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O direito penal subterrâneo como mecanismo (i)legal de produção ou “fabricação” (?) de provas no combate à corrupção

Filipe Maia Broeto

Valber Melo

Muito se tem falado, recentemente, sobretudo após a deflagração da interminável e imbatível “Operação Lavajato”, em combate à corrupção. Por meio dessa bandeira, prometeu-se passar o Brasil a limpo, de modo a extirpar da política e da “res” “publicaaqueles agentes públicos que não observavam as leis.

Ocorre, no entanto, que o referido combate à corrupção se deu de forma seletiva, atordoada e, pior, desastrosa. A atitude inefável da prisão preventiva para delatar, hoje já tida como “normal” por parte da sociedade e de alguns operadores do direito, era apenas um mau presságio de que tempos piores viriam.

Infelizmente, a razão estava, de fato, com o Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, quando, espantado, externou sua perplexidade com os “tempos estranhos” pelos quais passava – e está a passar – o Brasil, notadamente o direito penal e processual penal.

Como se tem notado, aqueles que foram afastados da coisa pública, pelo fato de não observarem as leis em vigência, estão sendo punidos por agentes que, em nome do combate à corrupção, acabaram por – também – por não observarem a lei. Vale dizer, buscou-se punir corruptos, a todo e qualquer custo, inclusive corrompendo as regras do jogo.

Nesse cenário, mostra-se pertinente a indagação acerca da legitimidade dos atos de quem, para castigar, violou a lei, corrompendo-a, em nítida implementação do intitulado “Direito Penal Subterrâneo”.

Presentemente, verificam-se conversas nas quais um então juiz federal, em tese imparcial, se revelou um verdadeiro coordenador daquela operação que entrou para a história do “combate à corrupção”. Até quando, todavia, será mantida a reputação dessa onda punitivista, travestida de evolução moral e cívica, cujos rastros de ilegalidade começam a surgir com forças e evidências indesmentíveis?

Juiz participando, às ocultas e contra a lei, de negociações de acordo de colaboração premiada; juiz coordenando o Ministério Público; substituindo promotores, quando esses não se demonstravam hábeis em certas ocasiões, tais como em audiências de “grande porte”; esquemas de interceptação telefônica ilegais, feitas com nítido viés político, inclusive contra advogados que, na condição de defensores, têm assegurada, também por lei, a inviolabilidade de comunicação.

Não são só estes os fatos, trágicos, que demonstram a completa extrapolação dos limites legais no enfrentamento à corrupção [de alguns]. Tem-se visto, nos mais diversos Estados da Nação, um movimento atrapalhado, que, dia após dia,indica que os fins nunca justificarão os meios, notadamente quando a parte que emprega meios ilegais é o Estado, aquele mesmo que editou as leis e as punições para os infratores.

Todas essas transgressões à Lei, praticadas por integrantes do Estado, que saem em busca de produzir provas, mesmo quando ilegais, bem denotam aquilo que Christiano Gonzaga, Promotor de Justiça e estudioso da criminologia, em seu Manual de Criminologia, denomina de Direito Penal Subterrâneo.

No Direito Penal Subterrâneo, em que se destacam os integrantes dos controles sociais formais (Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário), existe verdadeiramente a prática de atos criminosos, com intensa violação de direitos e garantias individuais, cujo objetivo é a produção de provas a fim de alcançar-se determinadas pessoas (potencialmente criminosas), sobretudo quando são conhecidas.

Na dicção Christiano Gonzaga, no direito penal subterrâneo, os órgãos formais de controle, por meio de seus representantes, violam os direitos e garantias constitucionais para chegar aprovas incriminadoras, cuja obtenção não se dá de modo lícito:

Seria a máxima de que os fins justificam os meios, mas o problema é quando quem pensa assim é o integrante do Estado, o que coloca por terra toda a sistemática de um Estado Democrático de Direito.

Diz-se, portanto, subterrâneo, porque os movimentos exercidos pelas agências executivas de controle desenvolvem um sistema paralelo, alheio ao ordenamento jurídico posto.Marcelo Soares Mota, citando Eugenio Raúl Zaffaroni, enfatiza essa definição para tratar dos fatos extralegais, praticados no falso envolto da legalidade e sob o manto do combate à criminalidade e proteção do interesse público.

Impõe-se consignar, todavia, que, no Estado Democrático de Direito, no qual a atuação dos agentes estatais há de pautar-se na Lei, criada por esse mesmo Estado, não se pode tolerar que, em nome do combate à corrupção ou à criminalidade, notadamente aos denominados crimes do colarinho branco, sejam violados direitos e garantias fundamentais daqueles que são investigados ou acusados

A propósito, criticando os meios ilegais de obtenção (ou, em determinados casos, fabricação) de provas, relevantes e sensatas são as ponderações de Christiano Gonzaga a essa nefasta prática, intitulada de Direito Penal Subterrâneo:

Buscar provas violando a Constituição Federal, não importando o crime que se investiga, terá a mesma visão subterrânea […] alegar que se está combatendo a corrupção ou outra sorte de crimes praticados pela elite em prol de uma sociedade mais justa e igualitária, livre de criminosos de colarinho-branco, é uma falácia que denigre todo o sistema penal, apesar de ser mais aceitável por parte da população leiga e desconhecedora dos princípios e das garantias fundamentais […] é obvio que se almeja a extirpação desse câncer social que é o criminoso do colarinho-branco, mas para toda e qualquer persecução penal deve existir a atenção aos princípios básicos que fundamentam o ordenamento jurídico.

Como visto, não se pode combater a corrupção a qualquer preço, sob pena de, na ânsia pela “justiça”, cometer-se injustiças. Se uma prova é ilegalmente produzida ou angariada, ilegal também será o processo e eventual condenação contra o sujeito processado, na medida em que a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LX, veda explicitamente a utilização de provas ilícitas, assim como também o faz o Código de Processo Penal, no artigo 157.

Nesse contexto, esclarece-se que não trata de ser “contra” ou “a favor” do combate à corrupção, como se o devido processo legal se resumisse a tão reducionista e simplória expressão. Cuida-se, em última análise, de ser contra uma postura arbitrária e violadora de direitos e garantias constitucionalmente assegurados ao cidadão que se vê acusado de qualquer sorte de crime.

É-se contra o corrupto combate à corrupção, mormente porque, ao violar-se leis para combater crimes, num típico caso Direito Penal Subterrâneo – praticado à margem da lei, fora do alcance da legalidade –, cometem-se crimes ao punir. Destarte, se assim procedemas autoridades estatais, tem-seuma justiça corrupta, na qual os justiceiros são, na verdade, tão – ou mais – criminosos quanto aqueles que investigaram, acusaram julgaram e condenaram.

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