A incomunicabilidade do preso: Teoria e Prática
Jairo Sousa[1]*
Resumo: O presente artigo se fundamenta na teoria do garantismo penal e faz uma breve análise das leis federais que tratam do tema da incomunicabilidade do preso, apresentando, através da análise de casos reais, quais têm sido as práticas quanto ao direito que o advogado tem de se comunicar com seu cliente preso.
Palavras-chave: Incomunicabilidade do preso, Garantismo penal.
Abstract: This article is based on the theory of Guarantee of Right to Trial and gives a brief analysis of the federal laws that deal with the subject of incommunicability of the prisoner, presenting, through the analysis of real cases, what have been the practices regarding the right that the lawyer has to communicate with your incarcerated customer.
Keywords: Incommunicability of the prisoner, Guarantee of Right to Trial.
INTRODUÇÃO
O artigo 7º da Lei nº 8.906 de 4 julho de 1994, do Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, em seu inciso III[2], assegura ao advogado a comunicação com clientes presos.
O texto normativo supracitado é bastante claro quanto ao direito do advogado em comunicar-se com o seu cliente quando este estiver preso, independente de possuir procuração.
Foi afastada, pela Constituição Federal de 1988, a possibilidade de uma pessoa acusada de praticar delito ficar incomunicável. O art. 5.º, inciso LXIII[3], permite ao acusado, a assistência de um advogado, em qualquer momento, seja na prisão preventiva ou na prisão temporária.
Ainda no artigo 136, § 3º, inciso IV[4], em se tratando da vigência do estado de defesa, declara vedada a incomunicabilidade do preso.
Portanto, a regra da incomunicabilidade não mais é aceita no ordenamento jurídico brasileiro, já que o advogado tem o direito de se comunicar reservadamente com o seu cliente, mesmo tenha sido declarada a sua incomunicabilidade, ainda que contrária aos preceitos constitucionais.
Assim sendo, inexiste qualquer impedimento legal para o advogado se comunicar com o seu cliente preso. Ainda que o preso seja considerado incomunicável, tal incomunicabilidade não se aplica ao advogado. O descumprimento deste direito por autoridade policial ou judicial pode, inclusive, denotar abuso de autoridade.
Trata-se de garantir o direito de ambos, cliente e advogado, de maneira que, caso tal lhes seja negado, poderão fazer uso dos meios legais cabíveis contra a autoridade infratora.
O artigo 21 do Código Penal, em seu parágrafo único[5], deixa claro que o desconhecimento da lei é injustificável. Seguindo a regra do artigo 3 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que apresenta que ninguém está dispensado de cumprir a lei por alegar que não a conhece.
Acredita-se que um agente policial ou judicial tem conhecimento dos direitos do preso e de seu advogado, e que sabe que os mesmos são garantidos por lei. Ainda que por quaisquer razões não o soubesse de antemão, ao se enfrentar à situação quando, por erro inconsciente, negasse o direito de comunicação entre o advogado e seu cliente, certamente teria ali mesmo a oportunidade de tomar ciência dos textos da lei.
Portanto, a autoridade que impedir o contato do preso com o seu advogado estará cometendo o crime de abuso de autoridade, e ainda poderá sofrer uma ação de indenização por danos morais em razão de constrangimento causado ao advogado no exercício de sua profissão.
As bases legais apresentadas nos parágrafos acima são bastante claras e de fácil compreensão, entretanto tomando como embasamento doutrinário a teoria do garantismo penal, o presente artigo tem como objetivo apresentar quais têm sido as práticas da justiça brasileira quanto ao direito de comunicabilidade entre o indivíduo preso e seu advogado.
A TEORIA DO GARANTISMO PENAL
A expressão garantismo evoca o século XVIII e a pessoa de Mario Pagano[6] para quem o garantismo foi, de fato, uma doutrina voltada à limitação do julgamento segundo o que era conveniente e oportuno. Foi incorporada ao léxico jurídico recentemente ao ser introduzida na Itália, nos anos 70, na esfera do direito penal.
Cabe situar a teoria normativa que desenvolveu Pagano dentro da tradição penal ilustrada que o precede, isto é, na reflexão de Montesquieu e Beccaria, os quais colocaram as bases para que fossem desenhadas as linhas gerais de um processo penal moderno alicerçado nos direitos fundamentais do acusado.
Da mesma forma que Rousseau e Kant, pensava que a sociedade devia reger-se por instituições que acolhessem as normas da razão, e não a arbitrariedade do poder. A essência das normas se encontrava a partir da análise de seu conteúdo, de seus elementos e da tutela que instituíam a fim de favorecer certos interesses.
O Grande Dicionário da Língua Italiana de 1970[7] apresenta, entre outros, o seguinte significado para a palavra garantismo:
“Característica própria das mais evoluídas constituições democrático-liberais, consistente no fato de elas estabelecerem dispositivos jurídicos cada vez mais seguros e eficientes a fim de garantir a observância das normas e do ordenamento por parte do poder político;”
As dificuldades advindas da compreensão da expressão na esfera jurídica se explica historicamente com o fato de que a compilação do Grande Dizionario antecede a aceitação do termo garantismo como designação da teoria liberal do direito penal, elaborada baseando-se no iluminismo jus filosófico dos meios jurídicos progressistas da Itália, na segunda metade dos anos 70.
