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​QUAIS CAMINHOS O STJ PODE SEGUIR NA APLICAÇÃO RETROATIVA DO ANPP?

QUAIS CAMINHOS O STJ PODE SEGUIR NA APLICAÇÃO RETROATIVA DO ANPP?

Leonardo Schmitt de Bem[1]

João Paulo Martinelli[2]

O período de vacatio legis de uma nova legislação não deveria servir somente para conhecermos suas regras, mas, especialmente, para entendermos o sentido e o alcance das mesmas.[3]

No que respeita à aplicação retroativa das regras do acordo de não persecução penal a casos anteriores à promulgação da Lei nº 13.964/2019, os 30 dias de vacância foram insuficientes, em especial, para cumprir com os últimos propósitos. Isso porque, quatro teses distintas já foram adotadas pelos Tribunais ordinários.

Em tempo breve, uma demanda bastante grande de recursos adentrará ao pórtico virtual do Superior Tribunal de Justiça e, nesse sentido, como o novo instituto tem provocado, meses depois da vigência da lei, mais dúvidas do que certezas, entendemos relevante apresentar as orientações já ofertadas e reforçar a possibilidade de aplicação de entendimento ainda mais abrangente no tocante à retroatividade das regras do ANPP.

Há duas soluções mais amplas: (tese A) irretroatividade e (tese B) retroatividade. Essa última, contudo, com diversas frentes: (B.1) retroação até o recebimento da denúncia; (B.2) retroação, desde que o réu não tenha sido sentenciado; (B.3) retroação, mesmo em grau recursal. Outra posição, favorável à retroatividade e com raio de incidência ainda maior, relaciona-se (tese C) aos casos já transitados em julgado.

As soluções (A) e (B) decorrem das distintas avaliações dadas à natureza da norma que regula o acordo de não persecução penal. Um número reduzidíssimo de juízes entendeu se tratar de norma processual pura e, como tal, de aplicação imediata e sem efeito retroativo (TJSP – APR: 0005655-91.2016.8.26.0001, Rel. Luiz Antonio Cardoso, 3ª Câmara de Direito Criminal, DJ 09/03/2020). Outros, em número bastante significativo, seguiram tese de que se trata de norma processual com conteúdo material e, assim, com efeito retroativo.

Essa última posição é esmagadora, justificando-se pelo fato de o regramento do ANPP, muito embora formalmente inserido no CPP, apresentar-se com conteúdo de direito material, pois interfere diretamente na pretensão punitiva estatal. “A não persecução, por certo, é mais benéfica que uma possível condenação criminal”(TRF-4 – ACR:5004135-89.2018.4.04.7016,Rel.João Pedro GebranNeto, 8ª Turma, DJ 13/05/2020). No entanto, não apenas por se tratar de mecanismo de diversificação da pena criminal, senão, especialmente, porque enseja a extinção da punibilidade do agente quando devidamente cumpridas as condições do acordo (art. 28-A, § 13). Trata-se de norma de natureza mista na qual seu caráter material ganha destaque e, por ser mais benéfica, deve retroagir para alcançar os fatos praticados preteritamente a sua promulgação.

A solução (B), como adiantado, vem comportando diferentes extensões. A mais restritiva (B.1) permite a retroação do benefício apenas para as situações pretéritas nas quais a denúncia ainda não tenha sido recebida (TJ-SC – APR: 0005280-60.2015.8.24.0008, Rel. Carlos Civinski, 1ª Câmara Criminal, DJ 23/04/2020). O Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) e o Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM) assim enunciou: “Cabe acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes da vigência da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia” (Enunciado 20). Em síntese, diversos magistrados se filiam unicamente à redação do art. 28-A do CPP.

