A analisar, com uma lupa, reservas constitucionais acerca da atuação de sniper
Ronaldo David Guimarães
O início deste debate é de que o Direito Penal do Inimigo deve ser compreendido enquanto espécie de um estado de exceção, como a declaração de estado de sítio ou de defesa, quando há a supressão dos direitos constitucionais, entendimento que nos traz perplexidade diante de explícitos descumprimentos de normas instituídas ao arrepio de princípios mundiais fundamentais dos direitos humanos, através da qual se suspende a vigência das normas jurídicas sem revogá-las, formando um vazio que é complementado pelas figuras do homo sacer, enquanto indivíduo submetido ao Poder Soberano, e do campo, enquanto espaço biopolíticoanônimo. A inflexão de Jakobs permite que essa desvinculação dos textos constitucionais vigentes se situe na normativização do conceito de pessoa, pelo qual consegue abrir um flanco na ordem jurídica onde se infiltra o estado de exceção.
A teoria conhecida como Direito Penal do Inimigo, desenvolvida por Günther Jakobs, catedrático emérito de Direito Penal e Filosofia do Direito, na Universidade de Bonn, Alemanha, vem ganhando adeptos em vários países do mundo e, a cada ano, com mais debates filosóficos diante da globalização das ciências-penais-criminais ante a exigênciaimperiosa à introdução de um direito penal com foco, em regra, somente na segurança nacional.
Ao falarmos da constituição legislativa penal em países democráticos em comparação o processo penal do inimigo, não há como não citarmos a obra Do Espírito Das Leis, de Montesquieu.
Demais, na maioria dos estados, sendo a liberdade mais restringida, abalada ou destruída do que o exige a constituição, é conveniente falar das leis particulares que, em cada constituição, podem favorecer ou prejudicar o princípio da liberdade da qual cada um deles pode ser suscetível.
O Direito Penal do Inimigo é assunto que foi tratado e ainda o é por Jakobs há longos anos, mas sempre seu debate é atual. Tido como discípulo de Welzel, Jakobs abordou o tema, “de forma crítica”, já em 1985, sendo que, posteriormente, em 1999, retomou o assunto, mas agora para sustentar “um direito penal parcial: aquele que se comporta como inimigo deve ser tratado como inimigo, como ´não-pessoa’ (Unperson)”. E o Direito Penal do Inimigo ganhou força a partir dos ataques terroristas de 11/09/2011 na cidade de Nova Iorque, tendo, consequentemente, reflexos na política criminal mundial, senão de todos, da maioria dos países, ainda que não seja um tema recente.
Presenciamos inúmeras manifestações, as quais se tratam, em massacrante maioria das vezes, de ideologia-político-governamental não de decisões e princípios discutidos e apresentados através de ciências-penais-criminais com supedâneo nas reservas constitucionais à Convenção do Direito do Homem. Em estados tidos como democráticos de direito em que a escalada da violência é latente pela comprovada ineficiência estatal, estas políticas-midiático-temporãs parecem com maior frequência,conforme é a proposta apresentada pela utilização de snipers no Estado do Rio de Janeiro, Brasil.
Em sendoalvos da ação do sniper pessoas escolhidas em razão de sua“vestimenta utilizada” naquele momento;dolocal no qual mantenha sua “residência e domicílio”; por se tratar de “menor infrator” que estejaporventura a se utilizarde brinquedo “semelhante” com uma“arma de fogo”; de um profissional autônomo que esteja utilizando de uma “furadeira elétrica”; de alguém que porte uma “mochila ou pochete” eque em todas estas situações venham a ser alvos do sniper,a nosso ver, será um dos melhores exemplos do Direito Penal do Inimigo da América Latina. Infringindo de forma explícita os princípios constitucionais individuais, conforme asideologiaspessoais apresentadas pelo Governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel, que, às suas palavras, diz que se trata de uma questão de interpretação da lei, que prefere “defender o policial (que atira para matar) no tribunal do que ir ao funeral dele”.
