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Mídia, Presunção de Inocência e Discurso de Ódio

Por Filipe Coutinho da Silveira e Fabiola Emilin Rodrigues1


O princípio da presunção de inocência está positivado no Direito Brasileiro, especialmente, no art. 5º, LVII da Constituição Federal de 1988, constituindo-se em um dos princípios reitores do Processo Penal[i]. A mesma regra é consagrada em diversos textos normativos internacionais como a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8.2), Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14.2.), Convenção Europeia dos Direitos dos Homens (art. 6.2), sobrelevando-se a necessidade de se garantir, a qualquer pessoa acusada de uma infração, a presunção de inocência enquanto a culpabilidade não estiver legalmente provada.

Trata-se, portanto, de um princípio estruturante dos sistemas processuais penais que se materializa em duplo sentido: estabelece uma regra de julgamento e uma regra de tratamento. Em síntese, como regra de julgamento impõe que o ônus probatório seja inteiramente do acusador, sendo que a dúvida beneficiará o acusado (in dubio pro reo). Já como regra de tratamento, impõe que o acusado seja considerado inocente até o trânsito em julgado, impedindo, por exemplo, o abuso de prisões cautelares, mesmo em caso de flagrante delito, a qual deverá decorrer de extrema necessidade quando presentes os requisitos autorizadores da segregação cautelar[ii], ou seja, nenhuma medida restritiva pode ser justificada ou imposta à título de juízo de culpabilidade precário.

Ocorre que para além dessas manifestações endoprocessuais o princípio da presunção de inocência também cumpre com uma importante missão externa ao processo, ou seja, exige que o Estado garanta proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização precoce do acusado, especialmente, aquelas decorrentes dos agentes públicos estatais.

Em que pese a dimensão externa do princípio da presunção de inocência seja pouco trabalhada pela jurisprudência do Brasil, importantes inspirações podem ser encontradas na jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. No caso Allenet de Ribemont vs França (Application no. 15175/89)[iii], o Sr. Patrick Allenet de Ribemont foi acusado e preso por ter participado do assassinato de um membro do Parlamento Francês. Durante a investigação, antes, portanto, da formação da culpa, diversos agentes públicos, como o Ministro do Interior da França, o Diretor do Departamento de Investigação Criminal de Paris e o Superintendente da Polícia Francesa concederam entrevistas à imprensa local afirmando que o Sr. Allenet de Ribemont teria participado do crime. Por conta das entrevistas concedidas pelos Agentes Públicos, em 1989, a questão foi submetida ao TEDH sob o argumento de violação ao art. 6.2. da CEDH, haja vista que o tratamento conferido ao Sr. Allenet de Ribemont, pelas autoridades francesas, o impediram de ser tratado como inocente.

O TEDH reconheceu que o princípio da presunção de inocência constitui-se em uma garantia processual e, para além disso, considerou que seu alcance deve ser mais amplo do que a moldura processual, impondo-se obrigações não apenas ao Juiz, mas também a outras autoridades. No julgamento, foi destacado, ademais, que a presunção de inocência não deve impedir o direito à informação, porém exige que as informações sejam sempre divulgadas de forma discreta e prudente. Neste cenário, foi reconhecido que a entrevista concedida por Agentes Públicos Franceses imputando a prática do crime ao Sr. Allenet de Ribemont violaria o princípio da presunção de inocência, por se tratar de uma clara declaração de culpa, incentivando o público francês a considerá-lo culpado.

Situação semelhante ocorreu no caso GCP vs Romênia (Application no. 20899/03)[iv], no qual o TEDH se debruçou sobre a publicidade pré-julgamento, reconhecendo que as declarações do Promotor de Justiça responsável pela investigação sobre a culpa do investigado em artigo publicado em jornal, seguida de diversas manifestações da mídia romena, consistiam em violação ao princípio da presunção de inocência, embora, à época das declarações do Agente Público, o suspeito ainda não tivesse sido formalmente acusado. Reconheceu-se, assim, que a utilização da imprensa como jogador externo ao processo penal[v] afeta a administração da justiça, influenciando a opinião pública e o próprio julgamento, impedindo a realização de um processo justo.

Os precedentes do TEDH reconhecem, assim, a violação do princípio da presunção de inocência a partir de condutas ativas dos sujeitos participantes da justiça criminal perpetradas fora dos autos processuais. Em ambos os casos, declarações ostensivas sobre a culpa dos investigados, foram determinantes para reconhecimento de um processo injusto, a partir da violação do princípio da presunção de inocência.

Em que pese condutas ativas e ostensivas possam caracterizar a violação do fair trial, há situações em que, aparentemente, o mesmo resultado pode decorrer de condutas latentes. Veja-se, por exemplo, na cultura brasileira, os inúmeros programas televisivos sobre o produto-crime, onde os suspeitos são submetidos, com o beneplácito dos agentes públicos, à encenação midiática, pseudo-científica sobre as causas do ilícito investigado, cujo único objetivo, não é informar, mas confirmar a culpabilidade do investigado acusado.