Entre outros julgados, esse apego à literalidade pode ser vislumbrado: “Contudo, em breve leitura ao artigo suscitado, verifico que a inovação legislativa em tela trata da possibilidade de acordo a ser proposto pelo órgão ministerial antes do início da persecução penal, não sendo caso de arquivamento do inquérito policial, o que não corresponde ao caso dos autos” (TJ-RS – ED: 70083713636, Rel. Newton Brasil de Leão, 4ª Câmara Criminal, DJ 28/02/2020), bem como em julgado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região: “Como se percebe, a redação do aludido dispositivo indica que o instituto deve ser aplicado na etapa pré-processual, não havendo qualquer referência à aplicação em momento posterior ao recebimento da denúncia, como ocorre no caso dos autos” (COR: 5014289-97.2020.4.04.0000, Rel.ª Salise Monteiro Sanchotene, 7ª Turma, DJ 21/04/2020).

O último acórdão traz dois argumentos que merecem destaque. O primeiro retrata o dúplice contexto de acordo previsto pelo PL nº 882/2019, apresentado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, regulando uma modalidade aos investigados para fins de não persecução penal, e outra aos acusados para fins de impedir a continuidade da persecução penal. Essa última modalidade (art. 395-A) retratava a importação do plea bargain à justiça pátria, porém, não restou recepcionada pelo legislador. A partir dessa negativa, a magistrada concluiu que a possibilidade de retroação apenas alcançaria quem ainda não foi denunciado. O segundo se liga ao instituto do juiz das garantias, a quem competiria a homologação dos acordos formalizados durante a investigação.

Ambos os argumentos não subsistem diante de análise mais acurada. Se fôssemos limitar a competência para homologação dos acordos ao juiz das garantias, então todos os acordos firmados em sede de investigação e já homologados se revelam nulos, pois essa figura apenas existe no papel. Atente-se que mesmo estando suspensa a eficáciado dispositivo que regula as atribuições do juiz das garantias (STF, ADI 6298, Rel. Luiz Fux, DJ 06/03/2020), o órgão ministerial continua a ofertar o benefício sabendo que, posteriormente, algum juiz poderá homologá-lo em audiência designada para o controle de sua própria legalidade (art. 28-A, § 4º, in fine).

Ademais, é notório que a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público pretendeu suspender a eficácia do art. 28-A do CPP,contudo, sem apresentar pedido atrelado a alguma questão de direito intertemporal. A pretensão restou frustrada e, comotal, suas regras têm vigência atual, de modo quenão podemser recusadas temporalmente (até a oferta da denúncia) sob o argumento de que a outra espécie de acordo (plea bargain) não alcançou previsão legal. É inconcebível que a interpretação restritiva – afastando o benefício àqueles que já foram denunciados – tenha por base um instituto inexistente ou que não alcançou previsão legal.

De outra banda, para os casos antigos, ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, se seguíssemos a vertente utilitarista adotada na decisão, limitada ao que está ou não previsto legalmente, alcançaríamos a conclusão que tampouco o legislador buscou limitar temporalmente a oferta retroativa do acordo de não persecução penal, pois, nenhum dos parágrafos do art. 28-A do CPP prevê uma orientação nesse sentido. Esse argumento, repita-se, seria demasiado utilitarista, devendo ceder passo a argumento jurídico mais sólido. E, para tanto, é suficiente consultar a Constituição Federal que, ao prever a retroatividade de lei mais benéfica, não condiciona esse efeito a qualquer limitação temporal (art. 5º, XL). E esse argumento já encontrou respaldo jurisprudencial (TJ-SP – APR: 0002246-48.2017.8.26.0268, Rel. Marcos Zilli, 16ª Câmara de Direito Criminal, DJ 23/04/2020).

