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A guilhotina de Celso de Mello e o eterno retorno revolucionário

Ninguém imaginaria, na convulsão social que bradava contra sua própria época, nos idos de 1789, que aquele espírito revolucionário faria escola tão prodigiosa nos séculos seguintes.

As barricadas do inconformismo, ocupadas pelos combatentes do justo, formavam a linha imaginária que separava o velho modelo, tratado a cusparadas e morticínios por seus opositores, do novo modelo, alimentado com as mais profundas ânsias de reforma.

E foi justamente nessa época que a guilhotina foi reintroduzida, na França, pelas mãos do médico francês Joseph-Ignace Guillotin (numa espécie de eterno – Ewige Wiederkunft – segundo Nietzsche), com a justificava de sua utilização ao excêntrico argumento de que era um método de execução mais humano do que o enforcamento ou a decapitação por machado. É que a agonia do enforcamento, segundo ele, podia se demorar e o golpe do machado, muitas vezes, meio cego, ou utilizado por um inepto, poderia não funcionar na primeira tentativa, aumentando o sofrimento das vítimas.

Vejam só. Içando as razões do Sr. Guillotin para o entorno da Champs-Élysées, vemos aí justiça, compaixão e alteridade (essa expressão que enverniza os discursos pós-modernos). Em outras palavras, fixando os olhos apenas no instrumento de decapitação, vemos truculência. Mas estando a par das razões de sua utilização, damos um passo atrás na crítica e reconhecemos sua (possível) humanidade.

A revolução tem um pouco disso. Ocupa em nossa mente o espaço destinado às mais comezinhas reflexões da lógica e da verdade, impedindo que apliquemos ao caso concreto uma elucidação razoável.

Quando o ministro Celso de Mello, relator da ADO 26, afirmou que a homofobia deve ser equiparada ao racismo para fins de criminalização, inclusive considerando inútil fazer o chamado ao Legislativo para debate e votação do tema, bem como se valendo de um tom político que ultrapassou sobremaneira os limites técnicos exigidos para as altercações na corte suprema , trajou-se de revolucionário gaulês, esquecendo-se de refletir sobre a guilhotina e fixando-se apenas na suposta força epistemológica de seus arroubos retóricos.

Olvidou-se o eminente ministro de que, não importa a motivação que apresente, o método do Sr. Ghilhotin (que nada tem de novo), neste caso, tem nome e sobrenome, e chama-se analogia in malam partem, segundo a qual diante de uma omissão legislativa é terminantemente proibido que se utilize de uma lei reguladora de caso “semelhante” para prejudicar o réu.

Em definição perspicaz, FERRAJOLI fala sobre o princípio da legalidade penal, conceituando-o como “uma regra de distribuição do poder penal que preceitua ao juiz estabelecer como sendo delito o que está reservado ao legislador predeterminar como tal”, e sobre o princípio da estrita legalidade, dizendo-o “uma regra metajurídica de formação da linguagem penal que para tal fim prescreve ao legislador o uso de termos de extensão determinada na definição das figuras delituosas, para que seja possível a sua aplicação na linguagem judicial como predicados verdadeiros dos fatos processualmente comprovados” (grifou-se). Deixa claro, portanto, a separação do papel do judiciário e do legislativo na criminalização de condutas, jamais se ocupando de intromissões salvacionistas, assim ouso chamar.

É certo dizer, pois, que o decano da corte feriu de morte postulados fundantes da dogmática penal ao substituir-se como legislador, julgando suas razões acima da crueldade da guilhotina, que decepa com embotado sentimento de compaixão a estrutura da ciência do direito.

Quando o legislador, ou, pior ainda, o Judiciário, passa a utilizar-se do direito penal como instrumento de “luta”, flagrantemente atuará de maneira totalitária, o que evidencia um paradoxo insuperável, já que os movimentos de minorias, que dizem representá-las, passam a advogar com ferrenha devoção a criação de tipos penais estrambóticos, insuflando a já abarrotada prateleira de condutas puníveis. Crítica semelhante já fizera MARIA LÚCIA KARAN . Faço-a também agora.

Se é certo que determinados comportamentos devem ser censurados penalmente, nenhuma motivação deveria ser capaz de arrancar as bases de formação do delito, cuja definição atual fora construída sob a experiência de séculos de desacerto como este agora que contemplamos no julgamento da ADO 26.

Jimmy Deyglisson é advogado criminalista, vice-presidente da ABRACRIM/MA, especialista em ciências penais.

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