CRISE DE CIVILIZAÇÃO, CRISE SANITÁRIA, CRISE DA REPRODUÇÃO SOCIAL: LEITURAS PARA UMA COMPREENSÃO UNITÁRIA DO TRABALHO
CRISE DE CIVILIZAÇÃO, CRISE SANITÁRIA, CRISE DA REPRODUÇÃO SOCIAL: LEITURAS PARA UMA COMPREENSÃO UNITÁRIA DO TRABALHO
Gustavo Seferian
Das gerações humanas vivas, nunca houve uma experiência global que catalizasse atenções comuns como esta que se vive com a pandemia da COVID-19. Por todos os lados, de todos os perfis, traçam-se “diagnósticos” e “remédios” para lidarmos com o drama humanitário resultante da doença.
A pandemia da COVID-19 forçosamente paralisou setores produtivos ou diminuiu drasticamente seus ritmos e lucros, atraindo os holofotes para as atividades e trabalhos dantes invisíveis e agora forçosamente tidas como essenciais, sendo elas justamente aquelas que aqui denominamos como trabalhos de reprodução social.
Reconhecemos a relevância e magnitude de muitas das contribuições intelectuais que vêm sendo feitas sobre o impacto da pandemia na vida das mulheres. Esta obra é mais uma valiosa contribuição neste sentido.
De nossa parte, não desejando chover no molhado desse tsunami histórico que vivenciamos, buscaremos neste escrito partir de um breve panorama sobre as variadas condições das mulheres trabalhadoras neste contexto pandêmico.
Não poderíamos começar de outro modo que não reforçando o coro de vozes e ideias que observam atentamente a vida concreta da classe trabalhadora brasileira neste período crítico histórico e o fazem desde sua percepção generificada e racializada. Com este ponto de partida de demarcação epistemológica, demonstraremos, ainda que com um exercício exemplificativo e sem oportunidade de detalhamento, os diferentes vieses do impacto da pandemia na vida das mulheres.
Só assim se fará possível realizar uma adequada aproximação das contradições e complexidades destas variadas situações reais hoje experimentadas, abordando-as enquanto sintomas de uma crise de civilização que guarda, dentre outras tantas facetas, uma pronunciada dimensão ecológica, sanitária e, como demonstraremos, trazendo consigo também um componente profundo da crise da reprodução social.
1. A PANDEMIA É PATRIARCAL!?
Como já mencionado, como o primeiro passo de nossa caminhada, pretendemos expor um panorama acerca da vida das mulheres brasileiras no contexto da pandemia da COVID-19, a demonstrar que esta – como toda a lógica sistêmica e civilizacional que nos encontramos inseridos e inseridas – é patriarcal, já que sua verdadeira causa não é biológica, mas profundamente social, tendo esta sociedade a desigualdade como elemento estrutural e constitutivo.
1.1. O ESPAÇO DO LAR NÃO É UM ESPAÇO SEGURO
Costumamos dizer, dentre aquelas e aqueles que se debruçam sobre o fenômeno da violência doméstica e familiar contra as mulheres, que esta possui um estatuto endêmico de grave questão de saúde pública, uma vez que, ainda que sob nível significativo de subnotificação, aponta altos índices e em ritmo de elevação.
Ao revés de um discurso que conceba acesso a direitos e melhorias de condições de vida em um sentido progressivo na sociedade capitalista, o que se percebe é um agravamento da violência de gênero, especialmente da violência doméstica e familiar contra a mulher. Esse diagnóstico se enreda em um contexto de austeridade, flexibilização de direitos sociais, fragilização dos serviços públicos essenciais e aumento do desemprego, como é o do esgarçamento neoliberal, em especial em países da periferia da ordem do capital, que determina fortemente esse quadro de violência.
A combinação da crise econômica com as medidas de isolamento físico fez com que o problema crônico da violência doméstica provoque agudas dores sociais neste período da pandemia.