Outra vertente jurisprudencial é um pouco menos restritiva (B.2), permitindo a retroação enquanto não prolatada uma sentença condenatória (TJ-SP – APR: 1526083-13.2019.8.26.0228, Rel. Laerte Marrone, 14ª Câmara de Direito Criminal, DJ 08/05/2020; TJ-PR – APL: 0003311-21.2017.8.16.0183, Rel. Celso Jair Mainardi, 4ª Câmara Criminal, DJ 21/04/2020; TJ-SC – APR: 0900040-36.2018.8.24.0016, Rel. Luiz Antônio Zanini Fornerolli, 4ª Câmara Criminal, DJ 12/03/2020). Esse limite temporal foi igualmente fixado pelo Supremo Tribunal Federal quando da análise dos mecanismos diversificadores de pena previstos na Lei nº 9.099/1995 (HC nº 74.463-0, rel. Celso de Mello, 1ª Turma, DJ 07/03/1997). Também um setor da doutrina limita à retroatividade aos casos em que ainda não tenha sido proferida sentença. Rodrigo Leite Cabral, em seu manual, expõe três razões para a definição desse marco final: (1) o condenado não poderia mais colaborar com o Ministério Público com sua confissão; (2) o esgotamento da jurisdição ordinária, não podendo os autos retornar à origem, porque a sentença jamais poderia ser anulada, uma vez que hígida, quando já esgotada a jurisdição ordinária; e, (3) a orientação pretérita do STF (assumida na análise dos limites de retroatividade das regras do art. 89 da Lei nº 9.099/1995).[4]

No tocante ao primeiro argumento, osilêncio do acusado durante o interrogatório judicial não é motivo bastante para impedir, automaticamente, a proposta do acordo de não persecução penal. Será dever oportunizar, novamente, a possibilidade de fazê-la, agora sob o viés do art. 28-A. Nesse sentido, posicionou-se o TRF 4ª Região: “Não vejo obstáculo para a oferta de ANPP na inexistência de confissão nos processos já sentenciados. A questão não pode ser colocada, aprioristicamente, como óbice ao benefício. Isto porque não existia, até então, a regra que previa esse incentivo ao réu que confessasse”. O magistrado ainda pontua expressamente: “Com a novidade legal, é razoável que se oportunize ao réu rever sua estratégia processual, inclusive considerando a possibilidade de confessar e receber o benefício. As pessoas agem mediante incentivos e desincentivos, sendo que o novo instituto consiste em vantagem adicional ao acusado, que passa a dispor de benefício até então não existente. E, com base nesse novo arcabouço jurídico, pode avaliar se deve, ou não, confessar o ilícito, de modo a obter o favor legal” (COR: 5009312-62.2020.4.04.0000, Rel. João Pedro Gebran Neto, 8ª Turma, DJ 13/05/2020).

À Rodrigo Cabral, membro do Ministério Público do Paraná, a confissão releva apenas enquanto moeda de troca. Quando desnecessária para a finalidade pretendida, reputa-a descartável. Ocorre que, até mesmo nos casos de sentença penal condenatória, no próprio julgamento da apelação, o tribunal, câmara ou turma poderá proceder a novo interrogatório do réu (art. 616), oportunidade na qual poderá confessar a prática do delito. Mas, para fins do acordo, não cumpre ao julgador colher eventual confissão e, nestes termos, nada impede que acolha preliminar do apelo sobrestando o julgamento para que o réu, em audiência específica, presidida pelo Ministério Público, confesse e, como tal, cumpra um dos requisitos (art. 28-A, caput, CPP). Afinal, a confissão não pode ser encarada predominantemente como meio de prova, mas sim como meio de defesa por aquele que não quer se submeter a um processo. Por vezes, o próprio Procurador de Justiça já requereu, preliminarmente, esta diligência, sendo indeferida irrefletidamente a manifestação (TJ-SC – APR: 0005280-60.2015.8.24.0008, Rel. Carlos Alberto Civinski, 1ª Câmara Criminal, DJ 23/04/2020).

