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A PANDEMIA DAS MULHERES NAS ATIVIDADES LEGISLATIVAS DO CONGRESSO NACIONAL EM CONTEXTO DE COVID-19

A PANDEMIA DAS MULHERES NAS ATIVIDADES LEGISLATIVAS DO CONGRESSO NACIONAL EM CONTEXTO DE COVID-19.

Katherine Lages Contasti[1]

João Paulo Allain Teixeira[2]

A partir da concepção de Améfrica Ladina, termo cunhado por Lélia Gonzalez, é possível desafiar a lógica da “razão como branca enquanto a emoção é negra” [3]. Como corpo da natureza sub-humana, as pessoas negras, indígenas e não-brancas seriam, portanto, justificadamente passíveis de exploração. Como sistema etnográfico de referência[4] a crítica à cosmovisão moderna hegemônica é fundamental, visibilizando sua outra face: a colonialidade. Thula Pires[5] nos alerta sobre o fato de que o sistema é capitalista/racista/patriarcal/cristão/moderno/colonial europeu[6] assim como o imperialismo euronorteamericano marcam profundamente o que Lélia Gonzalez[7], objetivamente, chama de sistema patriarcal-racista na Améfrica Ladina.

É por esta lente que é possível entender como o Ocidente discursivizou a si mesmo, autorizando as formas mais selvagens e violentas, garantindo a geografia da soberania inscrita e anunciada nos corpos[8].

Enquanto a crise de autoridade[9] for narrada como apatia e incapacidade de resposta ao que está estabelecido, evitando confrontar recalques coloniais da esquerda liberal e institucional[10], a cidadania fica demarcada mais pelos desmontes e menos pela tarefa de lidar com a sua própria dissimulação[11], diluída nas estruturas de desigualdade. Para dar conta desta peculiar complexidade, a interseccionalidade é um importante instrumento teórico-metodológico que encara a “inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cis-hétero-patriarcado”[12].

Assim, a noção de mulheres que orientam o trabalho é a de identidades sociais marcadas por raça/etnia e classe, conjunto que denuncia desigualdades e assimetrias[13] provocadas pela experiência e reproduzidas nas estruturas de poder do sistema-mundo.

A experiência da pandemia por COVID-19 na Améfrica Ladina é marcada pelo escancaramento das desigualdades estruturais e o sentido do comum não só na convivência, como de sua instrumentalização e de toda experiência de formação de povo, democrática ou não, segue sendo atravessada pela política de morte.

Antes mesmo de nos tornarmos epicentro viral, a Comissão Econômica para América Latina e Caribe – Cepal[14] já havia declarado que existem grupos que serão amplamente afetados em razão das desigualdades estruturais. Leia-se aqui: povos indígenas, quilombolas, povos tradicionais, trabalhadores informais, migrantes e mulheres. E sua razão de ser está situado no sistema-mundo colonial.

Não por acaso tantas disputas discursivas seguem sendo produzidas sobre os sentidos em torno do COVID-19, como se organizam politicamente em torno dessa experiência e como ela se desdobra na micro e na macropolítica. E apesar da devastação humanitária global, nenhuma das problemáticas está fora das pautas históricas do movimento de mulheres, populares, dos povos indígenas e movimento negro, por exemplo. Sabemos que uma das estratégias perversas de desqualificação discursiva é tornar denúncias e reivindicações abstratas e individuais, descontextualizando, desconectando fatos e esvaziando seus sentidos. É tático e metodológico do campo de batalha de cada uma das lutas contra precariedades, como atenta Verónica Gago e Luci Cavallero[15].

As crises políticas na Améfrica Ladina fazem parte do projeto moderno que se perpetua nas reinvenções do capitalismo neoliberal, financeirizado nas instâncias de poder, constitutivas do ser e do saber. Produzem desigualdades, violências, apagamentos e mortes como anunciou Aimé-Cesaire[16] ou ainda como “Contra-pedagogías de la crueldad”[17] onde todos os atos e práticas que ensinam, habituam e programam o sujeito e se constituem na transmutação do vivo e sua vitalidade em coisas. Aclamá-la como uma pandemia “democrática” no sentido de não distinguir lugar social de contágio pode ocultar aspectos cruciais para pensar a conjuntura do pós-pandemia ou ainda, invisibilizar a sistematicidade das violações que compõem a normalidade. Esta tarefa, que sempre exigiu um enorme esforço de todos os setores da sociedade, especialmente de grupos sociais precarizados no contexto pré-pandemia, agora se intensificam.

Enfrentar todas essas questões em um país que experimenta grave comprometimento do debate político, com a eleição de Jair Bolsonaro e a consagração de uma guerra ideológica a patrocinar toda sorte de retrocessos civilizatórios, agudiza a dimensão da crise.

Em termos de institucionalidade, há uma tarefa e responsabilidade no âmbito das instituições democráticas, notadamente do Congresso Nacional, na manutenção dos compromissos democráticos no país. Apresentamos aqui as propostas legislativas que buscam dirimir as desigualdades de gênero no contexto de COVID-19, no período compreendido entre março e a primeira quinzena de julho de 2020.

