A criminalização das condutas que violam as prerrogativas dos advogados e a nova lei de abuso de autoridade
A Lei 13.869/2019, conhecida como nova Lei de Abuso de Autoridade, entrou em vigor em janeiro de 2020 e, em seu art. 43, acresceu ao Estatuto da Advocacia o seguinte tipo penal: “Art. 7º-B Constitui crime violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º desta Lei: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.”
Embora o dispositivo em questão (novo tipo penal) esteja sendo motivo de euforia entre muitos advogados nas redes sociais por uma possível conquista da advocacia, a verdade é que a nova Lei de Abuso de Autoridade trouxe abolitio criminis em diversas situações. Note-se que o art. 7-B apenas se refere aos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º, ou seja, são apenas 4(incisos). Uma leitura atenta do art. 7º do Estatuto da Advocacia permite constatar a existência de 21 (vinte e um) incisos. Pela atual Lei de Abuso de Autoridade (Lei 4.898/1965), a violação, por exemplo, ao inc. VII, que prevê como direito do advogado “permanecer sentado ou em pé e retirar-se de quaisquer locais indicados no inciso anterior, independentemente de licença”, poderia constituir crime de abuso de autoridade, visto que o art. 3º, alínea “j”, da Lei 4.898/1965 reza que qualquer atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional configura, em tese, abuso de autoridade. Se é direito do advogado permanecer sentado nas sessões dos tribunais, o desrespeito a esse direito caracteriza crime de abuso de autoridade pela Lei de Abuso de Autoridade ainda vigor (Lei 4.898/1965). Na nova Lei de Abuso de Autoridade, o desrespeito ao inc. VII do caput do art. 7º não seria mais crime.
Conclui-se, então, facilmente que a violação às prerrogativas dos advogados já era criminalizada na Lei 4.898/1965.
O novo art. 7º-B refere-se, primeiramente, ao inc. II (a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia). Andou bem o legislador em dizer “escritório ou local de trabalho”, pois é cediço que diversos advogados trabalham em repartições públicas, as quais não se confundem com escritórios. Os instrumentos de trabalho também são protegidos e, dentre os quais, pode ser mencionado aqui o computador ou a agenda. A correspondência escrita se refere, por exemplo, a cartas. A correspondência eletrônica seriam os e-mails. Fala-se ainda da “telefônica” (pune-se a gravação telefônica) e da “telemática” (Skype por exemplo). Faz-se, no entanto, a exigência de que as correspondências sejam relativas ao exercício da profissão. É verdade também que a inviolabilidade em comento não é absoluta, pois o Estatuto da Advocacia, em art. 7º, § 6º, reza que “Presentes indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de advogado, a autoridade judiciária competente poderá decretar a quebra da inviolabilidade de que trata o inciso II do caput deste artigo, em decisão motivada, expedindo mandado de busca e apreensão, específico e pormenorizado, a ser cumprido na presença de representante da OAB, sendo, em qualquer hipótese, vedada a utilização dos documentos, das mídias e dos objetos pertencentes a clientes do advogado averiguado, bem como dos demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes.” Note-se que, para violar o escritório de advocacia, o § 6º exige os seguintes requisitos: ordem judicial expedida pela autoridade judiciária competente; objeto delimitado; decisão fundamentada; presença de um representante da OAB. Vale a pena ressaltar que a quebra da inviolabilidade prevista no §6º deve dar-se com presença do representante da OAB (exemplos de representante: Diretor da Subseção, Conselheiro Estadual ou Federal da OAB e membro da Comissão de Direitos e Prerrogativas da Subseção ou da Secional), sob pena de configuração do crime de abuso de autoridade previsto no novo art. 7º-B. Portanto, não apenas a inviolabilidade do escritório de advocacia configura o crime de abuso de autoridade, mas também o descumprimento dos requisitos do §6º para a quebra da inviolabilidade pode configurar o crime do novo art. 7º-B.
A violação ao inc. III do caput do art. 7º (comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis) teria alcance diverso do disposto no art. 20 da nova Lei de Abuso de Autoridade. O art. 7-B seria mais aplicável para os casos em que o advogado, dirigindo-se ao presídio, penitenciária ou cadeia pública, não consegue ter êxito em comunicar-se com o cliente que está preso ou recolhido nesses estabelecimentos, ao passo que o art. 20 teria incidência em relação aos presos que estão, por exemplo, em trânsito nas dependências do prédio do Fórum em razão da prática de algum ato processual.
A violação ao inc. IV do caput do art. 7º (ter a presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da OAB) também constitui crime de abuso de autoridade previsto no novo art. 7º-B. O dispositivo refere-se à prisão em flagrante (art. 302 do CPP) e a prisão deve estar ligada ao exercício da advocacia. O legislador fala em “respectivo auto”, querendo referir-se ao auto de prisão em flagrante. A nulidade mencionada aí pelo legislador quer dizer que, ante o descumprimento do dispositivo (inc. IV), o auto de prisão perde seu efeito coercitivo, isto é, relaxa-se a prisão em flagrante, sem prejuízo do oferecimento da denúncia pelo Ministério Público. Quando o crime não estiver ligado ao exercício da advocacia como a prática de crime de embriaguez ao volante (crime de trânsito), não é necessário haver a presença do representante da OAB, mas a autoridade deve fazer a comunicação expressa à Secional (OAB Estadual), sendo evidente que a comunicação à Secional pode dar-se através de ofício dirigido ao Presidente Estadual da OAB e protocolado na própria Subseção (OAB local).
O inc. V (não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades condignas, assim reconhecidas pela OAB, e, na sua falta, em prisão domiciliar) merece algumas observações. O Supremo Tribunal Federal vinha entendendo, no início, que o direito de o advogado ser recolhido em sala de Estado Maior somente se satisfazia com a sua colocação em “compartimento de qualquer unidade militar” (Rcl 6387/SC, DJe-222 DIVULG 20-11-2008 PUBLIC 21-11-2008), mas posteriormente a jurisprudência da Suprema Corte evoluiu “para entender possível a prisão de advogado, pendente o trânsito em julgado da sentença condenatória, em local diverso das dependências do comando das forças armadas ou auxiliares, desde que apresentadas condições condignas para o encarcerado” (Rcl 23567/SP, DJe-124 DIVULG 15-06-2016 PUBLIC 16-06-2016).
O novo tipo penal (art. 7º-B) não autoriza a lavratura de auto de prisão em flagrante, exceto se o autor do fato não for encaminhado imediatamente ao juizado e não assumir o compromisso de a ele comparecer (art. 69, parágrafo único, da Lei 9.099/95). Trata-se, então, de infração de menor potencial ofensivo.
IVAN RAFAEL BUENO, advogado criminalista, Presidente da 80ª Subseção da OAB/SP e comentarista da nova Lei de Abuso de Autoridade.