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O Alcance da Presunção de Inocência na Constituição de 1988 César de Faria Júnior – Parte 2

RESUMO: O objetivo deste trabalho é o estudo do alcance da presunção de inocência da forma como disciplinada na Constituição de 1988, com relação à possibilidade da “execução provisória da pena”, logo após decisão condenatória em 2a instância, analisando os argumentos discutidos nas últimas decisões do Supremo Tribunal Federal, marcadamente dividido por esta relevantíssima e polêmica questão constitucional.
SUMÁRIO: 1. A UNIVERSALIDADE DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. 2. NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. 3. O ARGUMENTO DA “LEI DA FICHA LIMPA”. 4. O CPP FASCISTA DE 1941 X CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA DE 1988. 5. REPERCUSSÃO DO NOVO CPC. 6. A ABSORÇÃO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NOS ÚLTIMOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO: POSIÇÃO DO STF. 7. O ART. 283 E AS AÇÕES DIRETAS DE CONSTITUCIONALIDADE (ADC’S 43 E 44). 8. DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO, CELERIDADE PROCESSUAL E SENSAÇÃO DE IMPUNIDADE. 9. CONCLUSÃO: ESTATÍSTICAS DE APRISIONAMENTO, SELETIVIDADE PENAL E SEPARAÇÃO DOS PODERES.
PARTE II 5. REPERCUSSÃO DO NOVO CPC.
Não se pode negar que a Lei 8038/90, que instituiu normas procedimentais para os processos e recursos perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, o fez tendo por base o processo civil e não o penal, declarando, no § 2o, do seu art. 27, que os recursos extraordinário e especial seriam recebidos no efeito devolutivo.
1 1 Advogado Criminalista, Professor Doutor da Faculdade de Direito da UFBA, Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e da Comissão Nacional de Judicialização e Amicus Curiae da ABRACRIM.
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Tanto assim que os arts. 13 a 18, 26 a 29 e 38 da Lei 8.038/90, incluso, portanto, o citado art. 27, foram revogados pelo novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), que deu outra disciplina à matéria recursal, estabelecendo como regra geral os recursos não terem efeito suspensivo, mas prevendo a possibilidade de suspensão da eficácia da decisão recorrida por decisão do relator, “se da imediata produção de seus efeitos houver risco de dano grave, de difícil ou impossível reparação, e ficar demonstrada a probabilidade de provimento do recurso” (parágrafo único, do art. 995, da lei 13.105/2015) e o art. 1029, § 5o, disciplinou o pedido de concessão de efeito suspensivo ao recurso extraordinário ou especial.
Atualmente, até mesmo pela sistemática do processo civil, a execução penal poderá ser suspensa, sendo que, na seara criminal, sempre estaria presente, por óbvio, “o risco de dano grave, de difícil ou impossível reparação”, restando ao Relator do recurso proceder a uma análise perfunctória da viabilidade de provimento do recurso interposto, não fosse a presunção constitucional da inocência um obstáculo intransponível à execução provisória da pena.
Por oportuno, registre-se que a Súmula 267 do STJ, cujo enunciado2 foi elaborado com base no revogado art. 27 da Lei 8.038/90, sempre colidiu frontalmente com o preceito constitucional da presunção de inocência até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (art. 5o, LVII, CF/88).
6. A ABSORÇÃO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NOS ÚLTIMOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO: POSIÇÃO DO STF.
Limitar-se-á este trabalho à análise do postulado da presunção de inocência a sua indissociável correlação com a execução da pena antes do trânsito em julgado, mesmo não se desconhecendo outros relevantes efeitos da sua aplicação, como, v.g., a atribuição do ônus da prova, quando somente dever haver condenação, se provada a culpa do acusado para além de qualquer dúvida razoável.
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2 A interposição de recurso, sem efeito suspensivo, não obsta a expedição de mandado de prisão.
É fato histórico que a mudança cultural não ocorre logo após a promulgação de uma Constituição, sobretudo Cidadã e Democrática como a brasileira de 1988, como efeito automático do começo da sua vigência, fazendo-se necessário um tempo para a transição do autoritarismo para a democracia.
Assim foi que alguns intérpretes da Constituição quiseram mitigar o princípio da presunção de inocência, adotado pela primeira vez em texto constitucional pátrio, aduzindo que, pela forma como foi redigido, tratava-se, na verdade, de princípio da “não culpabilidade” e não da inocência, como se essa divergência semântica alterasse sua aplicação.
Essa inócua discussão encontra-se totalmente ultrapassada, a partir de quando o Brasil incorporou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Costa Rica, 1969) ao ordenamento jurídico pátrio, como já visto, através do Decreto Legislativo no 27, de 26/05/1992 e o Decreto Presidencial 678, de 06/11/1992, e nela se encontra a presunção de inocência lançada nos inequívocos termos: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.”