Como recurso de mapeamento, nos utilizamos do sistema de busca do Congresso Nacional, do Senado Federal e da Câmara de Deputados, além da plataforma de monitoramento legislativo “Elas no Congresso”[18]. Quando utilizamos os termos de busca “COVID-19”, “Pandemia”, até a primeira quinzena de julho tivemos 1.660 resultados, mesmo usando dois filtros de ano (2020) e do tipo de documento (Projeto de Lei- PL). Este número já cresceu consideravelmente se levarmos em consideração o resultado da pesquisa publicada[19] que identificou 1.261 Projetos de Lei nos dois primeiros meses da quarentena. Quando utilizaram como termo de busca “gênero”, “mulheres”, os números diminuíram, apenas dois por cento pretendiam fortalecer os direitos das mulheres.

Os temas mais presentes foram economia e saúde. O perfil encontrado pela pesquisa foi a de que esses temas são mais protagonizados por homens. As mulheres propuseram mais projetos na área do cuidado (saúde, violência contra a mulher, educação, trabalho e cultura). A pesquisa do “Elas no Congresso”[20] identificou vinte e quatro projetos (até maio), metade deles sobre violência contra a mulher, três sobre economia, o mesmo número sobre educação, um sobre maternidade, outro sobre trabalho e demais temas diluídos em quatro projetos.

Na busca feita no site do Senado identificamos a apresentação de onze projetos que lidam com violências estruturais asseveradas pelas precariedades decorrentes da pandemia por COVID-19 para mulheres, crianças e pessoa idosa[21]. Nove dos projetos tratam de proteção à mulher, mas dois deles foram arquivados. Já na Câmara de Deputados, o resultado da busca relacionando “COVID-19” a “mulheres”, tivemos 65 resultados. Desses, apenas 50 estão em tramitação, os demais foram arquivados ou retirados. Na leitura de cada um, identificamos que 41 beneficiavam mulheres e seus dependentes, dentre eles, 18 de forma subsidiária.

O PASSADO COLONIAL E O ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA NA AMÉFRICA LADINA

O Instituto Update[22] é uma das organizações que está monitorando as ações legislativas e executivas protagonizadas por mulheres políticas para o enfrentamento ao COVID-19 na Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e México.

Se no Brasil, com a Medida Provisória 936 as empresas estão autorizadas a reduzir jornada de trabalho e salários de seus funcionários, ou ainda, suspender contratos como medida para lidar com o COVID-19, no Chile a mobilização política resultou em duas medidas importantes: ampliação da licença maternidade durante a pandemia e garantiu a continuidade do pagamento de pensão quando o trabalhador estivesse sujeito à suspensão temporária do contrato de trabalho.

A Argentina construiu rapidamente a Renda Emergencial Familiar, com prioridade para mulheres, uma conquista baseada em forte mobilização do grupo de mulheres servidoras públicas no Executivo Nacional. No que se refere a violência contra a mulher, movimentos sociais organizaram várias estratégias como apitaços, panelaço e manifestos nas redes e nas janelas, além de articular códigos de pedidos de ajuda.

Vem do México uma importante denúncia. O esvaziamento do debate sobre violência contra as mulheres normalmente está vinculada à sua normalização e apagamento no fluxo institucional e sociocultural. A deputada Martha Tangle Martínez lembra que a violência contra as mulheres é mais letal que o Covid-19 e tem matado há muito mais tempo e de forma cada vez mais perversa (o movimento mobiliza através da hashtag #NosostrasTenemosOtrosDatos).

Desde 2018, a Organização das Nações Unidas – ONU reconhece a violência contra as mulheres como uma pandemia que atravessa o tempo e há quem declare como a guerra em curso de maior tempo na história. Como parte de um processo de sensibilização e desnaturalização contínua, ela coordena uma série de encontros abertos com dois temas centrais: violência contra mulheres e meninas, e economia das mulheres no contexto de emergência sanitária.

Importa destacar que os impactos na vida das mulheres têm suas singularidades por razões históricas e estruturais aprofundas nas condições de quarentena, definindo quem vive, como vive e quem morre, nos informando quem tem pago a conta das desigualdades e precariedades.

Não foi do nada que surgiu hoje vocabulário e práticas para denunciar os efeitos do desmonte da saúde pública, da superexploração dos trabalhos precários e migrantes e o aumento da violência doméstica no isolamento. A nível mundial, os movimentos sociais estão em alerta porque no fim da pandemia existe o risco de ficar mais endividadxs por acumulação de aluguéis e serviços não pagos, por alimentos que não deixam de aumentar, pelo aumento da dívida dos estados que decidirem salvar os bancos. Todos os dias se denunciam os desvios securitistas, militaristas e racistas da crise. É necessário explicitar as lutas que estão atravessando agora mesmo esta crise, ressaltar as demandas dos feminismos e dos movimentos contra a precarização em geral[23].