Muitas autoras feministas no campo do marxismo, como Tithi Batthacharya[3] (2019), demonstram como, ainda que o fenômeno da violência de gênero não seja suficientemente explicado desde as condições econômicas, os períodos de crises revelam sua intensificação. Isso se deve essencialmente ao fato das dificuldades de reprodução material da vida chacoalharem lugares e performances reservadas aos homens: o de serem firmes, seguros e, principalmente, provedores do lar e da família – papel que, concretamente, sabemos ser compartilhado com as mulheres há séculos no trabalho formal e quase que exclusivamente assumido por elas no âmbito doméstico informal, mas que se introjeta culturalmente como se de uma atribuição masculina se tratasse. Quando não se sabe do salário no fim do mês, quando o aluguel pode ser interrompido e a comida posta na mesa é escassa, ocorre uma lacuna de identidade do ser homem e isso pode se canalizar em mais violência contra mulheres e crianças nos lares.
Daí que Paola Ruiz-Huerta (2020, p.11)[4] nos indaga: “É possível que esta situação favoreça que alguns adotem posições mais dominantes e aumentem sua agressividade e violência para se sentirem mais masculinos e recuperarem o que Dona Haraway chama de mais-valia de gênero?”. Ainda que sem adentrar nessa particular nuance da crítica da economia política, é certo que neste período da pandemia do Covid-19 a soma das incertezas materiais da vida, as frustrações e angústias com as opressões há muito latentes e agora comprimidas no espaço doméstico resulta em uma panela de pressão prestes a explodir.
Ainda que em países de capitalismo dependente e periférico, como é o caso brasileiro, perceba-se a proeminência das violências motivadas por opressões de gênero e raciais, este é um fenômeno mundial e o efeito “panela de pressão” vem sendo denunciado em todos os rincões do mundo em que o isolamento social operou para contenção da pandemia. Rebecca Gordon (2020, p.33)[5], por exemplo, nos aponta o quanto, na realidade estadunidense, o mercado de armas se intensificou com a pandemia:
Escrevo isto sabendo que um setor econômico que não sofreu com a pandemia é o mercado de armas. A ammo.com, por exemplo, que vende munições on-line em todos os estados, com exceção de quatro, experimentou um aumento de receita mais do que triplicado no último mês. Talvez todas essas munições estejam sendo compradas para combater zumbis (ou a invasão de imigrantes que o presidente continua a nos lembrar), mas pesquisas mostram que a posse de armas tem muito a ver com a violência doméstica que se transforma em assassinato.
A violência doméstica e familiar contra a mulher talvez possa ser considerada um dos pontos mais vibrantes de uma teia de elementos reveladores da desigualdade de gênero no capitalismo. Como poderemos verificar mais adiante, a nós tais desigualdades possuem um sentido estrutural e estruturante das relações sociais vigentes e sua expressão na violência mais direta interpessoal revela o grito estridente de um som que ecoa cotidianamente.
1.2. MULHERES EM RISCO SOCIAL
As mulheres, na maior parte do globo, estão em condições de igualdade formal com relação aos homens. Mesmo assim, perpetuam-se desigualdades salariais ainda quando são ocupados cargos similares[6], há disparidades significativas em cargos de chefia ou liderança, permanecem elevadíssimos os índices de violência de gênero – no trabalho, na rua, na casa – e o trabalho doméstico, bem como os mais precarizados, continuam sendo majoritariamente femininos[7].
Complexificando a análise, importante evidenciar como o racismo institucional se expressa nas diferenças salariais, estando mulheres negras na base, com menores salários, realizando majoritariamente trabalhos precarizados, sobretudo como trabalhadoras domésticas[8].
Esta é uma realidade enraizada nas relações sociais capitalistas. Há uma combinação entre exploração, apropriação e opressão que as atinge. As mulheres tendem a ser mais exploradas – ou exploradas com menos garantias – e sentem na pele, com intensidade, os efeitos das políticas governamentais de austeridade, por isso dizemos que a pauperização é feminina e não-branca.