O segundo argumento é insubsistente por si só, pois, a depender do contexto, o tribunal pode (i) anular a decisão e, tendo sido promulgada nova lei mais benéfica, seus efeitos incidiriam retroativamente. Além disso, é perfeitamente possível que (ii) o apelo interposto antes da Lei nº 13.964/2019 seja provido e, como tal, o acusado passe a preencher o requisito que, à época da denúncia, não cumpria. Nesse sentido, os autos deverão retornar à origem para eventual celebração do acordo. Vejamos alguns julgados.

No contexto (i), por exemplo, houve caso em que o TRF da 3ª Região anulou sentença por ausência de fundamentação. In verbis: “Se é correto dizer que o juiz não precisa analisar cada uma das teses levantadas pela defesa, também é certo que a sentença deve estar devidamente fundamentada e motivada em argumentos fáticos e jurídicos sólidos. Nocaso, a sentença simplesmente não explicita motivo algum que levou à condenação do apelante, em descumprimento ao art. 93, IX, da CF e ao art. 381 do CPP. Assim, é de rigor o reconhecimento da nulidade da sentença recorrida”. Ao final, o magistrado federal registrou “que o pedido incidental da defesa de oferecimento, pelo MPF, de proposta de acordo de não persecução penal, deverá ser examinado perante o juízo de origem” (APR: 00024594820174036114, Rel. Nino Toldo, 11ª Turma, DJ 16/04/2020).

No contexto (ii), por exemplo, poderá ocorrer a desclassificação do delito, a absolvição do acusado por um dos delitos, se imputada espécie concursal, ou mesmo o reconhecimento de alguma minorante de pena não sopesada pela acusação na denúncia. Com efeito, em todos os casos, à semelhança do que já ocorre com a suspensão condicional do processo (Súmula nº 337, STJ), a proposição do ANPP será medida imperativa. Aliás, no tocante a consagração da redutora de pena do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006 já há inúmeros julgados (TJ-SP – APR: 1500263-02.2019.8.26.0548, Rel. Amable Lopez Soto, 12ª Câmara Criminal, DJ 13/05/2020; TJ-SC – APR: 0005029-46.2015.8.24.0039, Rel.ª Salete Silva Sommariva, 2ª Câmara Criminal, DJ 05/05/2020).

O último argumento, que se prende ao fato de que a sentença condenatória compromete a finalidade precípua para a qual o instituto (adaptado) do acordo de não persecução penal foi concebido, isto é,ode afastar a imposição da pena criminal, não pode representar obstáculo à retroatividade, visto que, reforça-se,a mesma restrição não consta do texto constitucional. Toda lei que contenha uma norma mais benéfica deverá retroagir e, neste caso, processualmente é correto dizer que a persecução em juízo não deverá continuar.

Como já observado na primeira parte deste ensaio, ainda que o processo se encontre em fase recursal (B.3), muitos magistrados entendem possível aplicar retroativamente as regras do art. 28-A do CPP. A propósito, invocando a retroação em qualquer grau de jurisdição (TJ-SP – APR: 0050179-26.2016.8.26.0050, Rel. Amable Lopez Soto, 12ª Câmara de Direito Criminal, DJ 13/05/2020) e reforçando que a retroatividade pode ocorrer enquanto não transitar em julgada a decisão(TJ-SP – APR: 0000351-65.2016.8.26.0275, Rel. João Morenghi, 12ª Câmara de Direito Criminal, DJ 22/04/2020). Nesse sentido, mas no contexto da Lei nº 9.099/1995, o Superior Tribunal de Justiça ditou a mesma orientação: “Conforme entendimento desta Corte, é possível a retroação da lei mais benigna, ainda que o processo se encontre em fase recursal” (RESP nº 636701, rel. Felix Fischer, 5ª Turma, DJ 13/12/2004). Por vezes o recurso interposto perde seu objeto, afinal, verifica-se na origem a realização do ANPP (TJ-SP – RSE: 0000447-22.2019.8.26.0228, Rel. Luiz Antonio Cardoso, 3ª Câmara Criminal, DJ 13/04/2020).