Boa parte da produção de analistas tem se dedicado a anunciar o futuro pós-pandemia, o novo normal e é de se compreender. No entanto, em chave feminista afroladinoamefricano, na expertise adquirida desde a análise dos desdobramentos de 1492[24], é possível perceber um presente cheio de passado inacabado.

Não por acaso os conflitos que atravessam a pandemia são concentrados nos territórios de reprodução social que agora fabricam a propriedade do pós-pandemia.

O CONGRESSO NACIONAL BRASILEIRO E SUA ATIVIDADE LEGISLATIVA

A ONU[25] aponta os seguintes problemas no tocante à vida das mulheres durante a pandemia: autonomia financeira, relações familiares e trabalho na área da saúde, sugerindo ainda que se incorporasse mulheres na gestão da resposta à crise. Assim como fenômeno global, no Brasil as mulheres seguem sendo maioria na linha de frente em resposta ao COVID-19, seja por serem maioria como trabalhadoras informais e quando trabalhadoras, representam cerca de 70% da força de trabalho da área de saúde no mundo.

Tendo isso em vista, alguns projetos buscam proteger trabalhadores[26], beneficiando diretamente mulher trabalhadora, a exemplo do PL 1615/2020 que determina a licença de trabalhadores de grupo de risco, grávidas e puérperas sem prejuízos dos proventos. Ou ainda, de forma indireta, como o PL 2837/2020 que determina a manutenção de qualquer vantagem pecuniária devida aos profissionais e trabalhadores de saúde afastados, seja por suspeita ou por confirmação de contaminação pelo COVID-19.

Sendo as mulheres hiper expostas às consequências da pandemia, sejam como frente de trabalho formal ou informal ligadas ao cuidados, seja nas consequências econômicas, o PL 3791 propõe que a política de testagem estabeleça critérios de gênero e renda. Nas cidades, nas periferias os movimentos por moradia, por terra, movimentos populares apresentam sua auto-gestão (de todo dia) para compartilhar comida, elaboração de frentes de emergência, já que seus problemas antigos se atualizam globalmente.

Acesso à água, saneamento básico, sistema de saúde, educação, moradia, desemprego, renda mínima, a bancarização da sociedade em situação de risco e o endividamento. São todas pautas de discussão e organização feminista, especialmente na Améfrica Ladina. Em paralelo, como fenômeno global, o crescimento da violência doméstica e familiar e a seus dependentes, violência contra as crianças, pessoas idosas e deficientes, reforçam a necessidade de redes de mulheres e a falta de resposta estatal. Prejuízos que resultam no não acolhimento e cuidados de saúde a vítimas de violência sexual precarização dos direitos sexuais e reprodutivos, por exemplo.

Pesquisa recentemente publicada pelo International Journal of Gynecology and Obstetrics[27] revela que oito em cada dez gestantes e puérperas que morreram de coronavírus no mundo eram brasileiras. A pesquisa diz que 22,6% das mulheres que morreram não foram admitidas na UTI e apenas 64% possuíam ventilação invasiva, não sendo oferecido nenhum suporte ventilatório a 14,6% de todos os casos fatais. As pesquisadoras são obstetras e enfermeiras brasileiras ligadas a quatro universidades (UNESP, UFSCAR, IMIP e UFSC, dentre elas a cientista e médica Melania Amorim que aponta os casos como feminicídio de Estado.

Outros documentos como “Recomendações para a assistência ao parto e nascimento em tempos de pandemia de Covid-19: em defesa dos direitos das mulheres e dos bebês” assinado por várias organizações e o “Protocolo de atendimento no parto, puerpério e abortamento durante a pandemia da COVID-19” da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia alertaram sobre o despreparo estrutural e indicaram uma série de medidas. O PL 3056/2020 pede a prorrogação do fim do prazo à licença concedida a gestante e o PL 3823/2020 busca normalizar a proteção a gestante, parturientes, puérperas e bebês durante esse período.

Para a aprovação da Lei Nº 13.982/2020, que trata a agenda de renda emergencial, foi preciso articulação política, muita pressão dos movimentos de mulheres, movimentos sociais, frentes parlamentares e forte mobilização nas redes sociais. Dinâmica que tende a se manter atenta dada à instabilidade do governo no tocante ao compromisso com políticas integrativas, especialmente durante a pandemia.

Enquanto isso o PL 698/2020 propõe a criação de um Programa de Renda Básica Emergencial para situações de calamidade pública ou emergência, seja de importância nacional ou em qualquer unidade da federação. Desenha a unidade familiar não apenas a nuclear, mas ampliada para pessoas com laços de parentesco ou afinidade, que forme grupo doméstico sob o mesmo teto e que contribuam entre si para sua manutenção.

Atualmente o Brasil tem mais de 28,9 milhões de mulheres chefes de família[28], que por sua vez, é majoritariamente negra (61%). Os dados do estudo “Retratos da mãe solo na pandemia”[29] apontam as enormes dificuldades de mães[30] em conciliar trabalhos, filhos, falta de dinheiro e sanidade mental[31], ainda pioradas quando se refere a mulheres negras por terem maiores restrições a condições de moradia, saneamento básico (42% não possuem) e internet (28% não tem acesso). Dados importantes, especialmente no que se refere a pandemia em dois termos: estrutura mínima para o isolamento social e manutenção das condições escolares dos filhos.