Neste contexto da pandemia, é perceptível como a vulnerabilidade social feminina é maior. Seja nas condições de desemprego, seja nas dificuldades de sobrevivência da ampla gama de mulheres que lidam com atividades de subsistência e que são chefas solas de seus lares, o que se traduz como “um dia sem trabalho significa um dia em que suas famílias não podem comer”, diz Diana Carolina Alfonso (2020, p.17). E arremata:
Em artigo intitulado Las mujeres y la tierra, la propiedad y la vivienda, a ONU Mulheres pede a implementação de medidas urgentes no setor imobiliário. As mulheres, os idosos e os doentes são os grupos mais afetados pela especulação fundiária e habitacional. Se levarmos em conta que as mulheres possuem menos de 1% da terra e um número ligeiramente maior de residências urbanas, devemos concluir que o gasto com aluguel tem um peso esmagador em suas economias, pois, como mencionado acima, elas trabalham e carregam sobre seus ombros a dependência econômica de idosos, doentes e crianças. (ALFONSO, 2020, p.17)
As mulheres, de forma geral, estão em condições de maior precariedade no mundo do trabalho e é inegável que durante a crise decorrente da pandemia da COVID-19 sofrerão ainda mais os impactos sociais dessa instabilidade. No Brasil, no mês de abril de 2020, a expectativa era de que 6 milhões de mulheres chefes de família receberiam o auxílio-emergencial (BRASIL, 2020)[10]. Ainda no mês de março, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), demonstrou o quanto a crise causada pela COVID-19 condicionou ao desemprego ou a saída do trabalho formal de boa parte da força de trabalho feminina. A pesquisa demonstra que nas duas últimas semanas de março, 7 milhões de mulheres deixaram o mercado de trabalho, dois milhões a mais em relação aos homens na mesma situação (OBSERVATÓRIO, 2020)[11].
1.3. MULHERES NA LINHA DE FRENTE
Iniciamos este subitem com o levantamento e análise de dados sobre feminização do trabalho na área de saúde feito por uma equipe multidisciplinar da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (WERMELINGER et alii, 2020), intitulado “A Força de Trabalho do Setor de Saúde no Brasil: Focalizando a Feminização”, que nos revela:
Dados do IBGE (2000) mostram a enorme expressão feminina na força de trabalho em saúde, com ênfase naqueles profissionais de níveis técnico e auxiliar. Vejamos os dados: do total de 709.267 pessoas ocupadas no setor com escolaridade universitária (empregos), 61,75% são mulheres, e, entre os médicos, elas representam 35,94%; entre os dentistas, 50,93%; entre os enfermeiros, 90,39%; e entre os nutricionistas, 95,31%. (Tabela 2). Por outro lado, entre os profissionais de níveis técnico e auxiliar, que somam mais de 900 mil empregos, a feminização é ainda mais acentuada, alcançando 73,7% do total, com 77,88% dos técnicos em fisioterapia e afins, 78,03% dos atendentes de enfermagem, parteiras e afins, e 86,93% dos técnicos e auxiliares de enfermagem são do sexo feminino (Tabela 3). (WERMELINGER et alii, 2020, p. 11)
No mesmo sentido é o depoimento desde terras uruguaias – a nos dar pistas de um fenômeno mundial:
Do total de profissionais de saúde no Uruguai, 76% são mulheres e 24% são homens”. Nas modalidades que têm contato mais direto com a população – medicina geral, medicina familiar e comunitária, pediatria e profissões não médicas – o índice de feminização é ainda maior. Em posições de maior responsabilidade hierárquica, naturalmente, a porcentagem de homens aumenta, realizando tarefas que envolvem menos contato direto com os usuários dos serviços de saúde. (ALFONSO, 2020, p.19)
Tanto lá como cá, as mulheres ocupam a maioria dos postos de trabalho de saúde, em especial aqueles relacionados ao cuidado mais direto e corporal do paciente, havendo uma desproporcionalidade entre sua representação nas profissões mais e menos valorizadas economicamente neste ramo de atividade profissional.
