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A necessária aplicação da lei nº 13.431/17 (“depoimento sem dano”) na fase investigativa: meio de proteger crianças vítimas de crime sexual; garantidor do devido processo penal

Luan Filipe Santos dos Santos*

RESUMO

Diante de toda complexidade que permeiam a ‘busca pela verdade real’ nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, faz-se necessárioa adoção do Depoimento Especial,ainda na fase de investigativa, previsto no art. da Lei nº 13.431/17, sendo um procedimento redutor de dano, onde a vítima deverá ser ouvida uma única vez, seguindo o rito cautelar da antecipação de prova, onde deverá sergarantida a ampla defesa e o contraditório. Além de preservar o juízo natural da causa, mantendo-o equidistante da gestão das provas, estando adstrito em julgar baseado naquilo em que ficou produzido pelas partes conforme pressupõe o sistema acusatório, mediante profissional interposto devidamente capacitado (psicólogo, assistente social, pedagogo).

Palavras-Chave: Crime sexual. Depoimento sem dano. Devido processo legal.

1. Introdução

Ao longo da história, o sistema de garantias de direitos, no que diz respeito a crianças e adolescentes vítimas de crimes sexuais foram se aperfeiçoando, ao passo que surgiram novas técnicas para a colheita de depoimento através de um método ‘redutor de dano’, previsto na Lei 13.431/17.

Nos dias atuais não é possível mais admitir a oitivatradicional da vítima quando necessitam participar do sistema de justiça, pois os espaços judiciais onde ocorrem as audiências de instrução e julgamento tem aspecto nefasto, o que não colabora em nada para que a criança se sinta à vontade em contar sobre as violências pelas quais passou, além da possibilidade de cruzar nos corredores do fórum com o próprio agressor do fato.

É neste contexto que surge o ‘Depoimento Especial, como método redutor de dano, numa forma excepcional de escuta da criança ou adolescente vítima de crime sexual.

Este método excepcional de depoimento é realizado quando a criança, que configura como vítima, fica em uma sala somente na presença de uma pessoa interposta (psicóloga, assistente social, pedagogo), enquanto que o Juiz, o Ministério Público e a Defesa técnica, além do acusado, permanecem em sala de audiência, local diferenciado do primeiro. As salas encontram-se conectadas por um sistema fechado de áudio e vídeo, onde é possível, a partir da sala de audiências, ouvir e ver a criança respondendo, na outra sala, os questionamentos formulado pela assistente social ou psicóloga assim como interagir com ela, fazendo perguntas para o técnico que a acompanha.

É o profissional especializado quem entrevista à criança e/ou adolescente, pois é ele que, detém a técnica para tal. Este depoimento é filmado e o DVD acompanha o processo.

Existe, ainda, a possibilidade de o próprio profissional especializado que acompanhou a entrevista ser ouvido, judicialmente, para esclarecimento de dúvidas oriundas das partes e do próprio julgador a respeito do que foi colhido ou até mesmo do método aplicado pelo profissional.

2. Depoimento especial surgiu por iniciativa de magistrado gaúcho

A forma humanizada de ouvir crianças e adolescentes que sofreram violência sexual, teve seu projeto-piloto em 2003, no 2° Juizado da Infância e Juventude do Foro Central da Comarca de Porto Alegre, com o nome inicial de ‘Depoimento sem Dano’.

O ‘método’ excepcional de oitiva foi idealizado pelo juizJosé Antônio Daltoé Cezar, a partir de toda a sua experiência no Juizado da Infância e Juventude, sua implantação naquela Comarca deu tão certo que se tornou lei em todo o território nacional, a Lei do ‘Depoimento Especial’, que vigora desde o dia 05/04/2018.

3. Direitos e garantias fundamentais da criança e do adolescente

A lei 13.431/17, determina no artigo 5° e seus incisos, direitos e garantias fundamentais da criança e do adolescente vítima de crime sexual:

I – receber prioridade absoluta e ter considerada a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento;

II – receber tratamento digno e abrangente;

III – ter a intimidade e as condições pessoais protegidas quando vítima ou testemunha de violência;

IV – ser protegido contra qualquer tipo de discriminação, independentemente de classe, sexo, raça, etnia, renda, cultura, nível educacional, idade, religião, nacionalidade, procedência regional, regularidade migratória, deficiência ou qualquer outra condição sua, de seus pais ou de seus representantes legais;