Ainda que anteriormente tivessem contado com o Bolsa Família[32], os cortes sistemáticos como política do governo Bolsonaro, revelam durante pandemia a falácia desenvolvimentista, de segurança de direitos trabalhistas e de postos dignos de trabalhos descritos pelo então presidente. A expectativa era a de que o auxílio atendesse seis milhões de mães, como anunciou o Governo Federal (2020), segundo a Plataforma Gênero e Número[33]. No entanto, as reclamações de não aprovação pouco fundamentadas, a burocratização e as dificuldades em acessar os aplicativos de transferência de recurso geraram denúncia do Ministério Público Federal através do movimento Parto do Princípio- Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa.

O PL 2839/2020[34] pretende que a Lei Nº 13.982/2020 seja alterada a fim de que não seja necessária a comprovação da guarda de filho(s) para que receba duas cotas do auxílio emergencial, como mecanismo e proteção às mães solo[35]. São dados observados e fundamentam o estratégico PL 2968/2020 que quer prorrogar o pagamento do auxílio emergencial por doze meses quando a pessoa beneficiada for pessoa provedora de família monoparental.

A discussão sobre divisão sexual do trabalho, trabalho doméstico, reprodutivo [36]ou ainda, trabalho afetivo[37] (FEDERICI, 2017; 2019; BIROLI, 2016) não é nova, a partir da experiência colonial e ofensiva do capitalismo dependente se refaz nas formas neoliberais de organização da vida das mulheres.

Antes da pandemia, em decorrência das políticas de austeridade como reforma no campo trabalhista, as mulheres apontam nas estatísticas como as mais desempregadas e, com o recrudescimento de políticas sociais, são as mais sobrecarregadas por tarefas de cuidado[38]. Em 2018 o relatório “Outras formas de trabalho”[39] do PNAD Contínua apontou que 37% das mulheres realizam tarefas de cuidado sem remuneração.

A articulação entre trabalho produtivo e reprodutivo, precariedades de direitos e políticas viabilizam que empregos precários e informais sejam ocupados pelas mulheres, ainda que tenham um bom nível de escolaridade. Se levarmos em conta as duas importantes economias do continente, Argentina e Brasil, o rendimento médio das mulheres é inferior ao dos homens, que no Brasil representa 79% e na Argentina 73% do que ganham os homens[40].

A crise econômica abre espaço para aumento do custo de vida como tarifas e preços de alimentos e encolhimento dos serviços públicos tem repercussão direta na vida das mulheres e é fundamental conectar as dívidas públicas ao perfil de seu endividamento já que passa a ser contraída para suprir condições básicas de sobrevivência[41].

Outro aspecto do endividamento passa pelo processo de feminização do trabalho. Aqui o trabalho carrega características do trabalho feminino como intermitente, precarizado e informal. Vejamos, para a expansão do capitalismo, é interessante a divisão sexual do trabalho como lógica também do mercado de trabalho e de como tal, se organiza[42]. Setorizados entre atividades masculinizadas e feminizadas, com currículos e experiência qualificadas ou não, há maior valorização salarial de um campo e desvalorização do outro (ou da Outra).

Com a pandemia e necessidade de distanciamento social, os ambientes de trabalho foram levados para dentro de casa e esse processo desencadeou debates importantes, históricos no luta feminista: a própria noção do que é trabalho e como ele acontece, se diz reconfigurado pelo “novo normal” mas que o reorganiza, reforçando papéis sexuais e raciais.

Segundo o PNAD COVID-19[43] o número de desempregados[44] foi de 1,2 milhão, o que significa um aumento de 14,5% de mulheres em situação desemprego, quadro piorado para as mães negras, com 15,2% de aumento. Isso sem contar o contexto de trabalho informal e de como a pandemia revela as precariedades de muitos postos de trabalho como as empregadas domésticas que tiveram um percentual de 45% de dispensas sem qualquer remuneração.

A primeira pessoa a falecer no Rio de Janeiro, primeira capital do Brasil foi uma mulher idosa, negra, periférica e trabalhadora doméstica. A patroa havia chegado da Itália e esperava o resultado do exame, mas embora estivesse em casa, não poderia dar conta ela mesma da sujeira que produzia e nem mesmo algo mais simples como fazer seu próprio café em seu amplo apartamento no metro quadrado mais valorizado do Brasil. Como a pobreza[45] e a precariedade é feminizada e negra[46], é importante o PL 2819/2020 que trata de medidas e garantias de equidade na atenção integral à saúde da população negra em casos de epidemia, pandemia, surtos de doenças contagiosas ou calamidade pública.

