JULGAMENTO DA ADPF Nº 54: RESENHA À LUZ DO VOTO DO RELATOR – Beatriz Vilela de Ávilla e Vitor Gabriel Carvalho
JULGAMENTO DA ADPF Nº 54: RESENHA À LUZ DO
VOTO DO RELATOR
Beatriz Vilela de Ávila
Vítor Gabriel Carvalho
O julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, tornou-se uma decisão histórica do Supremo Tribunal Federal (STF), uma vez que, a interrupção da gestação de fetos anencéfalos com assistência médica, deixou de ser criminalizada no Brasil.
Dessa forma, o presente trabalho tem como objetivo fazer uma resenha do voto do Relator, Ministro Marco Aurélio, apontando as razões que motivaram a sua decisão. Ademais, quando pertinente, utilizaremos o entendimento de penalistas de renome, a fim de proporcionar maior solidez argumentativa.
A função do Relator é fazer uma análise precípua do processo e, posteriormente, preparar um relatório que será apresentado junto com a emissão de seu voto, servindo como referência para os demais membros do STF.
Posto isto, a (in)possiblidade do aborto de fetos anencéfalos gerou debates por muito tempo, fazendo com que as decisões distintas dos magistrados corroborassem em uma intensa insegurança jurídica[1]. Neste viés, o Relator, reconheceu que este é um assunto de extrema relevância e necessita de um pronunciamento da Suprema Corte.
Em um primeiro momento, frisou que a República Federativa do Brasil é um Estado laico, portanto, todos os argumentos com viés ideológico deveriam ser afastados deste julgamento. Assim, nas folhas 34 à 46, seguiu uma linha cronológica, começando pela Constituição do Império de 1924 que adotou a religião católica como a oficial, até a Constituição de 1891, onde o Estado brasileiro passou a adotar o laicismo e manteve em todas as outras Constituições, inclusive, a de 1998 que está em plena vigência.
Ao fazer uma análise do Direito comparado, pode-se compreender que o reconhecimento do aborto anencefálico tem se tornando uma tendência presente em diversos países, até mesmo naqueles que são majoritariamente católicos, tais como: Itália, Portugal e México[2]
Posteriormente, o Ministro Marco Aurélio, expôs as convicções de diversos médicos, que elucidaram o que é a anencefalia e o porquê do aborto ser uma medida necessária. Participaram da audiência pública diversos especialistas e as opiniões foram unânimes, no sentido de que: é uma doença congênita letal e o diagnóstico é 100% seguro e disponível no Sistema Único de Saúde (SUS). As principais respostas dos questionamentos levantados pelos Ministros podem ser conferidas na nota de rodapé número 30, do voto do Relator.
Consta ainda na página 51 a explicação do famoso caso da Marcela, que teria sobrevivido por um ano, oito meses e doze dias, sendo portadora de anencefalia. Entretanto, os médicos elucidaram que o diagnóstico foi errado e ela não era um bebê anencéfalo, haja vista que a expectativa de vida é de algumas horas.
Apresentou, também, os argumentos contrários a descriminalização do aborto, que é fundamentado na ideia de que os órgãos do anencéfalo podem ser doados. Contudo, este argumento não foi defendido pelos especialistas, isto porque, os bebês portadores desta doença possuem órgãos menores que os normais. Além do mais, obrigar a gestante prosseguir com uma gestação viola a dignidade humana.
O Relator, acrescenta que Nelson Hungria na década 50 dizia que o aborto só ocorre se houver potencialidade de vida, ou seja, o legislador do Código Penal em 1940, não excluiu a tipicidade do aborto de anencéfalo, porque naquela época não existia diagnósticos eficientes como os disponíveis na atualidade. Busca-se com a punição do aborto a proteção da vida humana, porém a vida útil e viável.[3]
Outro ponto mencionado é que além dos problemas físicos de saúde, podem ser ocasionados problemas psicológicos decorrentes do trauma de ter que suportar uma gravidez infusível é o que defende os psiquiatras que foram ouvidos. Dessa forma, na página 70 consta o relato da mãe de anencéfalo que não pode abortar.
Assim sendo, levando em consideração as opiniões de inúmeros especialistas e do comitê de Direitos Humanos da ONU, o Ministro Marco Aurélio, votou pela procedência do pedido formulado na inicial, declarando inconstitucional a interpretação de que o aborto de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, do Código Penal brasileiro. O voto do Relator foi acompanhado por outros sete Ministros.
Em face do exposto, é possível concluir que este julgamento foi pautado em uma discussão interdisciplinar, na qual os pareceres de profissionais da saúde foram fundamentais, conduzindo a visível ideia de que a vida vegetativa não é suficiente para fazer de algo um homem e com a morte encefálica termina a proteção à vida.[4] Por fim, recomendamos o documentário brasileiro “Uma História Severina”[5], que conta o drama de uma mãe que durante a gestação, descobriu que o feto era anencéfalo.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Anencefalia. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde. Voto do Relator: Min. Marco Aurélio Mello. Brasília-DF. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adpf54.pdf Acesso em: 04 abr. 2020.
GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. 17. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2020. v. 2.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 14. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
ROXIN, Claus. A proteção da vida humana através do Direito Penal. Conferência realizada no dia 07 de março de 2002, no encerramento do Congresso de Direito Penal em homenagem a Claus Roxin, Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/25456-25458-1-PB.pdf. Acesso em: 04 abr. 2020.
[1] GRECO, Rogério. Curso de direito penal – Parte geral, v.2, p.166
[2] Para mais aprofundamentos, orienta-se o leito a ter acesso ao link: http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/notici…
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal, 14 ed. p. 637.
[4] ROXIN, Claus. A proteção da vida humana através do Direito Penal. p. 9.
[5] O documentário foi dirigido por Débora Diniz e Eliane Brum e publicado no ano de 2010. Está disponível no YouTube, através do link: https://www.youtube.com/watch?v=65Ab38kWFhE