Acordo de não persecução penal e suas (relevantes) implicações no processo penal brasileiro
Valber MeloFilipe Maia Broeto
Sancionada em 24 de dezembro de 2019, a Lei 13.964, intitulada “Pacote Anticrime”, promove uma verdadeira reforma na legislação penal e processual penal, alterando paradigmas substanciais, tanto do ponto de vista processual (Código de Processo Penal) quanto “material” (Código Penal e Legislação Penal Extravagante).
A retrocitada modificação legislativa, ao trazer o instituto do Acordo de Não Persecução Penal – ANPP, alterou substancialmente a modalidade de resolução conflitiva no que diz respeito à criminalidade de média potencialidade lesiva, em nítido fomento ao abando da postura processual reativa/contenciosa, com vistas à implementação de uma justiça penal colaborativa/não reativa.
Trata-se, portanto, como assinala Aury Lopes Jr., de “poderoso instrumento de negociação processual penal que requer uma postura diferenciada por parte dos atores judiciários, antes forjados no confronto, que agora precisar abrir-se para uma lógica negocial”.
Conquanto muitos autores tenham adjetivado o Acordo de Não Persecução Penal – ANPP como componente da justiça negocial, parece-nos que se trata – fazendo-se aqui uma bifurcação da justiça não contenciosa – de instituto típico da justiça consensual, que não se confunda com a justiça negocial.
De toda forma, como anota Flávio da Silva Andrade, “tanto a justiça consensual como a justiça negociada orientam-se pelo paradigma do consenso, uma vez que o diálogo e as negociações têm o propósito de alcançar o entendimento mutuo e a resolução pactuado do conflito”.
Em que pese tenham o mesmo escopo, anota-se que, de fato, o traço distintivo entre justiça penal consensual e negociada é que, nesta, “as partes têm maior autonomia para formatar suas propostas e construir o consenso”, ao passo que, naquela, “existem limites bem definidos para a atuação das partes, devendo o consenso ser construído dentro de uma margem já definida pelo legislador, sem tanto espaço para discussão”.
Nessa ordem de pensar, a nosso ver é melhor alocar o instituto do ANPP no campo da justiça penal consensual, já que as margens “negociais” são pouco flexíveis e previamente disciplinadas pelo legislador, de forma exaustiva no artigo 28-A, do Código de Processo Penal.
Nota-se que grande parte da (recente) doutrina, ao abordar o tema, tem “equiparado”, para fins de solução de controvérsias, o ANPP à transação penal, de incidência exclusiva às infrações penais de menor potencialidade lesiva, assim entendidas aquelas cuja pena máxima em abstrato não ultrapassem o teto de 2 (dois) anos.
Não obstante a similitude, é preciso dizer quede transação não se trata, motivo pelo qual o instituto merece atenção individualizada, a fim de que não caia na simplificação generalizante.
Por essa razão, algumas ponderações devem ser feitas, a saber:
Incialmente, destaca-se que considerável parte da doutrina tem sido contrária ao ANPP em sede judicial, argumentando, em síntese, que o artigo 28-A, do Código Processo Penal, em seu §8º, limita a incidência do instituto apenas na fase investigatória(primeira etapa da persecução penal), tendo como limite temporal o oferecimento da denúncia.–
O argumento, a nosso ver, vai de encontro à própria designação do instituto, qual seja, acordo de “não persecução penal”. Ora, adotou, o legislador, nitidamente a persecução penal como limite temporal para a celebração do acordo, a qual compreende, a toda evidência, tanto a fase inquisitiva, de investigação (anterior ao oferecimento da denúncia), quanto a fase judicial (após a oferta da peça acusativa).
Por conseguinte, em se tratando de acordo de não persecução penal e estando o processo judicial abarcado na fase segunda da persecutio criminis, entendemos que o ANPP tem lugar na fase dita acusatória, após o oferecimento da denúncia, portanto.
Para além do nome, não se pode fechar os olhos ao hibridismo da norma, que conjuga, a um só tempo, traços processuais e efeitos penais. Veja-se, a propósito, que o artigo 28-A, do CPP, é bem claro, em seu §13, ao dizer que “[c]umprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade”.