V – receber informação adequada à sua etapa de desenvolvimento sobre direitos, inclusive sociais, serviços disponíveis, representação jurídica, medidas de proteção, reparação de danos e qualquer procedimento a que seja submetido;

VI – ser ouvido e expressar seus desejos e opiniões, assim como permanecer em silêncio;

VII – receber assistência qualificada jurídica e psicossocial especializada, que facilite a sua participação e o resguarde contra comportamento inadequado adotado pelos demais órgãos atuantes no processo;

VIII – ser resguardado e protegido de sofrimento, com direito a apoio, planejamento de sua participação, prioridade na tramitação do processo, celeridade processual, idoneidade do atendimento e limitação das intervenções;

IX – ser ouvido em horário que lhe for mais adequado e conveniente, sempre que possível;

X – ter segurança, com avaliação contínua sobre possibilidades de intimidação, ameaça e outras formas de violência;

XI – ser assistido por profissional capacitado e conhecer os profissionais que participam dos procedimentos de escuta especializada e depoimento especial;

XII – ser reparado quando seus direitos forem violados;

XIII – conviver em família e em comunidade;

XIV – ter as informações prestadas tratadas confidencialmente, sendo vedada a utilização ou o repasse a terceiro das declarações feitas pela criança e pelo adolescente vítima, salvo para os fins de assistência à saúde e de persecução penal;

XV – prestar declarações em formato adaptado à criança e ao adolescente com deficiência ou em idioma diverso do português.

Parágrafo único. O planejamento referido no inciso VIII, no caso de depoimento especial, será realizado entre os profissionais especializados e o juízo.

4. Mecanismo Padrão

4.1. Rito cautelar da antecipação da prova

Após a autoridade policial tomar conhecimento do crime de violência sexual de criança ou adolescente, o mesmo deverá, imediatamente, representar ao Ministério Público para que proponha ação cautelar de antecipação de prova, resguardando os pressupostos legais e as garantias constitucionais da vítima e do investigado, conforme artigo 20, inciso VI da Lei 13.431/17.

A referida lei determina em seu artigo 11, §1°, inciso II, que o Depoimento Especialdeverá seguir o rito cautelar de antecipação de prova em caso de violência sexual.

Ocorre que muitas provas e evidênciasdesaparecem com o tempo, por isso há necessidade de que se tomem cautelas diversas com o escopo de preservá-las ou colhê-las antecipadamente, daí surge a necessidade de se aplicar o ‘Depoimento Especial’, num curto espaço de tempo, para que o depoimento da vítima não se contamine, seja pelos anseios de justiça de parentes e amigos ou pela didática habitual aplicada em que a vítima por inúmeras vezes tem que relatar o seu depoimento para a psicóloga, assistente social, delegado de polícia, promotor de justiça e na audiência de instrução e julgamento, ao passo que a vítima revive seus traumas a cada nova inquirição, além de macular a busca pela ‘verdade real’ perseguida pelo processo, pois é improvável que a criança ou adolescente vítima de crime sexual mantenha a mesma linha de raciocínio em todos os seus depoimentos, o que acaba trazendo dúvidas ao processo.

De acordo com o Ilustríssimo Professor e Promotor de Justiça (Gomes Duarte ANTÔNIO, pág. 302):

acautelar a prova é medida de tão grande importância processual, que pode repercutir até mesmo no jus liberta-ris do acusado”.

O ‘Depoimento Especial’, colhido antecipadamenteem caráter cautelar,também evita que inocentes respondam processos dessa magnitude, numa sociedade em que julga diariamente os seus pares em veículos de informação em busca da melhoraudiência, antesmesmo que o ministério público tenha ofertado a denúncia e as partes tenham confrontadoprovas e evidências. Portanto,estando, pois, ausentes, os indícios de materialidade e autoria o titular da ação deixará de oferta-la por ausência de justacausa.

Acautelarmos em matéria de prova não é uma hesitação de pobre de espírito, mas sagacidade de sábio” (ApudeFERREIRA, Manoel Cavaleiro, de in Curso de Processo Penal, Vol 1°, p. 208).

4.2. Sistema operacional padrão do ‘Depoimento Especial’

A lei 13.431/17, prevê no artigo 5°, inciso VIII, que a criança ou adolescente vítima de crime sexual teráprioridade na tramitação do processo, celeridade processual, idoneidade do atendimento e limitação das intervenções das partes.

Além de resguardar a criança ou o adolescente de qualquer contato, ainda que visual, com o suposto autor ou acusado, ou com outra pessoa que represente ameaça, coação ou constrangimento.

