IGUALDADE E DIFERENÇA: SUBALTERNIDADE, SILENCIAMENTO E EXPLORAÇÃO DO FEMININO EM TEMPOS DE PANDEMIA
IGUALDADE E DIFERENÇA: SUBALTERNIDADE, SILENCIAMENTO E EXPLORAÇÃO DO FEMININO EM TEMPOS DE PANDEMIA
Bianca Pazzini[1]
Raquel Fabiana Lopes Sparemberger [2]
As atuais contingências sociais decorrentes do agravamento da pandemia permitem aferir que, antes de uma crise sanitária, vive-se, enquanto sociedade, uma crise de valor. Não por coincidência o vírus nasce por questões comerciais, não por coincidência ele ultrapassa fronteiras pelo trânsito de cidadãos de classe média alta e, tampouco por coincidência o seu índice de mortalidade é maior nas periferias e favelas das grandes cidades.
As desigualdades de classe são contundentes na sociedade contemporânea, e, de maneira latente, permeadas e agravadas pelas desigualdades de raça e gênero. Este último enfoque, embora menos difundido nas discussões destes últimos meses em que a crise se agrava, não parece, porém, menos contundente que os demais, pelo que se mostra indispensável também trazê-lo às discussões em âmbito acadêmico.
Nesse sentido, a presente pesquisa analisa de que modo a desigualdade entre homens e mulheres se manifesta neste período de pandemia, e em que medida a crise sanitária colabora com o agravamento ou o delineamento das relações de gênero.
Para a realização da presente pesquisa utilizar-se-á, como método geral de pesquisa, o analético, uma vez que tal método, proposto por Enrique Dussel[3], propõe a análise “não neutra” do objeto de pesquisa, desde a perspectiva epistemológica do “outro”, historicamente dominado, oprimido ou subalternizado nas relações sociais. Desconstrói-se, assim, a tradicional unicidade discursiva de reprodução das narrativas dos vencedores (dominantes e opressores), a fim de que se permita a construção do conhecimento a partir dos saberes dos indivíduos até então silenciados e marginalizados. É a analética a metodologia da periferia, que neste caso, não é geográfica, mas de gênero.
Quanto aos procedimentos, trata-se de pesquisa bibliográfica e documental, com análise de relatórios e dados que evidenciam a hipótese de pesquisa, que, por sua vez, diz respeito ao agravamento das condições de desigualdade de gênero pela exploração, sobrecarga e silenciamento das mulheres trabalhadoras em tempos de pandemia.
GLOBALIZAÇÃO E CRISE SANITÁRIA: A NOVA REALIDADE TOTALITÁRIA INAUGURADA PELA COVID-19[4]
Os processos globalizantes da sociedade capitalista contemporânea – pós-moderna ou transmoderna[5] – impõem diversos desafios nas tentativas de compreensão do mundo e de melhoria das condições de vida das pessoas que habitam o globo. Múltiplas são as globalizações na sociedade fragmentada, desigual e controversa em que atualmente vivemos.
Paradoxalmente, a globalização[6] impõe-se, no mais das vezes, como uma realidade abissal, unívoca e totalizante, marcada por um processo de expansão e uniformização da economia que afeta todos os países do globo. Tal como a conhecemos, aprofunda-se após o término da Guerra Fria[7], com os consequentes (1) desaparecimento da “geopolítica da bipolaridade” e (2) ascensão da hegemonia econômica cultural e política norte-americana[8]. Desde então, a globalização atinge, inexoravelmente, a todos os países do globo, ainda que com intensidade e graus diversos. Molda as noções sociopolíticas de tempo e espaço, e almeja um novo entendimento do que é ser “global” e ser “local” no mundo atual.
Esse fenômeno que entende-se como globalização hoje, porém, tem raízes históricas no processo que se iniciou com a conquista das Américas e a expansão dominadora do Ocidente europeu sobre o planeta. A primeira mundialização, ocorrida no princípio do Século XVI, como se sabe, é a globalização dos micro-organismos, porque os micro-organismos europeus chegaram, em larga escala, às Américas ao longo dos anos – desenvolvidos em forma de tuberculose e outras enfermidades. Junto com as barbáries perpetradas pelas “conquistas” (de Hernán Cortez, Pedro Álvares Cabral e outros), tal mundialização dizimou as populações indígenas nas Américas. Ademais, os micro-organismos americanos – como os da sífilis –, chegaram à Europa. Esta é a primeira unificação mundial danosa para todos[9].