Nesse contexto, é imperativo o reconhecimento do caráter retroativo da norma, justo porque implica,obrigatoriamente, em limitação ao poder punitivo estatal, porquanto implementa nova causa extintiva da penalidade, ao passo que favorece o status libertatis do investigado/acusado/réu.
No ponto, impõe-se consignar que o Ministério Público do Estado de Mato Grosso, por meio da Recomendação Conjunta Nº 01/2020-PGJ/CGMP, no enunciado 19 do retrocitado ato, adotou a orientação segundo a qual:
Cabe proposta de acordo de não persecução penal, até a sentença, para ações penais ajuizadas anteriormente à Lei nº 13.694/2019, uma vez que o instituto tem natureza mista e despenalizadora, devendo, portanto, ser aplicado à luz do art. 5º, inciso XL, da Constituição da República.
O acerto da orientação, a nosso viso, é parcial, uma vez que a persecução penal, como explicitado na nota de rodapé 8, não se esgota com a prolação de sentença, estendendo-se até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, momento derradeiro de incidência do ANPP.
Sustentamos, assim, que, por se tratar de acordo celebrável durante a persecução penal, a limitação do consenso apenas à fase inquisitiva (ou mesmo até a sentença) é inaceitável restrição de alcance normativo, em patente prejuízo do investigado/acusado/réu.
De igual modo, a criação de óbice à retroatividade da lei penal benéfica mostra-se violadora do imperativo constitucional inserto no artigo 5º, inciso XL, da Lei Fundamental.
No que tange à iniciativa da proposta, dúvida surgiu – tal e qual no âmbito da Lei 9.099/95 – quanto à obrigatoriedade ministerial. Renato Brasileiro, por exemplo, defende que deve prevalecer o entendimento no sentido de que se trata “de uma discricionariedade ou oportunidade regrada”, entendimento, ademais, encampado pela Recomendação Conjunta Nº 01/2020-PGJ/CGMP, mais precisamente em seu décimo oitavo enunciado, in verbis:
A proposta de acordo de não persecução penal é faculdade do Ministério Público, que avaliará, inclusive em última análise (§ 14), se o instrumento é necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime no caso concreto.
No mesmo sentido, muito recentemente, a Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, de forma equivocada a nosso ver, ao apreciar ordem de habeas corpus impetrada pela Defensoria Pública daquele Estado, entendeu que o “acordo de não persecução penal é bilateral e discricionário e não pode ser imposto pelo Judiciário em caso de recusa do Ministério Público”.
Em que pese o entendimento, ainda embrionário, da 3ªCâmara Criminal do TJSP, não se trata de faculdade do Ministério Público, tampouco é dotado o Parquet da última palavra, vez que o juízo de necessidade e suficiência para reprovação e prevenção do crime está indesmentivelmente conectado com as funções da pena, trabalhadas no artigo 59, do Código Penal. Entendemos, assim, que referida análise, a qual dá margem à discricionariedade incontrolável por parte do órgão ministerial, está pela cláusula de reserva de jurisdição, cabendo ao Judiciário a derradeira palavra.
Cuida-se, à semelhança do que ocorre com instituto da colaboração premiada, de direito subjetivo do investigado/acusado/réu, razão pela qual, como insistentemente temos defendido, uma vez preenchidos os requisitos, não pode o Estado furtar-se à concessão da “benesse legal”.
Por fim, não obstante os entendimentos contrários, não se pode concordar com qualquer posicionamento que outorgue à negativa ministerial o caráter de imutabilidade, o qual não acoberta nem mesmo a coisa julgada material, atacável sempre pela via da revisão criminal, superando, inclusive, a própria soberania do tribunal do júri. É dizer, por força constitucional, estando preenchidos os requisitos para obtenção do acordo, em sendo contrário o Parquet, poderá o interessado acessar o Poder Judiciário, na medida em que não pode a lei excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, CRFB).