Nesses casos, é razoável supor que a Autoridade Pública responsável pela custódia do investigado, ainda que decorrente de flagrante, também deveria, desde logo, zelar pelo processo justo, impedindo que as expectativas mais primitivas do ser humano se sobrepusessem a um direito e garantia fundamental, como a presunção de inocência. Nesse passo, não apenas condutas ativas como vazamentos seletivos e/ou declarações sobre a culpa do investigado caracterizariam a violação à dimensão externa do princípio, mas também a conduta omissiva que impede a regular concretização da presunção de inocência, como ocorre, por exemplo, quando se permite que o acusado/investigado seja submetido ao pré-julgamento midiático, muitas vezes, antes mesmo de qualquer contato com seu advogado.

O reconhecimento de violação da presunção de inocência a partir de condutas ativas ou omissivas dos Agentes Públicos responsáveis pelo processo e/ou investigação criminal não configuraria qualquer violação ao princípio da publicidade e nem censura prévia ao direito informacional que rege o Estado Democrático de Direito. Nesse passo, informações úteis à sociedade poderiam ser viabilizadas de forma discreta e moderada sem que com isso fosse prejudicada a fiabilidade e a legitimidade do processo penal.

O que não se pode permitir, de outro lado, é a transformação do investigado/acusado em objeto de satisfação de impulsos primitivos e econômicos travestidos de liberdade de expressão. De igual maneira seria aceitar que “os fins justificam os meios”, quando não importando se princípios e direitos são violados para se chegar ao resultado, ao prazer da acusação.

Rompe-se, assim, por completo o princípio da paridade de armas, viciando o contraditório, ampla defesa e o devido processo legal, quando se sobrepõe a prova precária e parcial apresentada pela acusação e validada publicamente pela mídia com a justificativa de que a sociedade anseia vorazmente uma resposta.

Rui Barbosa, em uma das suas célebres frases ponderou “A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”. Mas será que não estaríamos fazendo um movimento pendular indo em direção diametralmente oposta ao acelerar o processo se sobrepondo à princípio e garantias fundamentais.

O dano gerado por uma decisão condenatória proferida com base em versões midiáticas, violando princípios basilares do Direito que, por sua vez, sustentam a segurança jurídica de uma sociedade é o novo sustentáculo para um discurso sem fundamento constitucional.

Quando isso ocorre, a pseudo-informação em muito se aproxima do discurso do ódio, eis que praticamente impossível se torna o exercício de defesa do acusado/investigado que já inicia o processo de formação de culpa, como verdadeiramente culpado, não havendo como o Estado providenciar ou garantir “microfones” para todos[vi], sendo certo apenas a encenação e o espetáculo.

Não é demais lembrar que o processo interpretativo em prol da defesa da dimensão externa da presunção inocência nos moldes até aqui expostos, encontra semelhante fundamento em importante precedente do Supremo Tribunal Federal. Com efeito no Caso Ellwanger (HC 82.424) o Plenário da Corte Suprema reconheceu, como argumento de fundo, a possibilidade de afastar oe princípio da liberdade de expressão quando seu exercício ultrapassar limites morais e jurídicos, como no caso de manifestações anti-semitas que implicam no crime de racismo. Esse mesmo processo interpretativo pode ser transposto para a questão da dimensão externa da presunção de inocência, isto é, quando Agentes Públicos atuam (ativa ou passivamente) de forma a permitir que o acusado seja apresentado ao público em geral como culpado, viola-se a regra de tratamento decorrente da garantia fundamental atentando contra a estrutura fundante do processo justo e, por conseguinte aos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social.



[1] Advogado Sócio e Head da Área Criminal do Escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff, Pós-Graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra/Portugal, Especialista em Ciências Criminais pela UFPA, Vice-Presidente da Abracrim/PA e Juiz-Membro do Tribunal de Ética da OAB/PA.

Advogada Socia área Penal Empresarial do escritório Demarest Advogados, Doutora em Direito Processual Criminal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, Especialista em Crime Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), São Paulo, Vice-Presidente da Comissão de Anticorrupção e Compliance da Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção de Pinheiros (OAB SP), Membro do Comitê de Anticorrupção da American Bar Association (ABA), Membro do Comitê de Crimes Transnacionais do International Bar Association (IBA), Membro do Comitê de Compliance do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP)

[II] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 16ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p 97.

[III] CPP, art. 282, §6º.

[IV] https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-57914%22]}

[V] https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-108237%22]}

[VI] ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 3ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

[VII] GUIRAO, Rafael Alcácer. Discurso del ódio, proteción de minorias y sociedade democrática. Crítica Penal y Poder. Barcelona. n. 18. p. 19-27. Dez, 2019. Disponível em http://perso.unifr.ch/derechopenal/assets/files/ar…, acesso em 20/04/2020.

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