De maneira peculiar, a sociedade contemporânea é abatida por uma nova (não a única, nem a maior, neste ínterim, mas certamente assumindo proporções históricas) globalização nociva de micro-organismos. Esta globalização – a da crise sanitária – é, a exemplo do fenômeno da globalização do capital dos últimos séculos, provocativa de uma ruptura no modo de ser, de agir e de pensar dos indivíduos, frente à realidade global e à cultura transnacional em relação à realidade (além de capitalista, agora pandêmica) que se vive. A globalização hegemônica que já era conhecida, adicionada à da pandemia de Covid-19 refletem, nesse momento da história, as mazelas sociais que atingem as várias partes do globo.
Na medida em que a crise pandêmica se acentua, realidades e conceitos estabelecidos se transformam, surgindo assim muitas dúvidas e questionamentos relacionados a um mundo extremamente complexo e de difícil entendimento. Tudo acontece rápido demais, os indivíduos não conseguem acompanhar e tampouco compreender o acelerado desenvolvimento das ciências, da tecnologia, da comunicação e da informação. Fenômenos contraditórios são evidenciados: a latente sensação generalizada de incerteza e temor quanto ao futuro concorrem com uma maciça ignorância acerca do que acontece para além das paredes do isolamento social de cada habitação.
Seja como for, a Covid-19 desencadeia uma crise global e sanitária, que inclui a degradação das relações sociais, das relações de trabalho, da identidade, do meio ambiente, afetando significativamente o íntimo da vida humana, e também o modo de vida das mulheres. Com a crise sanitária, as relações humanas ficaram mais distantes, superficiais e artificiais. Ou seja, há uma ruptura dos laços humanos, atingindo de forma significativa a família, as relações de trabalho, o indivíduo e a vida das mulheres.
Vive-se, assim, uma crise existencial, que leva à solidão, à depressão ou à busca desenfreada de sensações voláteis e perigosas. A resposta ao crescimento dessa desordem é a formulação de um paradigma pluralista visando recompor o “homem em migalhas”, e, assegurar o convívio de uma pluralidade de formas de vida econômica e social. Por certo que muitos são os excluídos e dominados, sendo, portanto, necessário um resgate da subjetividade, com a libertação desses excluídos e a rejeição da dominação, esse talvez possa ser um caminho na construção de uma sociedade mais digna sem tanta exclusão.
Nesse momento em que se vive a crise sanitária, as injustiças frente às diferenças tornaram-se mais visíveis. A desigualdade e a opressão, as maiores de todas as injustiças, restam ainda mais latentes em um contexto como esse. Nenhuma mazela social, econômica ou sanitária é linear ou “democrática”: todas tendem a evidenciar (e agravar) as desigualdades materiais marcadas pelas facetas de classe, raça e gênero.
Segundo Hallal (2020), “epidemias não afetam igualitariamente as diferentes populações. Basta analisar o perfil social daqueles mais afetados por tuberculose no Brasil ou comparar as diferenças de prevalência e mortalidade por Aids entre Europa e África”. Mais que isso, no caso da atual Covid-19, a “possibilidade de permanecer vários dias sem sair de casa é muito desigual entre empresários e trabalhadores, ricos e pobres, executivos e operários. A desigualdade é impulsionada pela negação do Estado em promover renda digna, que protegeria os mais vulneráveis”[10].
A questão da desigualdade de gênero, a ser analisada, é latente. As mulheres, que normalmente já vivem em uma sociedade marcada pelo preconceito e pela falta de oportunidades, padecem ainda mais na atual conjuntura, tanto no campo de trabalho quanto nos campos social, político e histórico. Resta evidenciada a subalternização da mulher, que permanece à margem da sociedade de que faz parte.
O GÊNERO FEMININO, A SUBALTERNIDADE E A EXPLORAÇÃO DA MULHER NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
A despeito de certa popularização do tema nas últimas décadas, o conceito de gênero é ainda pouco conhecido e difundido corretamente. Socialmente, gênero é entendido como algo predeterminado no momento do nascimento do indivíduo: mulher ou homem (feminino ou masculino). Segundo Simone de Beauvoir, na obra O Segundo Sexo, contudo, a construção do que é ser mulher dá-se pela consolidação cultural em torno desta compreensão, o que leva a evidenciar que “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é, antes, o produto cultural da civilização que elabora essa concepção, colocando-a como algo intermediário entre o macho e o castrado, qualificando assim o que se entende por ‘feminino’”[11].