Nestes tempos atuais, quando a sensação de vulnerabilidade assombra todos os tipos de seres humanos, diariamente assistimos os agradecimentos públicos a tais trabalhadoras que arriscam suas vidas no enfrentamento à pandemia. Merecem palmas e merecem ser percebidas no empenho de atividades essenciais para a reprodução da vida humana. Mas são trabalhadoras, vendem diariamente sua força de trabalho em troca de um salário, muitas vezes insuficiente para atender as suas necessidades, portanto, sua atividade não se trata de mera doação ou amor ao ofício, mas de um trabalho que precisa ser reconhecido e valorizado ontem e sempre.
O impacto da pandemia coloca em xeque os valores fundantes do capitalismo e espreme o avassalador processo de mercantilização das vidas ao denunciar que o lucro está acima das vidas e isso não é sustentável, ao escancarar o impacto da privatização de serviços públicos fundamentais. Educação, ciência e saúde são demonstradas em sua essencialidade. O que não significa um giro paradigmático, mas sim a insustentabilidade deste modo de produzir e construir vidas precárias.
Ainda na linha de frente – e combinadamente dentre aquelas em condições de maior vulnerabilidade – estão as cuidadoras e trabalhadoras domésticas. Em uma sociedade na qual inexiste a distribuição equânime de cuidados e muito menos formatos cooperativos e colaborativos planejados e adequados de cuidados, o isolamento social colocou em risco aquelas pessoas remuneradas para tais serviços, pois ou foram condicionadas a continuar trabalhando nas casas e instituições ou se viram desempregadas – a hipótese de continuidade remuneratória sem prestação do serviço foi excepcional.
De acordo com dados do Pnad Contínua, o número de trabalhadores domésticos chegou a 6,3 milhões no país em 2019, com apenas 1,7 milhão de formalizados. De acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2018, 92% das pessoas trabalhadoras domésticas eram mulheres e, desta, 68,5% eram negras. Estes dados nos revelam a condição frágil de trabalho destas mulheres, o que a pandemia apenas confirmou da maneira mais desumana e drástica possível, sendo a memória do menino Miguel – que precisou acompanhar a mãe no serviço e que morreu ao ser desassistido pela patroa enquanto a mãe foi levar o cachorro dela para passear em Recife, Pernambuco – a marca de sangue mais indelével desta realidade.
No mesmo sentido, também pudemos observar que as “donas de casa” e cuidadoras não remuneradas se viram profundamente sobrecarregadas neste contexto, quando o ônus de suas atribuições não poderia mais sequer ser mitigado com a frequência em espaços escolares e de trabalho de seus entes familiares – sem merenda escolar, com acompanhamento pedagógico mais direto, com a necessidade de mais limpeza e mais comida e mais atenção de toda a família, isso sem falar nos próprios cuidados de saúde redobrados e nas mazelas que atingem aquelas e aqueles afetados pelo vírus.
E se por aqui a população feminina, negra e periférica vivencia o pesadelo, em outras realidades, como a europeia e estadunidense, o trabalho doméstico engloba de maneira mais massiva as mulheres imigrantes – sem documentos, sem direitos e sem acesso ao sistema de saúde. Tratando dos Estados Unidos, Gordon (2020, p.32) afirma:
Pelo menos aqui na Califórnia, muitas das mulheres que fazem esses trabalhos são imigrantes sem documentos. Quando a administração de Trump e o Congresso finalmente aprovarem um projeto de lei de auxílio, elas, como muitos trabalhadores sem documentos que trabalham em restaurantes, não receberão os recursos que precisam desesperadamente para poder pagar o aluguel ou comprar comida. As organizações de direitos dos imigrantes estão intervindo para tentar suprir parte dessa carência, mas o que finalmente conseguem é uma espécie de raspa do tacho. Felizmente, os trabalhadores imigrantes estão entre as pessoas mais engenhosas deste país ou não teriam chegado tão longe.