Como sabido, a chamada “execução antecipada da pena” somente foi declarada inconstitucional pelo plenário do STF em 2009, por sete votos a quatro, ao julgar o HC 84.078 de relatoria do grande Min. Eros Grau, com a seguinte Ementa:
HABEAS CORPUS. INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA “EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA”. ART. 5o, LVII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ART. 1o, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. (…)3. A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar. (…) 5. Prisão temporária, restrição dos efeitos da interposição de recursos em matéria penal e punição exemplar, sem qualquer contemplação, nos “crimes hediondos” exprimem muito bem o sentimento que EVANDRO LINS sintetizou na seguinte assertiva: “Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinqüente”. (…) A Corte que vigorosamente prestigia o disposto no preceito constitucional em nome da garantia da propriedade não a deve negar quando se trate da garantia da liberdade,
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mesmo porque a propriedade tem mais a ver com as elites; a ameaça às liberdades alcança de modo efetivo as classes subalternas. 8. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1o, III, da Constituição do Brasil). É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual. Ordem concedida.
(STF – HC: 84078 MG, Relator: Min. EROS GRAU, Data de Julgamento: 05/02/2009, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-035 DIVULG 25-02- 2010 PUBLIC 26-02-2010 EMENT VOL-02391-05 PP-01048)
Sete anos depois, ao negar o Habeas Corpus (HC) 126.292 na sessão do dia 16/02/16, o Supremo Tribunal Federal (STF), também por maioria de votos (7×4), considerou que a possibilidade do início da execução da pena após a confirmação da sentença em segundo grau não ofende o princípio constitucional da presunção de inocência.
A decisão foi proferida em sede de HC, impetrado contra decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que indeferiu pedido de liminar em HC. O caso envolveu um simples ajudante-geral condenado à pena de 5 anos e 4 meses de reclusão pelo crime de roubo qualificado. Portanto, em nada se aproxima do tão propalado “crime de colarinho branco” ou contra a administração pública. A defesa se insurgiu contra a expedição de mandado de prisão pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, fundando sua impugnação na afronta à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que condicionava a execução da pena ao trânsito em julgado, ressalvada a possibilidade de prisão preventiva, e também no princípio da presunção de inocência (art. 5o, LVII, CF). O acórdão teve a seguinte Ementa:
CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5o, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. 1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a
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recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5o, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado. (HC 126292, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 17/02/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100 DIVULG 16-05-2016 PUBLIC 17-05-2016).
Embora o Supremo tenha afirmado a mera possibilidade, os Tribunais passaram obrigatoriamente a executar a pena, logo após a decisão de 2a instância, sem qualquer análise acerca da necessidade de antecipação do cárcere.
Em 11/11/2016, no mesmo caso, analisando o ARE 964.246, que teve repercussão geral reconhecida, o Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria, reafirmou jurisprudência no sentido de que é possível a execução provisória do acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, mesmo que estejam pendentes recursos aos tribunais superiores.
7. O ART. 283 E AS AÇÕES DIRETAS DE CONSTITUCIONALIDADE (ADCS 43 E 44).
A Lei 12.403, de 04 de maio de 2011, que alterou dispositivos do CPP, relativos à prisão processual, fiança, liberdade provisória e demais medidas cautelares, deu nova redação ao art. 283, reproduzindo os textos dos incisos LVII e LXI, do art. 5o da CF, a seguir transcritos:
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.
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Como visto no início deste artigo, a presunção de inocência nasceu relacionada à prisão, sendo que a nova redação do citado art. 283 fez apenas a junção de dois dispositivos constitucionais presentes como incisos do mesmo art. 5o da Constituição!
Mesmo assim, diante da dificuldade da Suprema Corte em absorver o princípio da presunção de inocência na amplitude dos termos da Constituição, o art. 283 foi objeto de duas Ações Diretas de Constitucionalidade (ADCs 43 e 44), ainda não julgadas definitivamente pelo Supremo. Não obstante, já houve decisão indeferindo cautelar, em 05/10/2016, utilizando-se de interpretação conforme a última posição do STF, no sentido de possibilitar a execução provisória da pena, antes do trânsito em julgado, a fim de declarar que o artigo 283 do Código de Processo Penal não impede o início da execução da pena após condenação em segunda instância. Assim concluiu a ementa:
“Declaração de constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, com interpretação conforme a Constituição, assentando que é coerente com a Constituição o principiar de execução criminal quando houver condenação assentada em segundo grau de jurisdição, salvo atribuição expressa de efeito suspensivo ao recurso cabível”.
É imprescindível distinguir as prisões processuais (temporária e preventiva) da prisão como pena, sanção, uma vez que devem ser absolutamente diferentes nas suas funções e fundamentos!
Isto posto, é pacífico que a presunção de inocência não impede a decretação da prisão antes do trânsito em julgado, como medida cautelar, desde que submetida à comprovação do periculum libertatis e do fumus comissis delicti!
Totalmente diversa é a prisão como execução antecipada da pena, decorrente de decisão condenatória de 2a instância, ainda sujeita a recurso e, portanto, não transitada em julgado, baseada em um juízo de culpa, quando se cria a figura esdrúxula do “culpado provisório”, com todas as suas nefastas consequências.
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Ressalve-se, doutro lado, que a utilização da prisão preventiva por “garantia da ordem pública”, relacionando-a à exemplaridade, credibilidade do sistema penal, defesa social e outras funções próprias da pena como sanção, viola flagrantemente a presunção de inocência!
Ademais, convém ter presente que todos os já citados artigos da Lei de Execução Penal que condicionam o cumprimento de qualquer sanção penal ao trânsito em julgado de sentença condenatória jamais foram considerados inconstitucionais.
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