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A COVID-19 NO BRASIL E AS MULHERES: UMA PANDEMIA SEXISTA, CLASSISTA E RACIALIZADA

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COVID-19 NO BRASIL E AS MULHERES: UMA PANDEMIA SEXISTA, CLASSISTA E RACIALIZADA

Ezilda Melo[1]

“Apesar das ruínas e da morte,

Onde sempre acabou cada ilusão,

A força dos meus sonhos é tão forte,

Que de tudo renasce a exaltação

E nunca as minhas mãos ficam vazias”.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

São muitas mortes. É um luto que cresce, que aumenta diariamente. É uma tristeza profunda que se abate sobre a nação. Não bastasse todas as sensações de impotência diante do medo do vírus, estamos vivendo um verdadeiro caos político, social e estrutural. A pandemia se relaciona transdisciplinarmente com todas as ciências e com toda a existência humana. O viés deste breve ensaio é numa perspectiva feminista, sistematizando situações que estão sendo vivenciadas pelas mulheres neste contexto pandêmico e apontando para possibilidades.

Este momento exige combate e uma perspectiva de mudança profunda, pois estamos diante de um ataque de uma hidra capitalista, neoliberal, racista, fascista, homofóbica, elitista, excludente, preconceituosa, violenta e com um hálito venenoso. Todo cuidado é pouco. DAVIS e KLEIN (2020, pág. 8-49)[2] nos alertam sobre a necessidade desta mudança a nível global, mostram a preocupação com as populações que se encontram sempre sujeitas a diferentes formas de repressão e que são muito mais vulneráveis(e vulneradas pelo Estado) durante este período de resposta falha ao coronavírus.

“A GENTE LAMENTA TODOS OS MORTOS, MAS É O DESTINO DE TODO MUNDO”

No final de fevereiro de 2020, as cientistas brasileiras Ester Sabido e Jaqueline Goes de Jesus sequenciaram o genoma do corona vírus em apenas dois dias após a confirmação do primeiro caso da doença no país, que aconteceu no dia 26 de fevereiro. O genoma se refere à todas as informações hereditárias do vírus que estão codificadas em seu DNA. Jaqueline, 30 anos, negra, soteropolitana foi estudante de biomedicina da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, iniciando os seus primeiros passos na pesquisa científica aos 19 anos. Fez mestrado em Biotecnologia na Fiocruz, Fundação Oswaldo Cruz e o doutorado em Patologia Humana, na Universidade Federal da Bahia. Agora é pesquisadora na Faculdade de Medicina da USP e se tornou uma grande referência para todas pesquisadoras do país. Começo de uma história que ainda está em fase de desenvolvimento. Estamos em junho de 2020 e os números oficiais indicam mais de 30.000 mortes aqui no Brasil.

Ao constatarmos como o vírus se relaciona diretamente com a vida das mulheres brasileiras, percebe-se que estas mortes podem ser compreendidas dentro do tripé raça, classe e gênero.Débora Diniz, na sua conta do Instagram @reliquia.rum informa que a primeira mulher a morrer no Rio de Janeiro era empregada doméstica. “Morreu porque não lhe avisaram que a sua patroa estava doente”. As mulheres estão na linha de frente no combate à pandemia. As enfermeiras e técnicas em enfermagem são a grande mão de obra nos hospitais.

No contexto doméstico, as mulheres continuam desempenhando as atividades não remuneradas, de cuidado com a prole e isso se reflete na jornada extenuante que agrega também trabalho na modalidade home office para aquelas que conseguiram manter seus empregos. Àsa Regnér, Diretora Executiva-Adjunta da ONU Mulheres, afirmou que as mulheres carregam o bem-estar dos países em seus ombros. Que são as mulheres que estão trabalhando dia e noite e mantendo as sociedades unidas. Que fazem isso por meio de cuidados de saúde, cuidados maternos, de pessoas idosas, ensino on-line, creches, farmácias, supermercados e assistência social. Em alguns países, tudo nessa lista é trabalho remunerado, embora muitas vezes seja menos bem remunerado do que as profissões tradicionalmente masculinas. Mas, em outros, o trabalho de cuidados que as mulheres exercem vem sem salário. Aqui no Brasil é assim. Tivemos também, nestes últimos três meses, um grande aumentou do desemprego das mulheres, especialmente das empregadas domésticas e diaristas, que em sua esmagadora maioria são mulheres negras, da periferia e mães solo.

No ambiente acadêmico, a título exemplificativo, tem-se pesquisa feita com mais de 6 mil estudantes de pós-graduação, professores e pós-docs que revelou dificuldades enfrentadas pelas mulheres na produção científica. Os números apontam que entre as pós-graduandas, apenas 10% estão conseguindo realizar suas pesquisas.