Como pauta central da luta pela sobrevivência, marcado pela desproteção de direitos e das vidas trabalhadoras, estão os dados da Cepal[47]: 727 mil trabalhadoras do serviço doméstico ficaram desempregadas ou perderam horas de trabalho. Há um importante projeto, o PL 2477/2020 determina que serviços domésticos não sejam incluídos entre atividades essenciais durante a pandemia, assegurando direitos trabalhistas, incluso cuidadores das pessoas idosas e de pessoas com deficiência.

Ainda sobre pedagogização higienista do mito da democracia racial, temos a falsa cordialidade levada a cabo pela branquitude no âmbito das relações domésticas no Brasil. De conhecimento nacional, fato passado em Recife, o caso da criança de cinco anos, Miguel, que caiu do 9º andar e veio a óbito.

Durante a pandemia ele acompanhava sua mãe Mirtes e sua avó, que trabalhavam como empregadas domésticas (mesmo com COVID-19) e que enquanto sua mãe cumpria a tarefa de passear com o cachorro, sua patroa ao receber os pedidos da criança de encontrar com sua mãe, abandona a criança no elevador a própria sorte e o desfecho foi tráfico.

As vulnerabilidades apresentam a sobreposição de desigualdades que se engasgam no contexto de pandemia e são sufocadas pelas estruturas. É fundamental paradigmas teóricos e metodológicos da tradição feminista negra “promovendo intervenções políticas e letramentos jurídicos sobre quais condições estruturais o racismo, sexismo e violências correlatas se sobrepõem, discriminam e criam encargos singulares às mulheres negras”[48]. Nesse sentido, o projeto não se restringe a essas histórias como situações isoladas, mas sistemáticas da tradição feminizada e racista que margeiam as relações de trabalho doméstico no Brasil.

#FIQUEMECASA E A REPERCUSSÃO NA VIDA DAS MULHERES: COMO A PRODUÇÃO LEGISLATIVA TEM RESPONDIDO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA?

Temos disponível amplos estudos estatísticos e analíticos sobre o tema, exemplos de boas práticas, debates sobre saídas, estratégias que ainda estão em disputa, apesar da existência de leis tão importantes como a Lei Maria da Penha. Dela decorrem uma série de políticas públicas institucionais que demandam dos três poderes posturas ativas no confronto das estruturas patriarcais, racistas e de aprofundamento das desigualdades sociais, pautadas na experiência do sistema-mundo colonial. Melhor dizendo, deveriam.

Motivado pelo aumento de feminicídios que, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública- FBSP[49], cresceu 22% em 12 estados brasileiros nos meses de março e abril. Importante iniciativa vem com o PL 2434/2020 que suspende temporariamente a posse, porte e registro de armas de fogo à denunciados, inquiridos e réus em processo de violência doméstica, procurando diminuir o risco de morte. Vale lembrar que em abril o presidente publicou portaria suspendendo mecanismos de rastreamento, identificação e marcação de armamentos. Dez dias depois publicou outra portaria interministerial nº 1634/2020 onde ampliou em doze vezes o limite para compra de munição.

Outra proposta é do PL 2510/2020 propõe alterar a Lei nº 4.591 (Condomínios em edificações e incorporações imobiliárias), o Código Civil e o Código Penal estabelecendo como de condôminos, locatários, possuidores e síndicos informarem às autoridades competentes os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher que tenham conhecimento serem praticados no condomínio e também aumentar a pena do crime de omissão de socorro.

A majoração de pena está presente no PL 3374/2020 que propõe alteração da Lei Maria da Penha, acrescendo aumento de um terço da pena dos crimes decorrentes de violência doméstica e familiar contra mulheres, crianças, pessoas idosas e deficientes durante o período de calamidade pública.

As notas técnicas do FBSP[50] apontam redução de registros de BO’s e uma diminuição drástica de Medidas Protetivas, uma relação direta com as dificuldades majoradas pela pandemia no que se refere ao acesso à serviços e ao sistema de justiça.

O PL 1291/2020 entende que durante a vigência da Lei n° 13.979/2020 ou durante a declaração de estado de emergência de caráter humanitário e sanitário em território nacional, os serviços e atividades relacionadas relacionados às mulheres em situação de violência doméstica ou familiar, aos casos de suspeita ou confirmação de violência praticada contra idosos, crianças ou adolescentes devem ser essenciais e estabelece a forma de cumprimento de medidas de combate e prevenção à violência.

Nesse mesmo sentido, o PL 1798/2020 propõe que seja permitido, havendo calamidade pública que os registros de ocorrência sobre violência doméstica e familiar contra a mulher, crimes praticados contra crianças, adolescentes e idosos ocorram via internet ou telefone e que a oitiva ocorra em seu domicílio.

Nos chama a atenção duas propostas de projeto com aspecto importante para que muitas mulheres consigam sair de ciclos de violência doméstica e familiar. Levando em conta a invisibilidade da violência patrimonial (assim como a violência psicológica, ambas subrepresentadas nos registros e nas estatísticas e muitas vezes, pela rede e política pública) e de seu papel para a falta de autonomia econômica, o PL 2835/2020 acredita que as regras do auxílio emergencial precisam de alteração para dar prioridade a mulheres. A proposta prevê que havendo conflito de dados entre dependentes, a prioridade deva ser das mulheres para recebimento do benefício.