Este é o sentido mais profundo da invisibilidade e desumanização.
1.4. MULHERES EM RISCO SOCIAL – E ALISTA PODERIA SE ALONGAR MAIS E MAIS…
Para encerrar este panorama sobre a condição e o lugar social das mulheres trabalhadoras em tempos de pandemia, destacamos a seguir setores das mesmas que vivenciam dificuldades mil para existirem e resistirem.
Aqui levantamos a condição das mulheres que exercem a prostituição, profissão desregulamentada do ponto de vista trabalhista no país e cujo desamparo legal se reflete na ausência de políticas públicas efetivas de proteção de seu bem-estar nesse período, cujo exercício da função as coloca em profundo risco.
Do mesmo modo, as mulheres em situação de prisão ou adolescentes privadas de sua liberdade no sistema socioeducativo, expostas a riscos dezenas de vezes maiores àqueles já tão grandes do lado de lá da grade, diante das condições de aprisionamento insalubres e superlotadas, fábrica de doenças e epidemias em qualquer contexto, tanto mais neste período de crise sanitária pelo coronavírus.
Não poderíamos deixar de ressaltar os riscos e desamparo público vivenciados por mulheres em situação de rua, cuja integridade e saúde ficam mais expostas pelos limites do isolamento e ainda contam com uma rede de apoio e até de “esmola” ínfima neste contexto. Suas dificuldades para viver são muito maiores nesse contexto.
Também é importante destacar a realidade de muitas lésbicas, bissexuais, travestis e mulheres transexuais que enfrentam no confinamento doméstico riscos à integridade física e psíquica diante das discriminações possivelmente vivenciadas neste espaço.
Por fim, e de forma alguma menos importante, levantamos o quanto, em meio a tantas mazelas, o argumento do combate ao coronavírus tem sido utilizado por autoridades públicas para passar com a boiada (e a bíblia e a bala) sobre os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres. Políticas públicas especializadas, como, por exemplo, os serviços do SUS nas hipóteses de aborto legal, sob o argumento de não serem “medicamente essenciais”, estão sendo canceladas.
Isso alcança, por exemplo, o triste cenário de “de todos os óbitos de mulheres grávidas e no puerpério pelo novo coronavírus no mundo, 77% aconteceram em território brasileiro” (NEXO, 2020)[14]. Segunda esta mesma reportagem:
Uma pesquisa publicada em 9 de julho pelo Jornal Internacional de Ginecologia e Obstetrícia aponta que 124 mulheres gestantes ou no puerpério (período pós-parto) morreram em decorrência da covid-19 no Brasil entre 26 fevereiro, quando foi registrado o primeiro caso no país, em 18 de junho. Esse número representa a grande maioria das mortes maternas por covid-19 registradas no mundo, segundo o estudo, e ultrapassa o total de óbitos com esse perfil somados nos outros países.
Em um país onde o obscurantismo e o apreço pela desinformação se juntam em uma guerra contra a ciência, não há uma preocupação do poder público na compreensão das especificidades do corpo feminino durante uma gravidez e no pós-parto, quando ocorrem alterações cardíacas e imunológicas que podem tornar este grupo mais vulnerável a doenças respiratórias como a COVID-19.
Poderíamos continuar a lista de preocupações com a vida das mulheres, em suas especificidades e pluralidades, mas acreditamos que com este panorama conseguimos tornar evidente o quanto somos desdobráveis – como diria Adélia Prado – ainda que frágeis a um sopro, ou a um vírus, como todo ser humano. Mais do que tudo, carregamos o mundo em nossos ombros, somos imprescindíveis para esta sociedade e precisamos, com urgência, poder ser e viver em nossa máxima potencialidade.
