O “FILTRO DA VERDADE” QUE PROTEGERÁ AS VÍTIMAS DE ABUSO SEXUAL NO BRASIL
Por Aisla Carvalho
Nos últimos dias, as notícias que dominaram os meios de comunicação relatam um triste cenário: centenas de denúncias de abuso sexual e assédio contra o mesmo acusado – João Teixeira de Faria, internacionalmente conhecido por “João de Deus”. Trata-se de um médium que trabalha com tratamento espiritual de cura desde o ano de 1976.
Por meio de um programa de televisão exibido dia 07/12/2018, 10 mulheres relataram terem sido vítimas de abusos sexuais praticados pelo Médium durante as consultas e tratamentos. A repercussão foi tamanha que encorajou centenas de mulheres a procurar as autoridades, ascendendo de maneira inimaginável o número de denúncias.
Em menos de quatro dias, o Ministério Público do estado de Goiás recebeu mais de 330 mulheres que relataram abusos, sendo necessária a organização de uma força tarefa para apuração das acusações, que transcendem o território nacional. Mais de 30 mulheres formalizaram acusação perante a instituição, que também investiga denúncias de possíveis vítimas em outros 6 países.
O impacto do número expressivo de denúncias ao Ministério Público, somado ao padrão dos relatos de 15 mulheres que se apresentaram como vítimas na DEIC (Delegacia Estadual de Investigações Criminais), fundamentaram a decisão pela prisão preventiva do médium.
Na tarde do último domingo, 16 de dezembro, após dois dias da expedição da ordem para prisão, João de Deus apresentou-se à autoridade policial. Ato contínuo, deu-se início ao seu interrogatório.
Dos aparentes traços de perversidade e psicopatia
“O perverso sempre parecerá um ser inofensivo e carismático”. (Marla de Queiroz)
O perigo da perversidade reside na forma sutil aplicada pelo agente, que saboreia a agonia que desperta na vítima. O gozo está na reação de constrangimento e medo que provoca, estando no poder do controle e domínio.
A experiência da satisfação produz efeitos que são reativados quando surge novo estado tensional. Esse efeito é a imagem do objeto que proporciona a satisfação.
Os relatos de abuso trazidos ao conhecimento público na última semana nos trazem à memória o caso do ex-médico Roger Abdelmassih, condenado por 56 condutas de abuso de pacientes mulheres, por violentá-las sexualmente enquanto estavam sob efeitos de sedativos. Abdelmassih foi condenado a 278 anos de prisão por 52 estupros, e quatro anos pelas tentativas de estupro a 39 mulheres.
Comparando-se os casos e observando-se o comportamento do médium ante o quadro avassalador de denúncias, é possível identificar semelhança de características psicopáticas: eloquência, egocentrismo, manipulação, ausência de sentimento de culpa e empatia.
Sem buscar julgamento prematuro, pode-se dizer que o perfil ora identificado assemelha-se ao de um serial rapis (estuprador em série). Em especial pelo modus operandi relatado nos casos denunciados.
Se o for, estaremos diante de um verdadeiro lobo em pele de cordeiro, que usa de múltiplas facetas, atos típicos de um perverso, como forma de posar de bom homem. Mas sua outra face revelava às mulheres que buscava mesmo molestar seu verdadeiro “eu”. Para esse perfil de abusador, a mulher é vista como um objeto, e por isto, seu sistema psicológico/inconsciente, não sabe dizer não para seus desejos, e assim deseja o tempo todo, e busca a satisfação da sua libido que seduz e engana, atrás de uma máscara de homem de bem, quando na verdade CURA A DOR no outro, provocando marcas no corpo e na alma.
O romper do silêncio
Por décadas, inúmeras vítimas mantiveram-se silentes. Inertes.
Agora, confiantes de que não serão desacreditadas, movidas pelo empoderamento, decidiram denunciar os abusos praticados pelo médium.
Muitos relatos são de vítimas que sofreram assédio e abuso ainda na adolescência.
Até mesmo uma das filhas do médium revelou ter sido abusada entre os 10 e 14 anos de idade.