Sem ter a pretensão de esgotarmos o assunto, além do mais por se tratar de debate comprovadamente axiológico, mesmo que façamos um exercício de abstração e tentemos isolar intelectualmente um conceito de um elemento à exclusão de outro, a complexidade dos entendimentos nosimpede de tecer maiores minúcias para melhor conclusão sobre intensões ideológico-midiático-populistas na busca pela diminuição da violência, nos demonstrando serem estes exemplos alguns de vários pontos que corroboram nossos estudostécnico-científicos relacionados diretamente ao Direito Penal do Inimigo. Independentemente, logicamente, de quem tenha partido a determinação ouaté mesmo sem ter ocorrido comando diretona ação de um sniper. Conformepalavras do Professor Manuel Monteiro Guedes Valente em sala de aula, “não pode a ideologia estatal tirar a história do ensino da massa populacional”.
Na mesma esteira de interpretação processual penal, vejamos o entendimento do historiador do pensamento político Norberto Bobbio em sua obra Direito e Poder, entendimento com o qual coadunamos.
A conexão acontece assim: o ordenamento jurídico, autorizando um indivíduo a agir para tutelar um interesse próprio, assume a vontade do interessado como parte constitutiva do procedimento com o qual se produz aquela norma individual que é a sentença.
Contudo, ao analisar o Direito Penal tomando como ponto de partida a pena, chegar-se-á, inevitavelmente, às concepções funcionalistas acerca do Direito Penal, dentre elas, em contrariedade ao funcionalismo moderado de Roxin, o funcionalismo radical (ou sistêmico) de Jakobs, que dará margem e sustentará o chamado Direito Penal do Inimigo.
Trata-se, em massacrante maioria das vezes, de processo penal midiático-temporâneo-ideológico, institucionalizado a “toque de caixa” para vir a agradar à situação momentânea da população de um estado, mesmo que este estado seja signatário das prerrogativas constantes nas convenções mundiais dos direitos do homem.
É por meio desse viés funcionalista (radical / sistêmico) que Jakobs crê no fato de que o Direito Penal se justifica para garantir a vigência da norma (numa ideia de respeito ao contrato social) e de reprimir veementemente condutas perigosas, cometidas, por certo, pela temida figura do inimigo, contrastando-se, portanto, o Direito Penal do Cidadão e o Direito Penal do Inimigo, e não sendo possível falar-se em bem jurídico (penal), bem como mitigando, até mesmo por completo, a questão da ofensividade em direito penal.
Isto tudo vem em total contraste com o direito penal do cidadão, em que são asseguradas as garantias e os direitos fundamentais, inerentes a um devido processo legal, como menciona Canotilho:
Estrutura-se segundo um código de princípios de direito penal e de direito processual que agora encontram dignidade constitucional formal na maioria das leis fundamentais (princípio da legalidade, princípio da não retroactividade das leis penais, princípio de non bis in idem, princípio da inocência do argüido, princípio das garantias de defesa do réu, princípio do acusatório, princípio da reserva do juiz, etc.)
Ferrajoli, ao abordar a soberania no mundo moderno e não especificamente o tema em voga, traz um bom comparativo ao mencionar que “a figura do ´selvagem´ vem identificar-se com a do ´estranho´, na maioria das vezes inimigo, em alguns casos não humano ou semi-humano, mas sempre ´inferior´”, em que então o inimigo é sempre o outro, é sempre aquele que não está inserido em determinado círculo social, pois é, via de regra, um (não) ser (´não pessoa´) excluído.
Ainda que, sob a alegação de estar-se em uma “luta contra o terror”, não se pode admitir que o Estado passe “a considerar os inimigos como não-humanos”, justificando, assim, a violação de preceitos básicos que sustentam um Estado Democrático de Direito, cujos postulados foram conquistados de forma árdua ao longo da história. Como bem assinala Saavedra, não há como se coadunar com a ideia de que o “Estado passa a ter o direito de definir quem são seres humanos dignos de proteção estatal e quais são os seres não-humanos que poderão ser tratados como coisas, que poderão ser reificados e, portanto, instrumentalizados para fins políticos de proteção da segurança e da ordem”.
E isso macula o processo penal, além do próprio direito penal. O direito penal passa a ser de autor, punindo-se condutas que jamais chegarão perto de afetar um bem jurídico-penal, e muitas vezes ausentes de qualquer ofensividade, enquanto na seara processual perdem-se as garantias fundamentais de um devido processo legal. Assim, o processo judicial se torna o que Jakobs chama de um verdadeiro “procedimento de guerra”.