2. CRISE DE CIVILIZAÇÃO
Este panorama narrado – que não é só conjuntural, mas estrutural – demonstra como a afetação pelas mazelas capitalistas recai de forma ainda mais acentuada na vida das mulheres, não estando a pandemia atual, como veremos, dissociada desse processo.
É fundamental ter-se em conta que tais realidades não se resumem a uma resultante de uma simples crise econômica. Muito embora essa dimensão da crise tenha um caráter evidente – assumindo na contemporaneidade as marcas da insustentabilidade da aposta financista enquanto regime de acumulação de capitais -, trata-se esta de uma crise bastante mais ampla, e compartilhando o diagnóstico de Michael Löwy (2013)[15], entendemos se tratar de uma crise de civilização.
Tal crise assume esta qualidade por afetar todas as dimensões da existência social humana no cerne desta civilização, e não apenas a perspectiva de continuidade ampliada de afirmação da relação do capital, como as crises econômicas em sentido estrito. Reconhecendo, como quer Mandel (1977, p.51), que “uma crise em um setor [da sociedade capitalista] repercute em todos os demais setores”[16] )da ordem, é de se ter em conta que no cerne da crise civilizacional esta repercussão é avassaladora, impactando o complexo engendrar de bases materiais, relações sociais, subjetividades e o meio que nos cerca, caracterizadores deste registro civilizatório que, muito embora se arrogue “A Civilização” maiúscula, ou única civilização, é apenas uma dentre tantas, convivendo e se afirmando sobre as demais.
Muito embora a pandemia da COVID-19 esteja afetando uma pluralidade de civilizações no atual momento – e o impacto causado em diversas populações indígenas no Brasil é apenas um desses exemplos –, recai de forma particular na civilização em que nos inserimos: capitalista, industrial, moderna e ocidental.
É certo que esta não é a primeira crise desta civilização. José Carlos Mariátegui (2012)[17], tratando do período da I Guerra Mundial e da Revolução Russa, diagnostica uma crise civilizacional deste arranjo que nos enreda, largamente tensionado pela afirmação de uma alternativa civilizatória que irrompia desde outubro de 1917 pelas mãos das trabalhadoras e trabalhadores russos, colocando um novo modo de vida em prática desde o oriente. Outra crise de proporções civilizacionais experimentada por esse arranjo capitalista, industrial, moderno e ocidental pode ser apontado no período final da década de 1960, em que acompanhando uma queda abissal das taxas de lucro (MANDEL, 1990)[18], fez irromper uma onda de insurreições em todo mundo – Paris, Daccar, Praga, México, não passando o Brasil ileso… – questionando todo o estado de coisas.
Esta crise civilizacional – que como dissemos, não só é econômica, ou financeira, mas também o é – afeta aspectos morais, éticos, familiares, do cuidado, políticos, institucionais, ecológicos, energéticos e, como veremos, da reprodução social. Uma crise que não só pesa sobre a lógica sistêmica capitalista, mas em todo modo de vida, e que neste momento da pandemia da COVID-19 verifica a acentuação de uma de suas mais perversas facetas: a sanitária.
Quando comparada com as demais, a contemporânea crise da civilização capitalista, industrial, moderna e ocidental revela uma proeminência ecológica acentuada. O modo como o metabolismo social capitalista se relaciona com o metabolismo da natureza não-humana, de forma destrutiva, predatória, instrumental e prometéica, sem reconhecer a esgotabilidade dos recursos naturais e os desequilíbrios climáticos proporcionados por sua ação, sinaliza um dos traços mais agonizantes deste arranjo civilizacional em que nos inserimos. Esta tensão aponta de modo decisivo para o atual estágio pandêmico que assola toda humanidade, ainda que de forma desigual e combinada, como já sinalizado ao tratarmos das mulheres.
