Por Alessandro Silverio
Há uma relação histórica de antagonismo entre direito penal e liberdade. Mais do que isso, não existe discurso liberal que possa se sustentar em um estado cuja política criminal seja de cunho expansionista.
Em verdade, os que afiançam a cruzada expansionista deixam de observar que o direito penal de uma nação deve ser, independentemente da ideologia dominante, contido e limitado. Afinal, cada espaço ocupado pelo direito punitivo é um espaço de liberdade perdido. Não é a toa que todos os regimes totalitários, tanto os de direita quanto aqueles de esquerda, sempre se valeram deste ramo do direito para criminalizar o comportamento de seus opositores.
Em nosso país, desde a redemocratização, esta tensão entre direito penal e liberdade nunca restou tão evidente como nos dias de hoje. Dois são os fatores que a evidenciam: (a) a forma com que os órgãos de criminalização, compreendendo a dinâmica da pós-modernidade, passaram a se comunicar com a população; (b) a deflagração da Operação Lava Jato e de suas múltiplas fases.
Para cooptar a opinião pública, os adeptos do expansionismo penal, integrantes dos mais variados órgãos de criminalização, a partir da disseminação constante de informações, passaram a revelar à população, já vitima de uma crise econômica sem precedentes, práticas políticas capazes de colocar em xeque, segundo a ótica dos expansionistas, o sistema democrático vigente.
Como consequência do apoio maciço de boa parte da população, paulatinamente, o direito penal foi se expandindo, ora relativizando-se conceitos dogmáticos, ora relativizando-se cláusulas constitucionais pétreas. Tudo em nome do combate à corrupção e do interesse comum. Aliás, é sempre o interesse comum, desde a Idade Média, o mote utilizado pelos agentes de criminalização para justificar toda pretensão expansionista do poder punitivo do estado (1).
Contudo, não são raras às vezes em que aqueles que empunham a bandeira do discurso expansionista passam a ser alvos diretos dos efeitos deste discurso. A história da humanidade é repleta de exemplos.
E foi justamente seguindo essa onda expansionista do poder punitivo estatal que o Supremo Tribunal Federal, em meados de dezembro do ano passado, a partir de argumentos metajurídicos, sempre eles, deliberou no sentido de criminalizar o comportamento da pessoa física (representante da pessoa jurídica) que deixa de recolher o ICMS devido (2).
Segundo um dos Ministros que votaram pela criminalização da inadimplência tributária “A sonegação fiscal é muito mais grave do que a corrupção do ponto de vista econômico: retira muito mais dinheiro de políticas públicas em setores como saúde, educação, segurança pública, saneamento básico e habitação.” (3)
Afora a utilização do bem comum como argumento apto a justificar a expansão penal, é de se concluir que essa decisão do Supremo afetará certamente muitos daqueles que até não muito tempo atrás referendavam tal ideário penal.
Pior do que isso, três meses após essa decisão, o mundo se viu exposto a uma crise epidemiológica que trará consequências econômicas catastróficas. Parece certo que a capacidade arrecadatória do estado brasileiro (União, Estados e Municípios) será comprometida, devendo aumentar exponencialmente a inadimplência tributária.
Resta saber, assim, como o judiciário brasileiro, encabeçado pelo Supremo Tribunal Federal, irá reagir diante de tal cenário. Será que aplicará de forma irrefletida a orientação jurisprudencial sufragada suprema corte brasileira às vésperas do natal? Ou será que o judiciário refluirá, passando a limitar o alcance desta decisão?
A verdade é que em matéria criminal tributária sempre se discutiu a tese de inexigibilidade de conduta diversa nos casos em que o contribuinte, diante de uma situação de dificuldade financeira, deixava de recolher o(s) tributo(s) devido(s). (4)
Nada obstante, a verdade é que nossos tribunais, mesmo nesses casos, invertendo a presunção de inocência e o ônus da prova, sempre transferiam ao acusado, à defesa, o dever de provar, acima de qualquer dúvida razoável, a situação de extrema dificuldade financeira alegada para justificar o não recolhimento do tributo. Logo, passaram a ser raros os casos em que referida tese veio a ser acatada por nossas Cortes de justiça.
Registre-se que nossas Cortes, nos crimes contra a ordem tributária, sempre se revelaram demasiadamente rigorosas na interpretação do direito, sendo certo que essa postura de exigir do contribuinte a prova plena da extrema dificuldade financeira que, segundo sua defesa, justificava a inadimplência fiscal, impõe ao cidadão determinados ônus que a ordem constitucional vigente, na seara processual penal, jamais lhe impôs.
Faz-se essa afirmação porque na ordem constitucional vigente o fato criminoso deve ser provado, acima de qualquer dúvida razoável, pela acusação. Significa dizer: não cabe a defesa fazer prova da tese defensiva por ela suscitada.
Para além desta situação, a ordem constitucional vigente determina que o acusado deve ser absolvido caso haja dúvida razoável a respeito do fato criminoso.
A decorrência das premissas constitucionais acima aventadas permite à defesa adotar duas posturas no iter processual: (a) uma postura neutra, desinteressada em produzir prova que lhe seja favorável; (b) uma postura ativa, trazendo ao processo a prova que corrobora sua versão para os fatos.
Saliente-se que mesmo optando pela postura neutra, ainda assim, o acusado poderá ser absolvido ao término da instrução, pois o ônus de provar, acima de qualquer dúvida razoável, que o fato criminoso efetivamente ocorreu pertence à acusação. De mais a mais, caso opte por uma postura ativa, ainda assim a prova produzida pela defesa não necessita ser plena, insofismável, acima de qualquer dúvida razoável. Para o édito absolutório basta a dúvida razoável.
No caso dos crimes tributários, tais premissas constitucionais, se aplicadas corretamente, levariam à absolvição do contribuinte caso a prova existente nos autos fosse dúbia em relação à dificuldade financeira que, segundo sua defesa, justificara o inadimplemento do tributo.
Esta solução jurídica seria muito diversa da postura que tem sido adotada por nossos tribunais em relação à matéria. A propósito, talvez deva ser este o momento adequado – diante do cenário de crise – para nossos tribunais repensarem o posicionamento jurisprudencial já consolidado no tocante à inexigibilidade de conduta diversa em casos criminais tributários.
Nesse particular aspecto, ousa-se dizer que a história imporá aos nossos tribunais e à própria sociedade uma reaproximação ao direito penal mínimo, ao direito penal e processual penal constitucionalmente vigente.
Notas:
1 Muitos pseudos liberais brasileiros se valem do bem comum como argumento capaz de justificar tanto o avanço do poder punitivo estatal, assim como os abusos identificados nas operações de combate à corrupção. Como se em um estado democrático os fins pudessem justificar os meios.
2 Embora a decisão do Supremo diga respeito ao ICMS, tributo sabidamente estadual, nada impede a extensão desta interpretação para a criminalização do inadimplemento dos tributos federais e municipais, uma vez que a ratio essendi da decisão também se aplica a todo e qualquer tributo.
3 https://www.conjur.com.br/2019-dez-11/alexandre-segue-barroso-criminaliza-divida-icms-declarado.
4 São tantos. E continuam a sê-lo.
Alessandro Silverio – Advogado criminalista