada de domingo, nos diminui enquanto seres humanos. Reduz a dimensão humana a uma patifaria de quem preferiu fingir que não ouvia, que não via, que não sabia.
Ninguém daquele condomínio poderá ser processado criminalmente, porque não havia a obrigação jurídica de agir, de intervir, de fazer cessar a agressão. Porém, espero que suas consciências estejam fritando suas mentes, espero que o desespero, o remorso, o sentido infame e vil da covardia os persiga pelos anos afora. Espero que jamais passem novamente por isso ou que tenham entes queridos passando pela situação daquela mulher que deixaram ser espancada até a morte.
Podemos ver uma mulher indefesa ser destroçada e nada fazermos. Não há crime nisso, é certo. Podemos ver e nada fazer porque não somos obrigados a correr riscos por ninguém. Se todavia, fosse ele, o marido agressor, quem restasse morto, quem o houvesse matado estaria acobertado pela legítima defesa de terceiros. Todavia, ninguém precisaria chegar a esse ponto; bastaria que uma, apenas uma, dentre as tantas portas daquele prédio, se abrisse a ela.
Ela morreu da brutalidade, da covardia e da estupidez de seu marido machista e narcisista (há fotos em profusão em que ele exibe bíceps e tríceps em redes sociais), mas também morreu porque as portas estavam fechadas e os ouvidos estavam surdos.
Todos surdos e fechados. Todos dormindo. Todos honestos. Todos ordeiros.
(Roberto Tardelli)
Roberto Tardelli
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