Dizemos isso ao reconhecer que um dos principais motivos do atual drama que vivemos esteja na produção industrial de animais para abate e consumo de proteínas, que há muito serve como principal indutor de contaminações humanas por zoonoses, mais ou menos perigosas à continuidade de nossas existências. Esse alerta, feito já há tempos por Mike Davis (2006)[19], se confirma em tempos atuais, e combinando-se ao complexo e profundo processo de divisão internacional do trabalho em escala global, fomentando por essa mesma ordem social capitalista, faz com que reconheçamos que se há um vilão no irromper da COVID-19 não são os animais silvestres que serviram de vetor ao spillover da doença, mas sim o capitalismo e seu modo de lida com a natureza não-humana (PERROTA, 2020)[20].
Por conta de todos estes elementos estarem imbricados, é certo que os fatores ecológicos da crise de civilização se projetam à crise sanitária, e esta por sua vez aprofunda outras dimensões da mesma crise, que em sua expressão concreta – como não poderia deixar de ser – é síntese de múltiplas determinações. Aqui chama nossa particular atenção o trato da reprodução social, também inserta na crise civilizacional e que sinaliza indutores relevantes para compreender a desigual e profunda forma como são afetadas as mulheres no período pandêmico.
3. A CRISE DE CIVILIZAÇÃO É TAMBÉM UMA CRISE DA REPRODUÇÃO SOCIAL
O aspecto multifacetado da presente crise, de natureza civilizacional, evidencia as contradições incorrigíveis das relações sociais capitalistas, que agora assumem sua forma tensionada e passível de gerar uma hecatombe.
Pretendemos, assim, percorrer um aspecto desta crise, anunciado desde o título de nosso escrito: esta crise civilizatória tem em seus componentes o fato de ser também uma crise da reprodução social.
A pandemia do coronavírus é reveladora, em primeiro lugar, do quanto as atividades garantidoras da reprodução da vida humana (e, consequentemente, da reprodução da força de trabalho) são condição de possibilidade para o funcionamento mais eficiente do circuito de produção e distribuição de mercadorias no capitalismo. Em segundo lugar, ela também evidencia o quanto a forma como a reprodução social é organizada nesta ordem tende a deixar as pessoas mais vulneráveis, especialmente em tempos de crise. Busquemos detalhar essas duas afirmações abaixo, a partir do raciocínio das autoras que reivindicam a construção de uma Teoria da Reprodução Social.
A ordem sociometabólica do capital pressupõe uma forma de controle social discriminatória e hierárquica, tendo como sua base fundante e essencial a divisão hierárquica do trabalho, considerando que a família nuclear é central como reprodutora ideológica dos valores do sistema, reprodutora material da força de trabalho e multiplicadora de potenciais consumidores.
Sendo assim, as autoras que reivindicam uma Teoria Unitária discordam da ideia de que o patriarcado possa ser considerado um sistema de regras e mecanismos que autonomamente se reproduzem na ordem do capital. Ao mesmo tempo, defendem que não se pode compreender tal ordem meramente como um conjunto de leis econômicas, mas antes “como uma complexa e articulada ordem social, uma ordem que tem seu núcleo constituído de relações de exploração, dominação e alienação”. Ao que Cinzia Arruzza (2015, p.38) complementa: “Deste ponto de vista, o desafio é entender como a dinâmica de acumulação de capital continua a produzir, reproduzir, transformar e renovar relações hierárquicas e opressivas, sem expressar estes mecanismos em termos estritamente econômicos ou automáticos”.
O capitalismo é marcado pela valorização do valor como seu combustível essencial, porém, enquanto sistema, é “um conjunto de processos e relações complexas” (ARRUZZA, 2015, p. 43)[22] e que historicamente produziu uma realidade que faz com que a reprodução social seja predominantemente relegada à esfera privada.
O capitalismo não é um Moloch, um Deus escondido, um marionetista ou uma máquina: é uma totalidade viva de relações sociais. Nela, encontramos relações de poder conectadas a gênero, orientação sexual, raça, nacionalidade, e religião, e todas estão a serviço da acumulação de capital e sua reprodução, ainda que frequentemente de formas variadas, imprevisíveis e contraditórias (ARRUZZA, 2015, p.48).