Publicações científicas têm feito alertas de que a submissão de artigos por mulheres caiu ou se manteve estável enquanto as de homens cresceram nesse período de pandemia. Em abril, Elizabeth Hannon, editora adjunta do British Journal for Philosophy of Science, se manifestou alarmada no twitter sobre a queda drástica do número de submissões de artigos que recebia de mulheres: “Número insignificante de envios para a revista de mulheres no último mês. Nunca vi algo como isso”. “A desigualdade de gênero na ciência é uma questão urgente e a maternidade desempenha um papel importante nela. Os últimos anos testemunharam o surgimento de muitas iniciativas que desencadearam mudanças para solucionar esse problema. Não podemos permitir que essa pandemia reverta avanços e aprofunde ainda mais a lacuna de gênero na ciência”, escreveram as cientistas lideradas pela bióloga Fernanda Staniscuaski, da UFRGS, que coordenou a pesquisa sobre o impacto do coronavírus entre as mulheres que produzem ciência.

Esta situação finca a urgência de revisitarmos o debate sobre como as sociedades capitalistas se construíram como herança, como resultado das sociedades patriarcais. Ainda que o patriarcado seja muito anterior ao capitalismo, este assumiu ao longo da história diferentes facetas.Saffioti (2015, p. 69)[3], afirma que transformações radicais no padrão dominante de relações de gênero requerem profunda compreensão da sociedade em sua inteireza. A introdução da perspectiva de gênero em todos os campos do conhecimento certamente propiciará a construção de uma consciência crítica, sobretudo, nas mulheres, mas também nos homens, capaz de conduzir a mudanças substanciais na direção de uma sociedade menos iníqua.

A pandemia tem impactos classista, sexista, racializada, portanto ela não é a mesma para todos os grupos sociais, nem também é a mesma para todas as mulheres. Esta afirmação não difere muito do que alertava KOLLOTAI (1982)[4] sobre o discurso que iguala abstratamente realidades, esconde uma carga tripla insuportável que com frequência é expressa com gritos silenciados e lágrimas.

Essas lágrimas femininas, em profusão, indicam mais dor quando se soma ao trabalho exaustivo, nada ou mal remunerado, a violência doméstica que aumentou durante a pandemia. A violência contra as mulheres e meninas é pandemia invisível, afirmou a diretora executiva da ONU Mulheres Phumzile Mlambo-Ngcuka. Está-se diante de uma dupla pandemia com traços eugênicos que se refletem na política neoliberal de quem não lamenta, mas quer exatamente que esse número se amplie. Uma política escancarada de extermínio feita por um homem branco e sexista.

Com o Presidente do Brasil já denunciado ao Tribunal Internacional Penal, por práticas genocidas, comprovadas em seus discursos que menosprezam os impactos da pandemia na existência dos brasileiros e com práticas beneficiadoras dos grupos capitalistas em detrimento da vida, as mulheres (especialmente as mulheres negras) precisam encontrar caminhos para combater seus algozes.

A ONU Mulheres[5], atenta aos efeitos catastróficos da COVID-19 na vida das mulheres, abriu chamada de projetos para organizações de defensoras de direitos humanos em resposta à pandemia Covid-19. Até 21 de junho a chamada 01/2020 seguirá aberta para receber projetos de organizações lideradas por mulheres e voltadas à promoção dos direitos das mulheres com conhecimento especializado e experiência no trabalho com mulheres defensoras de direitos humanos. São estimuladas apresentações de vários grupos de mulheres, entre elas: mulheres negras, quilombolas, indígenas, lésbicas, bissexuais e transexuais, jovens, mulheres com deficiência, mães de vítimas da violência urbana, trabalhadoras rurais, extrativistas, ambientalistas, ativistas por direitos sexuais e reprodutivos, pelo enfrentamento à violência contra mulheres, pelos direitos das mulheres em situação carcerária, pelo direito à terra e à moradia, pelo direito à saúde mental, à participação política, professoras, advogadas, jornalistas, lideranças comunitárias e religiosas atuantes em periferias urbanas.

O necroliberalismo poderá matar muito mais. Precisamos nos fortalecer, nos cuidar em rede. Precisamos de estratégia política. A morte é o destino de todo ser vivente. Que seja em decorrência do coronavírus é mais uma falácia de quem não tem compromisso com as vidas das pessoas. O cenário da situação pandêmica no Brasil já mostra o impacto nas “vidas nuas”. Não estamos conseguindo, literalmente, respirar. As vidas das mulheres importam. As vidas das mulheres negras importam. As vidas das mulheres pobres importam. As vidas das agricultoras, quilombolas, indígenas, das mulheres encarceradas, das moradoras de ruas, das mulheres trans, das mulheres idosas importam. Nossas vidas importam. Já houve muita expropriação e lucro ao longo dos séculos. Pela oxigenação da vida.