Bem vistas as coisas, o fundamento da retroatividade está relacionado com o princípio da igualdade, repetidas vezes já ignorado nessa temática (TRF-4 – ACR: 5005509-76.2018.4.04.7005, Rel. Danilo Pereira Junior, 7ª Turma, DJ 25/03/2020). Adaptando-se a doutrina de Mariângela Gomes, sob o aspecto de uma substancial paridade de tratamento, não seria racional ofertar o acordo para quem está sendo investigado e negar a outro que foi denunciado, condenado ou já foi definitivamente sentenciado.[5] Viola-se a isonomia insistir na execução penal para certo agente, em especial quando outrem, ainda investigado, que cometeu a mesma infração e se apresenta com as mesmas características pessoais, poderá gozar das condições ajustadas com o MP.

Não há razão para se criar uma barreira insuperável não prevista pelo constituinte.É claro o conteúdo do inciso XL do art. 5º da Constituição Federal: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Ademais, se é o conteúdo de direito material de uma norma também processual (e, por isso, de natureza mista ou híbrida) que prevalece, não se pode desapegar de regra de retroatividade prevista no próprio Código Penal, no sentido de que nem mesmo o trânsito em julgado da sentença condenatória impede a aplicação retroativa de lei posterior favorável (art. 2º, parágrafo único).

Sob o prisma de ambos os artigos, não há sentido aplicar o ANPP tão-somente aos processos em curso, cabendo ao Estado também propiciar o benefício àqueles já condenados definitivamente (tese C). Independente da fase em que se encontra o processo, inclusive com decisão já transitada em julgado, a retroação do acordo é possível. Essa tese mais abrangente, inclusive, não destoa das considerações do Conselho Nacional do Ministério Público, quando propôs o regramento administrativo ao tema. No introito da Resolução nº 181/2017 se infere que o ANPP auxiliaria para desafogar o abarrotado sistema prisional e impediria a estigmatização e a dessocialização que são decorrências de processos com sentenças condenatórias.

Não há sentido em o Poder Judiciário aplicar a novel legislação, neste ponto atinente ao ANPP, criando exceções não previstas pelo Poder Legislativo e, principalmente, pelo Poder Constituinte. O Estado está a serviço da liberdade individual e não o contrário. Todanormaque se refere a liberdades individuais requer interpretação mais favorável à pessoa humana e, desse modo, qualquer vedação a direitos fundamentais deve ter expressa previsão constitucional.[6]

Para se aceitar a retroatividade do regramento do ANPP para os processos com decisão já definitiva, deve-se ter presente a precisa advertência de Paulo Busato: “a garantia da coisa julgada não serve para amparar pretensão punitiva do Estado”.[7]Nesse último contexto se faz necessário separar os condenados (C.1) ainda em fase de execução penal daqueles (C.2) que já cumpriram a reprimenda. Vejamos com atenção!

Aos primeiros (C.1), entende-se possível a aplicação por analogia da regra do caput do art. 2º do Código Penal e, como tal, em análise hipotética, satisfeitos os requisitos legais, a execução ficaria suspensa e a respectiva pena seria substituída pelas condições ajustadas no acordo. A depender da situação fática, inclusive, poderá haver certa correspondência entre as penas aplicadas na sentença e as condições ajustadas entre as partes (TRF-4 – ACR: 5011223-26.2018.4.04.7002, Rel. Leandro Paulsen, 8ª Turma, DJ 13/05/2020).

Vejamos um exemplo: “É o relatório. Decido. O apenado foi condenado à pena de 2 anos e 3 meses de detenção pela prática do crime de “Frustrar ou fraudar procedimento licitatório”, previsto no art. 90 da Lei nº 8.666/1993, sendo a pena privativa de liberdade substituída por duas restritivas de direitos nas modalidades de prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária […]” (TJPR. Vara de Execuções Penais de Cascavel-PR. Agravo em execução nº 0011802-13.2020.8.16.0021). A pena privativa de liberdade aplicada foi substituída por duas penas restritivas correspondentes às obrigações que podem condicionar o acordo de não persecução penal. Ressalte-se: há mera possibilidade de correspondência, pois, como frisou o Desembargador Federal, uma perfeita identidade pode não ocorrer dada a prerrogativa do representante ministerial de ofertar suas condições.