Outro projeto que também se dedica a especificidade da autonomia econômica é o PL 3456/2020. Este propõe alterar a Lei Maria da Penha para instituir assistência financeira em situação de violência doméstica, desde que comprove dependência econômica do autor de violência.

O PL 3321/2020 propõe dispor de auxílio financeiro pela União às organizações da sociedade civil enquadradas como entidades privadas sem fins lucrativos voltadas ao acolhimento, à defesa e à garantia de direitos das mulheres vítimas de violência doméstica, das crianças e dos adolescentes.

Nesse sentido, a mais recente lei sancionada de Nº 14.022/2020, proposta por várias congressistas, encabeçada pela Deputada Federal Maria do Rosário, trata de violência doméstica durante a pandemia:

  • Centros de Referência, Delegacias, Casas Abrigo, ou seja, os serviços públicos e atividades de atendimento às pessoas vítimas, não podem sofrer interrupções por serem consideradas serviços essenciais. Cabe aos estados e municípios que ofertam os serviços, garantir o atendimento presencial;
  • Registros de ocorrência podem ser realizados por meio eletrônico ou por telefone, assim como pedidos online de medidas protetivas;
  • As medidas protetivas terão seus prazos prorrogados e vigorarão durante a pandemia;
  • No que se refere a demanda processual de violência doméstica, os prazos não serão suspensos;
  • Prioridade para exames de corpo de delito;
  • Na ocorrência dos crimes sexuais, os órgãos devem designar equipes móveis para realização do exames de corpo de delito no local onde se encontra a vítima.

A Lei objetiva protege mulheres, crianças e adolescentes, pessoas idosas e com deficiência. Abre caminho para responder a uma urgência anterior ao COVID-19. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2019), a cada dois minutos há um registro de violência contra a mulher, um aumento de 0,8% dos registros, o infográfico ressalta que foram 263.067 casos de lesão corporal dolosa. Ainda que alto, só no mês de abril houve um aumento de 35% dos casos de violência.

Segundo o FBSP[51] em 2018 foram registrados 66.041 casos de violência sexual, são cento e oitenta estupros registrados por dia, uma média de quatro meninas de até 13 anos estupradas por hora (81,8% das vítimas são meninas e 53,8% tem até 13 anos, 50,9% negras). Um aumento de 4,1% dos casos registrados e nunca é demais lembrar que dado o grau elevado de humilhação e silenciamentos, a expectativa é de que os dados reportem apenas entre 10% a 15% do total de casos[52].

A organização não governamental Gestos lançou em junho campanha especial sobre direitos sexuais e reprodutivos durante a pandemia, divulgando canais de denúncias e mecanismos para acessar serviços de saúde e atendimento a mulheres vítimas de violência sexual.

No que se refere à proteção aos direitos reprodutivos, após levantamento da organização não governamental 19, Revista AzMina e a Gênero e Número, apontam que apenas 55% dos serviços de atendimentos hospitalares para realização de aborto legal[53] estão em funcionamento.

Enquanto isso a política de Estado bolsonarista é marcada pelo recrudescimento de direitos das mulheres, a exemplo da última votação de relatório do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre discriminação contra mulheres e meninas. A limitação de direitos proposta incluía vetar educação sexual, direito à autonomia do corpo e impedir acesso à informação. O Brasil se une a países ultraconservadores como Egito, Paquistão e Arábia Saudita, sugerindo mudanças no texto articulando com lideranças dos países árabes e Rússia se posicionando pela abstenção junto com a Líbia, Congo e Afeganistão. Não há qualquer desconforto em afirmar que este movimento nos informa em alto e bom som a instrumentalização do Estado de ferramentas para controlar a vida e corpos das mulheres.

O PL 1444/2020 foi alvo de fake news, ampla campanha encabeçada pela bancada evangélica na Câmara. O projeto fala sobre medidas emergenciais de proteção à mulher e seus dependentes vítimas de violência doméstica, destinação de recursos que assegurem o funcionamento de serviços tidos como essências a exemplo das casas abrigo e de saúde, após destaque da relatora, foi chamado de “abortista”[54]. Enquanto isso, PL como o de nº 2920/2020 que institui o programa de cooperação chamado código “máscara vermelha” como medida e prevenção à violência doméstica, avança. Autoriza a integração entre Poder Executivo, Judiciário, Ministério Público, Defensoria, órgãos de Segurança Pública e Conselho Federal de Farmácias para que as mulheres possam pedir ajuda nas farmácias, alterando ainda, a Lei Maria da Penha.