Há mais de 4 décadas João de Deus exerce o trabalho de cura espiritual, e durante esse período, inúmeros casos de abuso sexual foram relatados, outros denunciados. Contudo, não há conhecimento de qualquer condenação.
Em 1980, o médium foi acusado de crime de sedução. Porém, o processo foi extinto por desinteresse da família da adolescente.
No ano de 2008, Camila Correia Ribeiro – na época, menor, com 16 anos -, denunciou ter sido vítima de abuso sexual por “João de Deus”, durante um atendimento feito pelo médium na sala deste. O processo se estendeu até 2013, resultando na absolvição da acusação de violação sexual mediante fraude. A decisão foi confirmada pelo Tribunal de Justiça de Goiás, que levantou dúvidas acerca da credibilidade do depoimento de Camila, entendendo o relator que ela sofria transtorno que a deixava incapacitada de diferenciar fantasia da realidade. Camila tornou-se advogada e, em que pese ter sido uma das primeiras mulheres a denunciar o médium, sente a amargura de ter sido desacreditada.
As consequências do temor de ser novamente desacreditada
O caso do médium João de Deus tomou uma proporção colossal inesperada. Não bastassem as centenas de relatos de abuso, uma das denunciantes cometeu suicídio por não suportar assistir ao homem que havia acusado de abuso, retomar normalmente suas atividades, e continuar sendo adorado em um contexto desordenado, que mistura espiritualidade e fé.
A família da vítima, que era seguidora de “João de Deus”, ignorou suas acusações, mantendo apoio ao médium.
Ante ao cenário caótico que vemos se agigantar a cada dia, é importante uma reflexão: Por que inúmeras vítimas por anos mantiveram-se silentes? Porque não é tão simples confiar apenas em suas palavras.
Em verdade, no que se refere ao crime de estupro, incontáveis são as mentes autoritárias e patriarcais que perpetuam em uma sociedade retrógrada e injusta, considerando o abuso sexual, tal qual entendia Viveiro de Castro, que atribuía à mulher a responsabilidade pelo delito sofrido: “de justiça responsabilizar em primeiro lugar a própria mulher (…) ela faz tudo que de si depende para perder o respeito (…)”.
E é baseado nesse pensamento medíocre que a palavra da mulher é sempre questionada.
Soma-se a isso os inúmeros casos das “falsas vítimas”. Mulheres que por vingança privada ou mesmo por manipulação, seja emocional, seja financeira, movem o sistema em prol da realização pessoal, ignorando qualquer consequência.
Com isso, restou enfraquecido acreditar sem antes pré-julgar a vítima.
Por sentimentos como esse é que diversas mulheres escolheram o silêncio e o caso do médium João de Deus tornou-se catastrófico com centenas denúncias.
Sabe-se que crimes dessa natureza, se não apurados de imediato, não deixarão vestígios, além das amarguras da alma da vitimada.
Contudo, sem buscar aqui qualquer julgamento de valor, diverso disso, como mulher, mãe e filha, busco sempre levantar a bandeira da não-violência. Com efeito, como Advogada Criminalista, conhecedora do alto “preço” da “condenação antecipada”, sem o devido processo legal, não posso silenciar diante da “força da cultura da punição” que assola nosso país, enraizada em nossa sociedade.
Cabe a nós, mulheres, e a todos os operadores do Direito, o “filtro da verdade”, pois assim estaremos preservando as verdadeiras vítimas.
E às mulheres que acusam, sabendo ser falsa a imputação, suplicamos: tenham consciência da insegurança jurídica gerada, e da força que isso resulta, tirando a credibilidade da palavra da mulher que seja verdadeiramente vítima.
Não mentir para se fazer acreditar é o primeiro passo para protegermos umas às outras.
Referências:
Queiroz, Marla de. Ainda é cedo pra ser tarde demais. São Paulo: Patuá. 2014;
SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Mentes Perigosas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. Pags. 68/76;
< https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/6/18/cotidiano/4.html>
Nucci, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual – 5. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro : Forense, out/2014. Pag. 17 (rodapé);
PÁDUA, Cláudia Maria França. O criminoso e seu juízo… Existe prazer em matar?. Editora Líder : 2008. Pág. 46;