No exemplo em tela, lançando-se um olhar ao art. 28-A do CPP, observa-se que as penas substitutivas são equivalentes às condições previstas nos incisos III e IV. Aliás, em relação à prestação de serviços à comunidade, sem incidir a redução de um a dois terços, pois não mais se trata de pena em abstrato. Cumprindo efetivamente as condições, o juízo da execução penal declarará a extinção de punibilidade, não originando mau antecedente e não gerando reincidência. Note-se, portanto, que as consequências da abolitio criminis (cuja regra do art. 2º, caput foi tomada de empréstimo) não destoam do cumprimento das condições do ANPP pelo favorecido (o art. 107, III, do Código Penal, regula a extinção de punibilidade) e, igualmente, cessam os efeitos secundários da condenação penal, ou seja, com a abolitio criminis também não haverá indução de reincidência.

No entanto, em caso de eventual descumprimento, quais seriam as consequências? Obviamente o § 10 do art. 28-A do CPP não incidirá. Contudo, essa regra não poderá ser entendida como o único efeito negativo do descumprimento do ANPP e, por si só, representar fundamento à não-retroatividade. Ou seja, de o acordo não ser aplicado após o trânsito em julgado, pois, segundo o preceito, o oferecimento da exordial é a única penalidade em contexto de descumprimento das condições. Para as situações com decisão definitiva, o efeito principal deverá ser o cumprimento da pena privativa de liberdade imposta na condenação. Para uma boa vantagem mal aproveitada, um maior prejuízo como consequência. Não faz sentido o simples retorno ao cumprimento do restante das penas restritivas, em especial se equivalentes às condições injustificadamente descumpridas do ANPP.[8]

Pode-se discutir se no cálculo da pena privativa de liberdade a executar deverá ser deduzido o tempocumprido das condições ajustadas no acordo, a semelhança do § 4º do art. 44 do Código Penal. Trata-se de tese válida, afinal, não deixam de ser penas, mas travestidas de condições. Embora consistente, julgamos apropriado entender o período de cumprimento das condições, após o trânsito em julgado, como um período de prova (algo semelhante ao livramento condicional) e, assim, não ser computado como tempo de pena cumprida.

Para os condenados que já cumpriram totalmente a respectiva pena (C.2), a princípio, parece não ter sentido a incidência das regras do acordo, no entanto, tal conclusão seria precipitada, porquanto é notório que a condenação gera outros efeitos além da primária imposição da pena criminal[9]. Dentre os efeitos secundários se destaca a reincidência e, a partir dela, inúmeras outras futuras restrições de benefícios, como a definição de um regime de cumprimento de pena menos rigoroso ou a incidência de penas alternativas.

Neste contexto, entende-se que a defesa deverá peticionar ao juízo da execução penal requerendo que o membro do Ministério Público pronuncie se, à época do fato, o agente preenchia os requisitos previstos em lei (art. 28-A, caput e § 2° do CPP) que viabilizariama proposição de um hipotético acordo denão persecução penal[10]. Em caso positivo, a retroatividade incidirá justamente para extinguir os efeitos acessórios da condenação, como a reincidência. Ao agente, por certo, não será legítimo impor quaisquer condições, porque já executou a totalidade da pena, de modo que tal exigência representaria violação gritante ao princípio ne bis in idem.