Segundo o IPEA, 536 mulheres são agredidas por hora no Brasil e dizemos mais, segundo a ONU Mulheres, de cada 3 mulheres mortas, duas delas foram em casa. Dois outros PLs são de grande relevância, o de nº 2688/2020 que propõe elaboração de plataforma eletrônica para receber, processar informações e encaminhamento aos órgãos competentes as denúncias de vítimas de violência doméstica e familiar. Objetiva maior celeridade de medidas administrativas e judiciais, a exemplo da Medida Protetiva. O segundo PL de nº 1267/2020 pretende que todos os mecanismos de mídia e canais de radiodifusão de som, imagens, programas e notícias descritos na proposta veiculem ampla divulgação da Central de Atendimento à Mulher, o Disque 180.

O Monitor da Violência[55] aponta que em 2019 houve uma diminuição de mortes no Brasil, podendo ser considerada uma redução importante já que se trata de menos 19%. No entanto, houveram 1.314 feminicídios, um aumento de 7,3% dos casos em relação ao ano anterior. Sobre o contexto de pandemia Ferreira e Libório[56] trazem dados publicados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e alertam

Entre março e abril deste ano, os casos de feminicídio cresceram 22% em comparação ao mesmo período do ano passado, em 12 estados brasileiros, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A mesma publicação identificou que as denúncias de violência contra a mulher por telefone aumentaram 17,9% no mesmo período. Com todos os estados brasileiros em quarentena no mês de abril, a procura por esse atendimento no 180 (número para denúncias de violência doméstica do governo federal) cresceu 37,6%.

A rigor, a violência é perpetrada por pessoa do convívio, como dizem os números de feminicídios, de abusos e violências da mesma natureza[57]. Se a casa em tempos “normais” não garante segurança, em contexto de pandemia onde projetamos a maior relevância para enfrentar e controlar a pandemia COVID-19, revela que, permanece um ambiente hostil e inseguro para as mulheres e crianças.

Segundo a organização não governamental Word Vision[58], em estudo publicado em maio, estima que 85 milhões de crianças e adolescentes (2 a 17 anos) poderão se somar às vítimas de violência física, emocional e sexual no lapso temporal de três meses. O estudo cita, inclusive, relatório da Polícia Europeia – Europol que houve um aumento na busca por pornografia envolvendo crianças e adolescentes durante a pandemia. Importa destacar que há uma proposta de Indicação da Câmara, o INC Nº 713/2020 para que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos estabeleça campanha adicional de combate à pedofilia e exploração de criança e adolescentes em caráter de urgência, evitando seu recrudescimento durante a pandemia.

A expectativa na América Latina é de que a pandemia deva aumentar entre 2,9 milhões e 4,6 milhões o número de crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica, um aumento de 20% a 32%. O documento ainda alerta sobre dois desdobramentos da pandemia: o aumento de casamento infantil e a piora da oferta de serviços que objetivem detectar, acolher, enfrentar e coibir a sistemática de violência.

Segundo pesquisa realizada pela Plan International das Américas[59] o Brasil ocupa a quarta posição no ranking internacional de casos de casamento infantil e está entre os cinco países da América Latina com maior incidência de casos. No Brasil o tema é invisibilizado, naturalizado e a certa medida, legalizado. Mas os números apontam que mais de 554 mil meninas de 10 e 17 anos no Brasil estão em união formal ou informal, sendo que mais de 65 mil delas se casam entre 10 e 14 anos.

A designação “casamento infantil, prematuro e forçado” se tornou o termo aceito nos documentos das Nações Unidas para descrever esta prática. O termo infantil se refere aos casamentos e uniões ocorridos antes dos 18 anos de idade – o final da infância, de acordo com a Convenção sobre os Direitos da Criança. Prematuro (em alguns casos aludido como precoce) refere-se ao início de uma vida matrimonial que é problemática para as meninas e adolescentes, posto que concorre, por exemplo, com seu direito à educação. Define-se ainda como forçado para ressaltar as desigualdades estruturais que propiciam esta realidade para meninas no mundo todo, bem como as condições que determinam se constituir um casamento ou união implica realmente uma “escolha” ao levarmos em conta as baixas perspectivas existentes para as meninas, o trabalho doméstico e o controle a que são submetidas em seus lares de origem e o compromisso limitado com sua educação por parte de suas famílias [60]


Se há condescendência em tempos tidos como normais, o casamento precoce de meninas e adolescentes como mecanismo de redução dos gastos ou meio de obter renda ou empréstimo, é uma preocupação. A ausência do estado impacta diretamente na vida de crianças, adolescentes e mulheres no Brasil, impacta nas famílias que em nada lembram a imaginada composição e arranjo colonial patriarcal.

Como fortemente destacados em vários projetos de Lei, há uma piora na oferta de serviços públicos que ajudem a detectar e prevenir a violência ou assegurar o atendimento adequado. Se antes da pandemia haviam lacunas estruturais nas políticas públicas, poucos investimentos[61] estruturais e de formação, precarizando os poucos instrumentos disponíveis, na pandemia, na medida em que os equipamentos são mais fragilizados, aprofunda o cenário de vulnerabilidade das pessoas que dele dependem.