Acredita-se que a consolidação do termo garantismo é resultado direto das atividades e dos estudos científicos desenvolvidos por Luigi Ferrajoli em especial a partir da publicação, em 1989, de Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale.
No prefácio desta obra, Norberto Bobbio comenta que o objetivo do autor seria a construção da então denominada teoria geral do garantismo, que prega a estruturação dos alicerces do Estado de Direito, cuja finalidade seria a garantia das liberdades do cidadão frente às várias formas de utilização arbitrária do poder.
A Constituição atua como mecanismo de proteção dos indivíduos em face do Estado, quando assegura aos indivíduos uma série de direitos e garantias, tidos como fundamentais, que não podem ser submetidos a qualquer tipo de ofensa pelas leis que lhe são inferiores. O ordenamento jurídico age conciliando o exercício dos poderes do Estado e a defesa das garantias fundamentais.
O garantismo penal surge, portanto, da contradição entre o âmbito da liberdade do indivíduo e a discricionariedade estatal. Se por um lado o garantismo penal é contra a liberdade isenta de regras, por outro, também é contra o Estado abusivo na aplicação das leis penais.
Logo após sua publicação, Diritto e Ragione passou a fazer parte da lista das obras jurídicas mais importantes do direito do século XX, de leitura indispensável para todos os juristas.
No Brasil, o garantismo foi trazido durante o período de redemocratização, marcado pela proclamação das novas cartas constitucionais e pela preservação dos direitos e das garantias fundamentais dos indivíduos, sobretudo aqueles de liberdade, contra as arbitrariedades do Estado.
Garantismo, não é, na verdade, a repulsa à aplicação rigorosa da lei penal. Está fundado em duas premissas básicas: 1- O Estado deve respeitar um elenco sistêmico de garantias que devem por ele ser efetivados. 2- O garantismo também pressupõe uma teoria que explique os problemas de vigência e validade das normas jurídicas.
A INCOMUNICABILIDADE DO PRESO NA PRÁTICA
A despeito do texto constitucional e das leis que garantem o direito de comunicabilidade de indivíduos presos, e destes com seus advogados incontestavelmente, o que se tem na prática ainda são atos que violam tais prerrogativas.
É fato que no dia 17 de janeiro de 2018, a Ordem dos Advogados do Brasil do estado da Bahia foi obrigada a agir em defesa dos direitos da classe em Salvador[8].
Segundo relato textual do Canal de Prerrogativas da OAB, o advogado em questão foi impedido de conversar com três de seus clientes presos em flagrante, com agressões e voz de prisão por parte do delegado. Na ocasião, a OAB interveio e tomou as devidas providências a fim de garantir que o advogado conversasse com seus clientes. O presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da Ordem, Adriano Batista se referiu ao caso da seguinte maneira:
“A OAB da Bahia não aceita este tipo de comportamento e estará sempre ao lado dos advogados e advogadas quando atos como este, que relembram a época da ditadura, forem perpetrados por qualquer autoridade”[9].
A infração do direito de comunicação entre clientes presos e seus advogados aconteceu também no estado do Paraná, conforme aponta a Linha Direta de Prerrogativas da OAB[10] situada na cidade de Curitiba. Ali aparecem registrados sete casos de violação das seguintes leis:
· 8906/94, art. 7º, III;
· 7210/84, art. 41, IX;
· CF, art. 5º, LV
Em um dos casos foi registrado desrespeito e tratamento grosseiro sofridos por advogada dentro de uma delegacia. Os relatos são datados a partir do ano de 2007 até o ano de 2011.
Soma-se aos anteriores o registro do ocorrido no ano de 2016 quando o Ministério da Justiça, através da Portaria DISPF Nº 4, de 28 de junho[11]:
“Estabelece regras para atendimento de advogados aos presos custodiados nas Penitenciárias Federais do Sistema Penitenciário Federal do Departamento Penitenciário Nacional”.
O então presidente nacional da OAB, Cláudio Lamachia, solicitou, em ofício[12] dirigido ao ministro da Justiça, mudanças nas regras para o atendimento de clientes presos nas penitenciárias Federais. De acordo ao texto da Portaria DISPF Nº 4, o indivíduo preso em penitenciária Federal teria direito:
· a ser atendido apenas uma vez por semana;
· o advogado poderia optar apenas pela segunda, terça ou sexta-feira;
· a visita deveria ser agendada previamente;
· o cliente preso teria direito a receber visita de apenas um advogado constituído;
· a visita deveria ter duração máxima de uma hora.
Na época, uma advogada foi proibida de visitar seu cliente na Penitenciária Federal de Campo Grande por ter ido no sábado. A profissional procurou a OAB do Mato Grosso do Sul e foi amparada pela Comissão de Advogados Criminalistas – CAC e pela Comissão de Defesa e Assistência das Prerrogativas dos Advogados – CDA, assim pode visitar seu cliente[13].