O ‘Depoimento Especialdeverá ser realizado uma única vez, devendo ser realizado em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam a privacidade da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de violência.

O artigo 12° da Lei 13.431/17, determina em seus incisos o sistema operacional padrão em que o depoimento especial deverá ser colhido:

I – os profissionais especializados esclarecerão a criança ou o adolescente sobre a tomada do depoimento especial, informando-lhe os seus direitos e os procedimentos a serem adotados e planejando sua participação, sendo vedada a leitura da denúncia ou de outras peças processuais;

II – é assegurada à criança ou ao adolescente a livre narrativa sobre a situação de violência, podendo o profissional especializado intervir quando necessário, utilizando técnicas que permitam a elucidação dos fatos;

III – no curso do processo judicial, o depoimento especial será transmitido em tempo real para a sala de audiência, preservado o sigilo;

IV – findo o procedimento previsto no inciso II deste artigo, o juiz, após consultar o Ministério Público, o defensor e os assistentes técnicos, avaliará a pertinência de perguntas complementares, organizadas em bloco;

V – o profissional especializado poderá adaptar as perguntas à linguagem de melhor compreensão da criança ou do adolescente;

VI – o depoimento especial será gravado em áudio e vídeo.

§ 1º À vítima ou testemunha de violência é garantido o direito de prestar depoimento diretamente ao juiz, se assim o entender.

§ 2º O juiz tomará todas as medidas apropriadas para a preservação da intimidade e da privacidade da vítima ou testemunha.

§ 3º O profissional especializado comunicará ao juiz se verificar que a presença, na sala de audiência, do autor da violência pode prejudicar o depoimento especial ou colocar o depoente em situação de risco, caso em que, fazendo constar em termo, será autorizado o afastamento do imputado.

§ 4º Nas hipóteses em que houver risco à vida ou à integridade física da vítima ou testemunha, o juiz tomará as medidas de proteção cabíveis, inclusive a restrição do disposto nos incisos III e VI deste artigo.

§ 5º As condições de preservação e de segurança da mídia relativa ao depoimento da criança ou do adolescente serão objeto de regulamentação, de forma a garantir o direito à intimidade e à privacidade da vítima ou testemunha.

§ 6º O depoimento especial tramitará em segredo de justiça.

Caso o sistema operacional padrão da colheita do ‘Depoimento Especial’ seja quebrado, seja pelo profissional interposto capacitado, autoridade policial, promotor de justiça ou juiz, as provas advindas de tal procedimento estarão maculadas de vício, logo, deverão ser desentranhadas dos autos, sob pena de macular o processo e as demais provas que possam surgir a partir da colheita do ‘Depoimento Especial’.

5. Procedimento garantidor do devido processo legal (Penal)

O devido processo legal (‘due process of law), é um princípio constitucional basilar do Estado Democrático de Direito, ocasião em que os atos processuais devem ser pautados na clara distinção entre as atividades acusar, defender e julgar; iniciativa probatória deve ser das partes; mantém-se o juiz como um terceiro imparcial garantidor do devido processo penal; publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte); garantia do contraditório e ampla defesa.

A essência do devido processo legal está na simétrica paridade da participação dos interessados(acusação e defesa técnica), devendo o juízo natural colocar-se como um verdadeiro sentinela das garantias constitucionais da vítima e do acusado.

Segundo lopes junior, AURY (2018, pág. 25), osatos do procedimento miram o provimento final e estão inter-relacionados, de modo que a validade do ato subsequente depende da validade do ato antecedente, e da validade do ato antecedente depende da validade do ato subsequente, e da validade de todos eles, depende a sentença.

Por isso o sistema operacional padrão da Lei n° 13.431/17 deve ser cumprido a risca, sob pena de macular a validade de todos os atos,além de colocar o juízo da causa equidistante da gestão das provas, poisanterior a presente lei, alguns julgadores com o intuito de resguardar a intimidade e os direitos fundamentais da vítima optavam em proceder a oitiva da mesma sem a presença das partes (acusação e defesa), o que acarretava num enorme prejuízo ao processo, pois ao ser o gestor da principal prova do processo que é o depoimento da vítima feria de morte o sistema acusatório e a sua própria imparcialidade que é um pressuposto de validade do processo penal.

6. Conclusão

Por não haver uma uniformidade nos procedimentos de escuta das crianças e dos adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, foi necessário o surgimento de uma legislação regulamentadora, com base nos garantidos direitos de proteção às crianças e aos adolescentes.

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