Em apertada síntese, figura como condição mandatória para a celebração do acordo:
(i) confissão formal e circunstanciada do fato, a qual, no entanto, não equivale ao reconhecimento da culpa. Delicada a condição, que provoca incertezas quanto à sua constitucionalidade. Ora, se o acordo não implica no reconhecimento de culpa, não podendo ser usado em desfavor contra o investigado, por qual motivo exigir-se uma confissão circunstanciada? Para prejudicar, posteriormente, o “beneficiário” da medida, empregando sua confissão para responsabilização extrapenal? Para utilizar-se, em caso de descumprimento do ANPP, essa confissão como elemento de prova no mesmo processo? Pensamos que o detalhamento da confissão não guarda compatibilidade com o nemo tenetur se detegere, razão pela qual concordamos com Nucci, para quem o acordo não só pode como deve “ser celebrado sem a necessidade de confissão plena e detalhada”.
(ii) tratar-se de crime sem violência ou grave ameaça. Quanto à violência ou grave ameaça, embora o legislador tenha economizado nas palavras, quis-se inviabilizar o ANPP para os autores de crimes dolosamente violentos. Nessa direção, aliás, com acerto, caminhou a resolução do MPMT, ao estabelecer, em seu enunciado 22, que:
É cabível a proposta de acordo de não persecução penal nos crimes culposos com resultado violento, uma vez que nos delitos desta natureza a conduta consiste na violação de um dever de cuidado objetivo por negligência, imperícia ou imprudência, cujo resultado é involuntário, não desejado e nem aceito pelo agente, apesar de previsível.
Ou seja, a agressão – física ou verbal – impeditiva do acordo há de ser direcionada à pessoae, o mais importante, de forma dolosa. Daí porque sustentamos, na linha do enunciado supracitado, que a violência deve estar na conduta intencional do agente, e não no resultado por ele causado. Dito de outro modo, veda-se o ANPP para autores violentos e não para condutas violentas de autores descuidados (crimes culposos).
Chegamos a essa conclusão por meio de interpretação sistemática do artigo 28-A, caput, do Código de Processo Penal, com o artigo 44, do Código Penal, que inspira o instituto consensual e autoriza a substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direito nos crimes culposos, ainda que a pena aplicada suplante o patamar de quatro anos.
(iii) ter o delito pena mínima inferior a 4 (quatro) anos. Esse pressuposto merece detida análise, de modo que não pode ser levado em consideração, para a aferição da pena mínima, de forma isolada, apenas o vetor do §1º, segundo o qual para aferição da pena mínima cominada ao delito (ou seja, inferior a quatro anos) serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.
Concordamos com Aury Lopes Jr. e HigynaJosita, quando dizem, fazendo remissão à Súmula 723, do Supremo Tribunal Federal, que se deve “levar em conta, na causa de aumento, a fração que menos aumentar a pena mínima e na causa de diminuição, a fração que mais diminuir”.
No entanto, vamos além, para sustentar que a mera capitulação jurídica da denúncia não pode, por si só, obstar a celebração do ANPP, sob pena de retirar completamente a eficácia do instituto nos casos de concurso de crimes. Explicamos: na hipótese de overcharging ou excesso acusatório(doloso ou imprudente), pode o acusado, sempre acompanhado de seu advogado, assumir o crime que realmente cometeu e, em relação a ele, preenchidos os requisitos, requerer o reconhecimento do ANPP.
Imagine-se que determinada pessoa é acusada por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa – Orcrim. Essas capitulações, somadas, impedem, numa primeira análise, a celebração do ANPP. Pode ocorrer, todavia, de esse sujeito ter, de fato, praticado apenas um dos ilícitos e resolvido confessá-lo.
É possível, assim, a título de ilustração, que o acusado tenha praticado corrupção apenaspor uma única vez, sendo a lavagem mero exaurimento (recebimento da vantagem indevida- APn 470). Ora, sendo um delito único [somente o ato de corrupção], tampouco se pode falar em Orcrim, haja vista a ausência de estabilidade e permanência para a prática reiterada de infrações penais. Nessa situação, verifica-se o desacerto da denúncia, que “enxertou” dois crimes sem qualquer fundamento, de molde a – por erro de subsunção por parte do acusador ou mesmo pela deliberada prática do overcharging – impedir, de forma injusta, a celebração do ANPP.
Outrossim, em múltiplas capitulações que envolvam também peculato é igualmente factível que o acusado de branqueamento do capital sequer tenha tido ciência de que os numerários derivaram do crime próprio de peculato (ou corrupção), motivo pelo qual a elementar pessoal dos tipos de injusto não se lhe pode ser atribuída. Nesse caso, é plenamente possível antever a improcedência da pretensão acusatória, deduzida de forma equivocada na peça acusativa. Claro está que esse erro de imputação não pode impedir o acusado de celebrar o acordo, a toda evidência.