Ainda sobre as regras impostas pela Portaria DISPF Nº 4, o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Machado declarou o seguinte em entrevista para o jornal O Estado de São Paulo de 26 de julho de 2016[14]:
“Vivemos um momento altamente punitivo no Brasil, onde a defesa deixou de ter voz. As regras sobre segurança máxima sempre serviram para recrudescer o direito dos presos. Mas nunca se ousou tanto sobre os direitos dos advogados. Como preparar um cliente para um depoimento sem contato físico?”
Pelo mesmo assunto, em nota para o jornal O Estado de São Paulo de 26 de julho de 2016, Claudio Lamachia disse[15]:
“O caminho de combater o crime cometendo outros crimes e violando prerrogativas da advocacia leva o País ao retrocesso.”
CONCLUSÃO
A incomunicabilidade do preso está prevista no art. 21 do Código de Processo Penal, cuja redação é anterior a da Carta Magna datada de 1988. O legislador teve por objetivo impedir que o investigado preso obtivesse quaisquer auxílios de terceiros que dificultasse os trabalhos de investigação.
De acordo com o art. 136, § 3.º, IV, da Constituição Federal, o preso não poderá ficar incomunicável. No entanto, pode ser decretada por decisão fundamentada do juiz a requerimento da autoridade policial ou do Ministério Público, segundo art. 21, § único do Código de Processo Penal, não poderá exceder a três dias. Contudo, esta determinação não se aplica à comunicação do preso com o seu advogado.
O artigo 7º da lei nº 8906/94, em seu inciso III, assegura ao advogado a comunicação com clientes presos, portanto a regra da incomunicabilidade, quando aplicada, alcança, unicamente, o contato do preso com terceiros.
É bastante claro o texto normativo que garante o direito do advogado de se comunicar com seu cliente independente de possuir procuração.
O profissional que sofrer a violação de seus direitos no exercício da advocacia deverá recorrer imediatamente à Comissão de Direitos e Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil de seu estado.
É indubitável a posição da Ordem em favor do advogado que reportar haver sofrido qualquer tipo de tolhimento ao exercer sua profissão dentro dos parâmetros da lei.
REFERÊNCIAS
BATTAGLIA, S. Grande dizionario della lingua italiana. 1970. Vol. 6
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.
BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm. Acesso em 28 jun. 2018.
BRASIL. Lei nº 8.906 de 4 julho de 1994. Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. Brasília, DF, 4 jul. 1994.
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8906.htm. Acesso em 28 jun. 2018.
BRASIL. PORTARIA DISPF Nº 4, DE 28 DE JUNHO DE 2016.
Estabelece regras para atendimento de advogados aos presos custodiados nas Penitenciárias Federais do Sistema Penitenciário Federal do Departamento Penitenciário Nacional.
Disponível em: http://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/7/art20160726-10.pdf. Acesso em 28 jun. 2018.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 4ª ed. São Paulo. Saraiva, 2014. 925 p.
O ESTADO DE SÃO PAULO. São Paulo. 26 de jul. 2016. Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,advogados-tem-atuacao-limitada-em-presidios,10000064947. Acesso em 28 jul. 2018.
[1] *Bacharel em Direito, administrador por profissão, ex-estagiário do Ministério Público da Bahia, ex-estagiário da Defensoria Pública da Bahia, ex-gerente dos bancos: Cidade de São Paulo, BCN e Bradesco. Atualmente empresário no ramo de alimentos.
[2] “Art. 89. São direitos do advogado: (…) III – comunicar-se, pessoal e reservadamente com os seus clientes, ainda quando estes se achem presos ou detidos em estabelecimento civil ou militar, mesmo incomunicáveis;”
[3] “Art. 5. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;”
[4] “Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza. (…) § 3º – Na vigência do estado de defesa: (…) IV – é vedada a incomunicabilidade do preso.”
[5] “Art. 21 – O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. Parágrafo único – Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.”
[6] Francesco Mario Pagano, (Brienza, 1748-Nápoles, 1799). Advogado e político italiano. Grande estudioso da legislação criminal de seu tempo, de seus escritos destaca-se: “Considerações sobre o direito criminal (1787)”. Fonte: https://www.biografiasyvidas.com/biografia/p/pagan…
[7] Battaglia S. Grande dizionario della lingua italiana. 1970. Vol. 6
[8] Canal de Prerrogativas do Conselho Federal da OAB. Brasília – DF. http://www.prerrogativas.org.br/oab-ba-defende-prerrogativas-de-advogado-impedido-de-conversar-com-c…
[9] Idem.
[10] Linha Direta de Prerrogativas da OAB – Paraná. http://prerrogativas.oabpr.org.br/ementario/comuni…
[11] Portaria DISPF Nº 4, de 28 de junho de 2016. http://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/7/art2016…
[12] Ofício n. 271/2016-PNP. http://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/7/art2016…
[13] http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI242939,11049-OAB+pede+mudancas+em+regras+de+visitas+de+advog…
[14] O Estado de São Paulo. 26 de julho de 2016. https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,advog…