CONCLUSÃO:APESAR DAS RUÍNAS E DAS MORTES, UMA REVOLUÇÃO FEMINISTA

No mundo todo só se fala em se construir uma outra sociedade pós-pandemia. O patriarcado, o capitalismo, o racismo, o fascismo, o neoliberalismo, a destruição da natureza, a violência, tudo isso aponta para uma inter-relação que não deu certo. Também não é exagero falar do risco à democracia aqui no Brasil. Há necessidade de uma revolução feminista que abale todas as estruturas danosas nas quais o capitalismo se instaurou.

Constata-se socialmente que o caos pandêmico traz maiores consequências na vida das mulheres. Precisamos, portanto, apontar alguns caminhos e um deles é o ecofeminismo, que, de acordo com MACHADO (2020)[6], trata-se de movimento que enxerga uma conexão entre a exploração e degradação do trazido mundo natural e a subordinação e opressão de mulheres. É preciso que se perceba a relação entre a agroecologia e os feminismos, chamando a atenção para as interfaces existentes entre esses movimentos e as dificuldades que existem para a sua plena integração na prática. Pensar em possíveis superações, reconhecendo as mulheres como sujeitos políticos dessas mudanças, é trazer para o âmago da discussão uma agenda que privilegia o matriarcado e suas heranças ancestrais. É privilegiar a natureza, a mãe terra e suas muitas filhas, que trazem dentro de si o portal da vida. Uma visão holística de meio ambiente e desenvolvimento social é urgente privilegiando as mulheres do campo, das águas, ribeirinhas, indígenas, sertanejas, da zona rural, campesinas que combatem a fome e o sexismo violento. A Europa apresentará um grande plano de recuperação do coronavírus com uma visão ecológica que poderá se tornar um exemplo para o resto do mundo. O Pacto Ecológico da Europa para criar empregos ecológicos e tornar as economias justas e limpas pode servir de exemplo aqui no Brasil[7].

Outro caminho é a práxis do feminismo negro. Nas palavras de RIBEIRO (2017)[8] a ausência de um olhar étnico-racial no movimento feminista tem invisibilizado as mulheres negras e suas lutas, obstaculizando assim o caminho de se tornarem sujeitos políticos. Um olhar crítico e interseccional poderá apontar para novas formas de compreensão e existência política que rompa com a invisibilidade da realidade das mulheres negras. Neste sentido, pensar no feminismo negro como um projeto de ressignificação política na vida de mulheres é possibilitar que vivam e tenham seus direitos respeitados. Mais do que nunca essa pauta se faz necessária. Do contrário, muitas mortes de mulheres negras, já naturalizadas pela violência secular, ocorrerão em meio ao caos pandêmico.

Com a derrocada do capitalismo, do patriarcado e do racismo podemos pensar num mundo melhor pós-pandemia. Enquanto isto não ocorrer, a humanidade é uma barbárie.

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[1] Feminista. Mãe. Historiadora. Professora. Advogada. E-mail: ezildamelo@gmail.com

[2] DAVIS, Angela, KLEIN, Naomi. Construindo Movimentos – uma conversa em tempos de pandemia. São Paulo: Boitempo, 2020.

[3] SAFFIOTI, Heleieth. Violência doméstica: questão de polícia e da sociedade. Disponível em: http://www.mpgo.mp.br/portal/arquivos/2015/05/22/17_29_35_372_Violência_doméstica_questão_de_polícia_e_da_sociedade.pdf. Acesso em: 02 jun. 2020.

[4] KOLLOTAI, Alexandra. Marxismo e Revolução Sexual. São Paulo Global Editora e Distribuidora LTDA, 1982.

[5] ONU Mulheres. Disponível em: www.onumulheres.org.br/. Acesso em: 02 jun. 2020.

[6] MACHADO, Rita de Cássia Fraga. Projeto de Pesquisa MULHERES DA FLORESTA E AGROECOLOGIA: OUTRAS EPISTEMOLOGIAS, aprovado pela Fundação de Amparo e Pesquisa do Amazonas (2020-2022).

[8] RIBEIRO, Djamila. Feminismo Negro para um novo marco civilizatório. Disponível em: https://sur.conectas.org/wp-content/uploads/2017/02/9-sur-24-por-djamila-ribeiro.pdf. Acesso em: 02 jun. 2020.

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