Assim, as relações sociais degênero, classe e raça são duais e conflituosas, se co-determinam e se reproduzem de maneira não homogênea e não hierárquica, formando um nó, sem que haja a contradição central e as complementares, sem que haja sobreposição de uma às outras a-historicamente e a-temporalmente, tal como defendem as autoras consubstancialistas, como Helena Hirata (2014)[24] e Daniele Kergoat (2010)[25].
Tendo este pressuposto analítico de fundo, calcado na compreensão da totalidade social, compartilhamos da posição das autoras da Teoria da Reprodução Social de que só podemos encontrar os fundamentos originários da divisão sexual do trabalho se partirmos de um olhar para a reinvenção do patriarcado no capitalismo baseada na aparente divisão entre público e privado (e os papéis de gênero atribuídos a homens e mulheres em cada espaço) e entre as dimensões de produção e reprodução social, que escondem sua mútua e imprescindível interdependência.
Mas de que se trataria, precisamente, a reprodução social no sentido empregado pelas feministas marxistas?
Podemos dizer que o valor da força de trabalho contém em si o valor necessário das mercadorias embutidas para a sua reprodução (alimento, moradia, roupa etc, variando conforme as realidades sócio-históricas, questões de ordem culturais, morais e políticas). É preciso um trabalho invisível, doméstico, muitas vezes não remunerado para que tais mercadorias possam ser “consumidas” pelo trabalhador – um trabalho feito por quem limpa, cozinha, costura, cuida, acalma e dialoga. Muitos desses serviços também podem ser produzidos e trocados como mercadorias, mas, nesta sociabilidade, são majoritariamente garantidos na esfera privada, não pela natureza dessas atividades, mas apenas porque foram retiradas da troca e circulação na ordem social posta e, por isso, não produzem valor, no sentido rigoroso atribuído pela economia política.
No entanto, afirmar que o trabalho doméstico produz valor equivale a depreciar aquele que deveria ser o aspecto essencial para compreender a natureza e a forma pela qual o capitalismo transformou a família. De fato, o ponto fundamental é que este trabalho reprodutivo acontece fora do mercado, não é uma produção de mercadorias, não é uma produção destinada à troca. E não o é precisamente porque o capitalismo, por um lado, subtraiu à família o papel de unidade produtiva e, por outro, levou a que o trabalho de reprodução da força de trabalho tivesse lugar majoritariamente no espaço da família, separando-o do processo de produção e de circulação de mercadorias. (ARRUZZA, 2010, p.102)
Assim, para esta vertente do feminismo marxista o conceito de reprodução social traduz-se como “a manutenção e reprodução da vida, em nível diário e geracional”, como uma “forma na qual o trabalho físico, emocional e mental necessário para a produção da população é socialmente organizado” (ARRUZZA, 2015, p. 55)[27], englobando e também extrapolando a dimensão do trabalho doméstico.
Para Tithi Bhattacharya, a produção de produtos e a produção de vida estão como um processo integrado. Ao responder à indagação de como a força de trabalho é ela mesma produzida, para assim poder produzir outras mercadorias, Tithi Bhattacharya (2019, p.103)[28] destaca três processos interconectados: i. a realização de atividades que regeneram os trabalhadores; ii. a realização de atividades que mantém e regeneram trabalhadores que estão fora do processo de produção (futuros, antigos trabalhadores ou aquelas pessoas impossibilitadas de vender sua força de trabalho); iii. a possibilidade de reprodução de novos trabalhadores (capacidade das mulheres cis de gerar vidas). Estes três processos estão permeados por uma reprodução de subjetividade, de disciplina para adequadamente vender sua força de trabalho (não é possível separar a capacidade de trabalhar da produção de nossa individualidade).