Dessa forma, empregando essas premissas, somos obrigados a concluir que razão não há – de nenhuma ordem: nem de economia, tampouco de justiça – para que se espere o final da instrução, com a prolação de sentença absolutória no tocante às imputações de Orcrim e corrupção ou peculato, para que se viabilize, somente nesta fase, a possibilidade de celebração do ANPP.
Nessa linha de raciocínio, parece-nos que, para manter, por um lado, o respeito ao fair play e evitar, por outro, a odiosa prática do overcharging, é possível ao acusado selecionar o delito que, de fato, assume que praticou e, em relação a este, requerer, de imediato, o ANPP. Quanto às imputações sobrantes, poderá rebatê-las no curso do processo, já que, em relação a elas, a marcha processual seguirá.
(iv) A encerrar a análise acerca dos pressupostos positivos (condições necessárias para que se faça jus ao ANPP), resta pontuar uma que, a nosso ver, é tão genérica quanto problemática. Deve o acordo ser necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. Como ensinam Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar:
Os vetores que devem orientar a necessidade e suficiência das penas restritivas de direitos propostas referentes às finalidades repressiva e preventiva do crime, ou seja, aos fins retributivos (absolutos) e de precaução (relativos), que acreditem ser inerentes à aplicação das penas.(Grifos no original).
A despeito de argumentarem – como, por exemplo, se fez no enunciado 27, da Recomendação do Ministério Público do Estado de Mato Grosso – que o acordo não impõe penas, mas, sim, “direitos e obrigações de natureza negocial”, é inegável o caráter sancionatório das medidas, as quais em muito se aproximam àquelas restritivas de direito, dispostas no artigo 43, do Código Penal.
Não há como se olvidar da célebre obra de Shakespeare, quando Julieta, na cena II – Jardim de Capuleto –,assim diz a Romeo:
Tan solo tu nombre es mi enemigo. Tú eres tú mismo, no un Montesco. ¿Qué es Montesco? No es una mano, ni un pie, ni un brazo, ni un semblante, ni parte alguna de la naturaleza humana. ¡Toma otro nombre! ¿Qué puede haber en un nombre? La rosa no dejaría de ser rosa y de esparcir su aroma, aunque se llamase de otro modo.
Parafraseando o clássico, independentementedo nomen iuris que se atribua, a natureza de pena não perderão as referidas condições. Bem por isso, sustentamos que não pode o Parquet atuar em substituição ao magistrado, em típica atividade de dosar a pena ou, como se chegou a dizer, os “direitos e obrigações de natureza negocial” – mudou-se o nome, mas essência segue sendo de pena.
Trata-se, dessa forma, poder inconstitucional, sujeito, como não poderia deixar de ser, à fiscalização de quem, de fato e de direito, detém o poder jurisdicional (Estado-Juiz), o que fica muito claro, por exemplo, no §5º, do artigo 28-A, do Estatuto Processual Penal, que traz a seguinte redação:
Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor.
Vale dizer, pode o Ministério Público, ao fixar as condições, sugerir – e não passa de mera sugestão – as medidas que entende pertinentes. Essas, contudo, poderão, sempre e sempre, ser atenuadas – somente atenuadas, frise-se –, quando se verificar inadequação ou abusividade.
Esses são, portanto, os quatro pressupostos positivos para que se possa estartar as tratativas. Por conseguinte, como observam Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar, “[s]omente depois de verificado o preenchimento empírico desses requisitos, demonstrados por elementosde prova consignados na investigação, poderá ter início o procedimento consensual”.
Afora os pressupostos positivos, que devem estar presentes para que se possa dar início ao consenso no processo penal, há que se observar, também, as chamadas causas impeditivas ou, como denominam Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar, pressupostos negativos, expressão que nos agrada mais.
Denominam-se de pressupostos negativos, dado que não podem estar presentes no caso, “precisam não existir”. É dizer, em sendo verificada quaisquer das causas impeditivas, espaço não terá para o acordo de não persecução penal.