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As mulheres e a síndrome do papel de parede amarelo – Por Vania Barbosa Adorno Bitencourt

O homem, infelizmente, tem que acabar! Calma, é só o título do livro da Clara Corleone [1], chamando a atenção para o machismo e o preconceito que as mulheres sofrem há séculos, dia a dia, minuto a minuto, ininterruptamente.

Com efeito, não é incomum concluir que o primeiro preconceito surgido na História da humanidade, utilizando-se como parâmetro a narrativa bíblica, foi justamente contra a mulher. Vejamos, a grosso modo: Eva foi a responsabilizada por “convencer” Adão a cometer o pecado original e, consequentemente, a expulsão do paraíso e, em razão disso, o maior castigo histórico recaiu sobre a própria mulher que, além de ter que conhecer a morte, foi-lhe impingido que sofreria na gravidez e daria à luz com muita dor e, por fim, que desejaria estar com o homem e este a dominaria. [2]

E assim cunhou-se aquela frase fatídica “o homem a dominará” que emerge latente até os dias atuais, apesar de todas as lutas e buscas por direitos iguais e todo esse blá blá blá no sentido de que tudo não passa de mi mi mi feminino. Só a título de exemplo, pasmem, no Brasil, o direito ao sufrágio (voto) feminino somente se deu através do Decreto n. 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, do governo ditatorial de Getúlio Vargas. Isso graças ao mi mi mi (leia-se: iniciativa) de uma brava estudante mineira de Direito, Mietta Santiago, assim definida, numa poesia de Carlos Drummond de Andrade, como loura poeta bacharel que conquista, por sentença de Juiz, direito de votar e ser votada”. Para quem acha muito, a idade do voto feminino no Brasil é menor que a quantidade de janeiros completados pela Rainha Elizabeth, que nasceu em 1926.

Pois bem, recentemente, surgiu na mídia, com a velocidade própria com que as notícias se propagam nessa modernidade líquida de Bauman, um tal Dan Bilzerian, denominado milionário americano, que possui quase 40 milhões de seguidores, só no instagram, diga-se de passagem, e que se apresenta cercado de mulheres seminuas. Estas, na maioria das vezes, em situações vexatórias que envergonhariam sobremaneira as irmãs cajazeiras, pudicas da cidade de Sucupira.

Trata-se de um homem grotesco, barbudo, malhado, que poderia facilmente ser definido por Pausânias como aquele dotado de uma Afrodite inferior, que cultua o amor ao corpo, ao dinheiro, ao poder, e não à alma, se é que a possui. Em outras palavras, um imbecil.

Imagine-se que tais atos de exposição dessas mulheres tivessem ocorrido no Brasil e se buscasse um tipo penal para enquadrar esse meliante que, ao que parece, leva a sério abusa da doutrina bíblica do domínio masculino sobre a mulheres. Lembremo-nos que o Código Penal de 1.940 foi elaborado por homens que consagravam a figura da mulher honesta (copiado da Ordenações Filipinas), para que crimes “contra os costumes”, entendidos como crimes contra a liberdade sexual pudessem existir. Terminologia que somente foi suprimida do ordenamento pátrio em 2.005, resultando, como bem destaca Cezar Bitencourt, “em boa hora essa excrecência rançosamente discriminatória foi extirpada do nosso ordenamento jurídico-penal” [3].

Ainda que fosse encontrada alguma imputação criminosa à conduta do tal Dan, muitos demiurgos perguntariam: essas mulheres não estão ali por livre e espontânea vontade? São obrigadas a se submeterem ao tratamento vexatório? Parecem até que estão felizes…Caros, lembremo-nos do início deste articulado, do pecado original, do primeiro preconceito etecetera e tal.

Como no conto de Charlottte Perkins Gilman[4], publicado em 1892, há mulheres que sofrem da síndrome do papel de parede amarelo. Naquela narrativa, em primeira pessoa, demonstra-se o arquétipo de uma mulher que se torna insana, diagnosticada como histérica pelo seu marido, médico. No início, a personagem que, aparentemente, é normal, passa a acreditar no que diz o marido. Este, por sua vez, leva-a para morar no campo, num local isolado e, com o correr dos dias, tira-lhe todo o contato com o mundo exterior, inclusive de seu filho pequeno, trancando-a num quarto que possui as paredes cobertas com um papel de parede amarelo. Com o passar do tempo, a personagem começa a crer que realmente está louca, que existem outras mulheres presas atrás do papel de parede e que só serão libertadas se todo o papel for arrancado. Ocorre que isso teria que ser feito às escondidas, para não contrariar o esposo, pois afinal, era-lhe tão bom e amoroso.

Poder-se-ia afirmar, talvez, numa visão sistêmica de Bert Hellinger, que a personagem ansiava por libertar outras mulheres, mas com o verdadeiro intuito de libertar a si mesma, ainda que de forma histérica.

A síndrome do papel de parede amarelo faz com que as mulheres acreditem na ideia de sua pequenez, incapacidade e até insanidade repetidas diariamente por alguns inescrupulosos esposos, companheiros que as diminuem, agridem e até matam, simplesmente pelo fato de serem mulheres. Isso é demonstrado todos os dias pelas estatísticas policiais, pelo número progressivo e aviltante de violência doméstica contra as mulheres, crescentes nessa época de pandemia e ignorado pela sociedade em geral. São só números, enfim!

Aquelas moças que acompanham o tal Dan precisam de ajuda, não de julgamento. O pensamento deveria ser esse, antes que a modernidade se torne gasosa, parafraseando novamente Bauman, e aí, tudo seja ainda mais impalpável, principalmente os direitos de quem sempre teve dificuldade de ser vista.

[1] Corleone, Clara. O homem infelizmente tem que acabar. Porto Alegre, RS: Zouk, 2019.

[2] Bíblia Sagrada, O velho e o novo Testamento, Livro de Gênesis, 3:16, ed. Fecomex, 1997.

[3] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial 4: crimes contra a dignidade sexual até crimes contra a fé pública. 13ª edição – São Paulo: Saraiva, 2019.

[4] Gilman, Charlotte Perkins. O papel de parede amarelo e outros contos; tradução, prefácio e notas de Martha Argel. – São Paulo: Via Leitura, 2019.

Vania Barbosa Adorno Bitencourt, advogada criminalista e amante de filosofia.


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