Um Estado Democrático e Constitucional de Direito não pode conceber preceitos baseados em um Direito Penal do Inimigo. Não é possível que se aceite, sob qualquer pretexto que for, a concepção de determinadas pessoas como na verdade sendo “não-pessoas”, inimigos, como afirma Jakobs, quando a própria dignidade da pessoa humana é a base fundamental de uma sociedade livre, aberta, multicultural, democrática e plural.
Não é aceitável que se abra mão de preceitos constitucionais, direitos e garantias fundamentais, conquistados a duras penas ao longo da história, bem como se permita relativizar conceitos básicos de um direito penal democrático, justo e igualitário, para a finalidade de “combater” o terror a qualquer custo e de qualquer forma. O direito penal e o processo penal não podem sofrer tamanho retrocesso para permitir que a determinadas pessoas, ou melhor, ´não-pessoas´, tidas como inimigos, direitos e garantias fundamentais sejam inobservados.
Os fins não justificam os meios, mas ao contrário. Os meios é que irão (deveriam) justificar os fins. Melhor dizendo, um erro não justifica outro. Daí que se faz fundamental o respeito ao direito penal de base democrática, pautado pelo princípio da responsabilidade penal subjetiva e centrado no fato cometido, especialmente vinculado ao princípio da culpabilidade. Não se pune pelo que se é ou pelo que se pensa, jamais! Ao processo penal, impõe-se o espeito às formas, pois forma no processo é garantia, bem como, resumindo-se, o respeito ao devido processo legal justo e igualitário e tudo aquilo que daí decorre.
Enfim, resta a indagação de Luisi e a esperança de que as respostas sejam no caminho da preservação dos direitos e das garantias fundamentais:
Será possível para enfrentar os desafios da modernidade e da pós-modernidade, a preservação de uma ordem jurídica respeitosa das garantias dos Estados democráticos de direito? Ou se faz para tanto necessário um direito em que misterse fará o sacrifício das liberdades individuais?
Negar a qualquer ser humano a sua dignidade e qualidade de pessoa, por mais constantes e brutais que sejam as suas práticas delitivas, implica invalidar o próprio Estado Constitucional Democrático, ao negar o seu fundamento maior.No mais e diante de inúmeras ocorrências em que o estado busca manter a paz aos bons padrões de convívio. Mesmo que para isso quebre-se o pacto da reserva legal originariamente constituída com os pilares da democracia ainda com seus antagonismos medievais, o cometimento de um erro não se justifica para corrigir outro.
A respeito dessa nova concepção dos direitos humanos,é pertinente a lição de Flavia Piovesan, no sentido de que, muito embora a definição de direitos humanos apresente uma pluralidade de significados, “(…) destaca-se a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, que veio a ser introduzida com o advento da Declaração Universal de 1948 (…)”.
Se formos levar o pensamento kantiano à risca, muito provavelmente ainda estaríamos vivendo sob a égide da ditadura militar e uma infinidade de pessoas (além daquelas oficialmente consideradas mortas ou desaparecidas) teriam de ser executadas. Por mais esta afirmativa do pensamento kantiano em relação ao tópico deste artigo, podemos afirmar e não tão somente supor que governantes interpretam os princípios constitucionais afavor do clamor popular de certa época e região, se utilizando, sobremodo, dos veículos de comunicação para desconstruir todos os avanços já adquiridos pelos Direitos Humanos, pensamento com que não concordo,muito menos pactuo.
Frisamos ainda, em caso de ocorrer o comando para a atuação do sniper,que, com certeza, neste ponto em específico, a intenção da proposta apresentada pelo governo do Estado do Rio de Janeiro preverá os direitos fundamentais em favor do sniper, aplicando-lhe a excludente da ilicitude em razão da ordem de comando recebida, doutra banda, o superior que lhe determinar o comando irá, a nosso ver, responder pela aplicação, caso ocorra,da infração aoscorretos ditames do devido processo penal, conforme alicerçado na Constituição democrática brasileira.
Kant achava que somente a lei de talião, devidamente aplicada pelo Estado, seria “capaz de especificar definitivamente (…) uma sentença de pura e estrita justiça”.
Kant também teceu severas críticas ao pensamento de Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, autor da obra Dos Delitos e Das Penas, publicada em 1764, ao dizer que ele era “movido por sentimentos compassivos de afetada humanidade” e que sua luta contra a pena de morte não passava “de sofística e de artimanha jurídica”.