Há quem possa argumentar que não é razoável, e muito menos exequível, que todas as condenações pretéritas tivessem de ser reformadas diante da nova legislação que passou a prever uma atenuação dos efeitos jurídico-penais por meio do ANPP. Este argumento, não obstante relevante, pode ser relativizado, definindo-se uma limitação temporal da retroatividade. A propósito, para obstar um efeito regressivo infinito, ainda nos resta definir até que momento o Ministério Público estaria obrigado a analisar o eventual preenchimento dos requisitos legais do acordo no que diz respeito às infrações pretéritas.

Neste aspecto, entende-se que a análise apenas deverá ser realizada nos processos em que a data do cumprimento total da pena ou de sua extinção tenha ocorrido nos cinco anos anteriores à existência da Lei nº 13.964/2019, visto que o quinquídio corresponderia ao prazo expurgador da reincidência. Como nesse período persistem os efeitos secundários da sentença condenatória, é cogente a atuação ministerial por meio do acordo para arrefecer eventuais danos decorrentes de nova prática delitiva. Ou seja, quando a pena já restou cumprida, se ainda não passados cinco anos, o acordo, se cumprido, devolveria a primariedade ao condenado.

Como visto claramente nesse ensaio, o tema da retroatividade das regras do art. 28-A do CPP (ANPP), já comportou diversos aportes nos julgados dos Tribunais pátrios, no entanto, limitados a agentes sem sentença transitada em julgado. Pensamos possível dar um passo além, ampliando os efeitos da retroação também aos sentenciados definitivos, em especial a partir da consagração do princípio da isonomia.

Mesmo reconhecendo que o tempo da Ciência Penal – aqui, por evidente, referindo-se tão-somente àqueles que realmente produzem de forma refletida, que ponderam posições distintas e contrárias, bem como realizam estudos comparados – destoa totalmente do tempo de produção de decisões em lote por nossas Cortes de Justiça (afinal, o magistrado precisa resolver o caso para ontem, pois hoje já há muito para se fazer e amanhã o labor será ainda maior), julgamos que nossa contribuição é relevante e serve para alertar, frise-se com grosso traço, que interpretar deve ser a tarefa dos verdadeiros juristas, dos teóricos aos práticos.

O estudo dos temas penais e processuais penais decorrentes do “Pacote Anticrime” merece reflexão apurada e exige debates científicos com ideias contrapostas[11].As divergências colaboram à formação de juízos críticos. É dever se distanciar dos plantonistas de opinião rasteira. A determinação do significado preciso de novas regras exige mais do que a obsessão por um maior número de likes e seguidores nas redes sociais. Dito de forma bastante clara: é urgente resgatar e valorizar o que se produz academicamente!



[1] Professor Adjunto de Direito e Processo Penal na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Doutor em Direito Penal pela Università degli Studi di Milano (Itália) em cotutela com a Universidad de Castilla La-Mancha (Espanha). Mestre em Ciências Jurídico-criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal). Atualmente em estágio pós-doutoral (Espanha).

[2]Professor de Direito Processual Penal do IBMEC-São Paulo. Pós-Doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal). Doutor e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo. Advogado criminalista e parecerista.

[3] A respeito, indica-se a obra organizada pelos autores e publicada pelo selo D’Plácido: Acordo de não persecução penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020 (https://www.editoradplacido.com.br/acordo-de-nao-persecucao-penal).

[4] CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do acordo de não persecução penal. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 213.

[5]GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Direito penal e interpretação jurisprudencial: do princípio da legalidade às súmulas vinculantes. São Paulo: Atlas, 2008, p. 24 e s.

[6] MARTINELLI, João Paulo; DE BEM, Leonardo Schmitt. Direito penal: lições fundamentais, parte geral. 5ª ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 386 (https://www.editoradplacido.com.br/direito-penal-parte-geral-licoes-fundamentais-5-edicao).

[7] BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2013, p. 128.

[8] Repita-se que o Ministério Público tem liberdade para indicar as condições do acordo, inclusive obrigação não prevista em lei, desde que proporcional e compatível com o crime praticado (art. 28-A, V, CPP). Assim, poderá eleger outra modalidade de pena alternativa, como alguma pena de interdição temporária de direitos ou a pena de limitação de fim de semana. Em caso de descumprimento, porém, o efeito é o mesmo, ou seja, cumprir a privação de liberdade imposta judicialmente.