Importa levarmos em conta que os efeitos residuais da pandemia perdurarão em torno de dois anos no que se refere ao aspecto econômico e que o impacto na vida de crianças e adolescentes poderão ser sentidos, segundo o mesmo estudo, durante uma década. E preocupa projetos como o PL 3196/2020 que pretende criar o Programa Universal de Proteção Infantil que resume proteção à infância a benefício[62], sem vincular a nenhuma outra obrigatoriedade por parte do Estado como por exemplo, programa existente de educação, aumento de creches e/ou escola de primeira infância.

Quando funcionam, a despeito de incapacidades, despreparo e falta de estrutura, formação e qualificação, têm impactos importantes no resultado direto na preservação da vida e restauração de dignidade e de liberdade. Cada instrumento e instituição estruturada pelo Estado que tenha como objetivo compor a rede de enfrentamento e/ou acolhimento de mulheres e crianças vítimas de violência são importantes, fruto de reivindicação e acúmulos de luta social que a todo tempo está ameaçada de esvaziamento e desmonte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A organização e gestão sobre a vida pelo Estado não é tema novo, merecendo ampla atenção das ciências sociais. Em uma perspectiva de promoção das condições em que as políticas públicas nesse sentido operam, inclusive pela alquimia geralmente não considerada pela democracia liberal, o debate está presente também na pauta dos movimentos populares, e das causas identitárias a partir das denúncias sobre quem está vivendo e quem está morrendo há 520 anos e como isso se relaciona com as mortes e precariedades durante a pandemia de agora.

A partir dessa indispensável especificidade histórica e da constituição de redes de sentidos padrão de poder global, a pandemia revela o outro lado da ilustração, localizando-o em uma gramática que convida a abandonar a verdade universal como centro replicado nas instâncias da vida. Logo, é possível entender que o projeto de modernidade atualiza no tempo e no espaço a colonialidade do poder, do ser e do saber[63], que por sua vez, influem na moldura de valores que definem liberdade, igualdade, democracia, direitos humanos.

Mapear os projetos descritos aqui demonstra que o assunto não arrefece, mas em todo caso, aloca nas fronteiras dos debates centrais, se utilizarmos o critério de situação de tramitação para compará-los, se percebe a ofensiva neoliberal de desobrigação do Estado para com as pessoas em detrimento do fortalecimento de suas alianças e projetos de poder. Se nos grandes centros há desigualdades no acesso à política pública com gradações entre centro e periferia, é ensurdecedor o silêncio das atividades legislativas para povos originários e tradicionais. E quando chega, ofertar um modelo de política e política pública que não entende as especificidades e dificuldade.

Parte das implicações podem ser sentidas no impacto do COVID-19. No tocante aos povos originários, seus desafios passam por sua pouca exposição ao contato biológico com patógenos como a comunidade não-indígena, acompanhada de invasões, conflitos fundiários, exploração forçada de minérios em território sob forte violência. Anciãos guardam línguas, histórias e tradições, as crianças são semente de amanhã, ambos são os mais atingidos e nem em suas mortes são respeitados como pessoas e como detentores de cultura legítima. Foi o caso de Roraima, onde as mães Yanomamis reivindicavam os corpos de seus bebês e passaram mais de um mês sem informação. Após forte mobilização nacional, foi designada uma força tarefa. E se quer tocamos nas demandas específicas para mulheres.

Ou seja, não bastando a devastação resultante do adoecimento e morte por COVID-19, há genocídio de cidadania também nos centros de poder, dentre eles Congresso Nacional. Os centros de poder político são ambientes de fortes disputas estratégicas que articulam necessidade de mandatos e entre mandatos, recurso recorrente para fortalecimento de projetos e disputá-los no longo e burocrático processo de tramitação.

Embora sejamos maioria populacional no Brasil, a representação no Congresso não é proporcional. Os atuais 15% falam do aumento de mulheres, parte delas em mandatas engajadas politicamente ocupando o Congresso. Ainda que sejam alvos constantes de violência política de cunho sexista e racista[64], vale ressaltar o protagonismo da Frente Parlamentar Antirracista e da Bancada de Mulheres na feitura de projetos. Essas têm ação majoritária em comissões na área de cuidado e buscam se articular para driblar as dificuldades em protagonizar espaços de decisão em um ambiente de poder, tanto o Congresso quanto os partidos, que reproduzem em muitas medidas, a divisão sexual do trabalho e o racismo estrutural.

A pandemia global desencadeada pela COVID-19 escancarou opressões estruturais denunciadas nas pautas de movimentos e organiza ativismo feministas em torno desses direitos. A presença de mulheres na disputa pelo poder político pode reverberar em produções legislativas que contemplem o perfil não-hegemônico de mulher, confrontando saídas liberais para assuntos e contextos de violências estruturais.

Assim, o acúmulo dos debates sobre inseparabilidade dos espaços públicos e domésticos, caracterizados como políticos, constroem no agora as condições para um outro normal, as mulheres se consolidam como atrizes sociais dinâmicas e multidimensionais em suas denúncias e articulações das diversas formas de opressão, protagonizando o agir coletivo.

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