A fragilidade, sob a perspectiva filosófica, reside no fato de que, não obstante Günther Jakobs tente demonstrar que sua ideia foi baseada na obra de Kant, o professor alemão se afasta do pensamento do filósofo conterrâneo justamente no ponto nodal de sua tese, haja vista que, para Kant, somente se pode proceder de forma hostil contra alguém “quando ele de fato já me lesou”, enquanto Jakobs defende o posicionamento de que a punibilidade seja “amplamente antecipada para o âmbito da preparação”.
Já o jurista Norberto Bobbio foi um dos autores mais reverenciados pelos constituintes mundiais, não é à toa que o congressista brasileiro Ulisses Guimarães chamou a Cartabrasileira de 1988 de “Constituição Cidadã”. Para o mestre italiano, os direitos fundamentais do homem foram duramente conquistados ao longo do processo civilizatório, conformealhures citado, que passou por uma encruzilhada na II Guerra Mundial. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU, foi um estatuto criado para que as democracias pudessem se precaver contra o fascismo, sob o impacto do Holocausto, o assassinato em massa de judeus pelos nazistas, ordenado por Hitler, o ditador alemão. Aprovada em 10 de dezembro de 1948, a Declaração influenciou vasta legislação internacional e a Constituição de praticamente todos os países democráticos do mundo. O nosso não é exceção.
Na mesma esteira, citamos o entendimento do professor Manuel Monteiro Guedes Valente, em sua obra Direito Penal do Inimigo e o Terrorismo. Mesmo não tendo presenciado nenhum manifesto específico do professor Manuel Valente sobre a atuação de sniper, com certeza será fundamentado com a maestria de sempre.
Neste sentido, consideramos que a política criminal no âmbito do terrorismo tem de voltar a refletir sobre se o fenómeno do terrorismo é um fenómeno jurídico-criminal ou se deve ser enquadrado dentro do Direito de guerra, uma vez que os crimes emergentes do terrorismo já se encontram tipificados como ilícitos gravemente punidos nas legislações penais da maior parte do Estado.
O poder estatal brasileiro se vê na obrigação de apresentar ações afirmativas em favor da coletividade,diante o vertiginoso aumento da violência em todos os seguimentosda sociedade, entretanto a grande maioria das tratativas sobre as cobranças da aplicação de ações contra a violência, não levam em consideração os princípios e as reservas constitucionais mundiais já instituídas em favor dosindivíduos.
Conforme o proposto neste comentário e diante da quantidade de obras citadas acerca do tema, análise que nos traz a lume a utilização ideológica unilateral de administradores estatais, que pensam juridicamente de acordo ao que lhesconvém para sua boa aparência administrativa, diante de “cobranças midiáticas” da população, de formadores de opinião e das necessidades de respostas que, em tese, pareçam ser afirmativas naquele momento e contexto social.
Isso demonstra não ser a melhor opção no combate à criminalidade a utilização de sniper, o abatimento de pessoas antes mesmo de lhes ser dado o direito ao devido e indispensável processo penal com obediência aos princípios e reservas constitucionais embasadas nas Convenções mundiais dos Direitos Humanos, aplicando de forma ditatorial “dente por dente, olho por olho”.
Estudos feitos com base em princípios científicos e adotados em Estado de direito e democrático comprovam que decisões temporais, midiáticas e político-ideológicas não permitem aplicar em favor da população o amplo e irrestrito direito à defesa e ao contraditório. O direito penal como ciência das punições, ao melhor juízo de entendimento, dever-se-á ser aplicado ao infrator de forma uniforme, obedecendo à ampla defesa técnica e à autodefesa com supedâneo aos ditames e preceitos das reservas legais implantadas pelos cientistas-criminais ainda em seu nascedouro humanitário.
Estado que declara em várias tratativas internacionais ser democrático de direito e signatário da Convenção de Direitos do Homem, entretanto e antagonicamente abre debateideológico-político-partidário para agradar à população por conta de sua própria insuficiência estatal em conter a violência, vindo a colocar e de forma pré-histórica a retroatividade na maneira de apenar o infrator, sendo que, para agradar a um segmento, contraria todo um contexto científico ao direito da vida e do devido processo legal, razão esta que resta mais que comprovada por se tratar a utilização dosniperde verdadeiro Direito Penal do Inimigo quando aplicado em razão de gênero, época político-social, local em que reside, modelo de roupa que se usa e até mesmo por transitar em local considerado contumaz ao tráfico de entorpecentes.