[9] DE BEM, Leonardo Schmitt; MARTINELLI, João Paulo. O limite temporal da retroatividade do acordo de não persecução penal. Acordo de não persecução penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020.

[10]No tocante à confissão, por exemplo, poderá o agente tê-la ofertado em qualquer das fases de persecução, ainda que tenha sido apenas reconhecida na sentença, mas não utilizada (Súmula 231 do STJ). Pensamos que é possível um requerimento de audiência para esse fim, caso a confissão não tenha sido ofertada, ainda que o agente não tenha nada a perder (afinal, é difícil não confessar, pois a pena já fora integralmente cumprida, e o benefício é salutar). Isso porque, à época da extinção da pena ou de seu cumprimento integral, não havia a previsão legal do benefício do ANPP.

[11] A respeito, indica-se a obra organizada pelos autores e publicada pelo selo D’Plácido: Acordo de não persecução penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020 (https://www.editoradplacido.com.br/acordo-de-nao-persecucao-penal).

[1] Professor Adjunto de Direito e Processo Penal na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Doutor em Direito Penal pela Università degli Studi di Milano (Itália) em cotutela com a Universidad de Castilla La-Mancha (Espanha). Mestre em Ciências Jurídico-criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal). Atualmente em estágio pós-doutoral (Espanha).

[1]Professor de Direito Processual Penal do IBMEC-São Paulo. Pós-Doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal). Doutor e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo. Advogado criminalista e parecerista.

[1] A respeito, indica-se a obra organizada pelos autores e publicada pelo selo D’Plácido: Acordo de não persecução penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020 (https://www.editoradplacido.com.br/acordo-de-nao-persecucao-penal).

[1] CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do acordo de não persecução penal. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 213.

[1]GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Direito penal e interpretação jurisprudencial: do princípio da legalidade às súmulas vinculantes. São Paulo: Atlas, 2008, p. 24 e s.

[1] MARTINELLI, João Paulo; DE BEM, Leonardo Schmitt. Direito penal: lições fundamentais, parte geral. 5ª ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 386 (https://www.editoradplacido.com.br/direito-penal-parte-geral-licoes-fundamentais-5-edicao).

[1] BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2013, p. 128.

[1] Repita-se que o Ministério Público tem liberdade para indicar as condições do acordo, inclusive obrigação não prevista em lei, desde que proporcional e compatível com o crime praticado (art. 28-A, V, CPP). Assim, poderá eleger outra modalidade de pena alternativa, como alguma pena de interdição temporária de direitos ou a pena de limitação de fim de semana. Em caso de descumprimento, porém, o efeito é o mesmo, ou seja, cumprir a privação de liberdade imposta judicialmente.

[1] DE BEM, Leonardo Schmitt; MARTINELLI, João Paulo. O limite temporal da retroatividade do acordo de não persecução penal. Acordo de não persecução penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020.

[1]No tocante à confissão, por exemplo, poderá o agente tê-la ofertado em qualquer das fases de persecução, ainda que tenha sido apenas reconhecida na sentença, mas não utilizada (Súmula 231 do STJ). Pensamos que é possível um requerimento de audiência para esse fim, caso a confissão não tenha sido ofertada, ainda que o agente não tenha nada a perder (afinal, é difícil não confessar, pois a pena já fora integralmente cumprida, e o benefício é salutar). Isso porque, à época da extinção da pena ou de seu cumprimento integral, não havia a previsão legal do benefício do ANPP.

[1] A respeito, indica-se a obra organizada pelos autores e publicada pelo selo D’Plácido: Acordo de não persecução penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020 (https://www.editoradplacido.com.br/acordo-de-nao-p…).

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