O que se pode depreender da célebre frase de Beauvoir é que o simples fato de uma pessoa ter nascido (biologicamente) mulher ou homem não definirá o seu gênero. Trata-se de uma construção social e de uma identificação com certas características que são atribuídas pela sociedade de forma binária: feminino ou masculino.
O conceito de feminino, assim, nasce à luz da lógica monocultural de classificação social[12] de masculino, desconsiderando a existência, em si mesma, da ideia de feminino. Produz-se, assim, uma inferioridade, cuja superação é impossibilitada porque naturalizada na convivência social: “Quem é inferior, porque é insuperavelmente inferior, não pode ser uma alternativa credível a quem é superior”[13].
Por muito tempo a ideia da supremacia física e intelectual do homem foi utilizada para subjugar as mulheres. Nesse sentido segundo Carole Pateman[14]:
Desde o século XVII, as feministas têm argumentado que é a falta de educação que faz com que as mulheres pareçam menos capazes. A habilidade aparentemente maior dos homens é resultado da educação deficiente das mulheres e da artimanha social (dos homens), não da natureza. Se ambos os sexos recebessem a mesma educação e tivessem as mesmas oportunidades para exercerem seus talentos, não existiriam diferenças políticas significativas nas habilidades das mulheres e dos homens.
Desde a infância as meninas são educadas para manifestarem-se de forma passiva, o que é entendido socialmente como um traço da personalidade da mulher feminina. Contudo não é correto afirmar que esse é um dado biológico, pois trata-se de uma imposição familiar e social[15].
Esta lógica é responsável por definir quem ou o que é dominante ou subalterno, quem tem voz e vez, que direitos lhes são atribuídos, dentro de padrões coloniais que seguem privilegiados nos discursos científicos, incluindo os discursos jurídicos e sobre gênero, caracterizados pela objetividade e reprodução, aceitos de forma geral, posto que revestidos de pressupostos de validade e verdade constituídas a partir de máximas universais[16]. Segundo a autora, a condição de subalternidade é a do silêncio, ou seja, o subalterno[17] carece necessariamente de um representante por sua própria condição de silenciado. Por um lado, observa-se a divisão internacional entre a sociedade capitalista regida pela lei imperialista e, por outro, a impossibilidade de representação daqueles que estão à margem ou em centros silenciados[18].
Pode-se afirmar que a formação, e formatação do sujeito mulher, visa desencorajar esse grupo de se manifestar de maneira livre na sociedade. Frisa-se a necessidade de o gênero feminino estar sempre vinculado e dependente à uma figura masculina, a fim de obter maior respeitabilidade e aceitação social.
O papel da mulher na sociedade patriarcal é muito bem definido. Está ligado diretamente ao espaço privado, ao cuidado da prole e do marido. As mulheres passam a ter mais valor à medida em que casam e têm filhos, abdicando, muitas vezes, de sua vida profissional e dedicando-se integralmente à família.
No Brasil, esse perfil da subalternização pelo casamento é ainda mais grave, haja vista que 11% das mulheres se casam em idade inferior a 13 anos e 30% se casam em idade entre 13 e 18 anos, o que demonstra que 41% das mulheres brasileiras casam-se enquanto ainda menores de idade, e por razões que evidenciam essa relação de subalternidade em função do gênero[19].
A escritora e feminista nigeriana Chimamanda Adichie[20], assevera que “Quando as mulheres dizem que tomaram determinada atitude para “ter paz no casamento”, é porque em geral desistiram de um emprego, de um passo na carreira, de um sonho. Ensinamos que, nos relacionamentos, é a mulher que deve abrir mão das coisas”. Segundo Oliveira[21]:
A cultura patriarcal organiza a vida da mulher a partir da vivência de uma sexualidade destinada para o outro, como cidadã, como fiel, como mãe ou como prostituta, categorias aprofundadas de acordo com os necessários recortes culturais, que permitem a contextualização das opressões patriarcais – ou seja, permite a compreensão de quais os círculos e quais os cativeiros nos quais mulher está inserida. Nesse sentido, a história de qualquer sociedade conhecida e tradicional demonstra que os primeiros escravos foram as mulheres de grupos conquistados, o que precede a formação e a opressão de classe, e permite, por exemplo, compreender a múltipla exploração das mulheres negras, como trabalhadoras, como prestadoras de serviços sexuais e como reprodutoras.
Os padrões determinados socialmente para que os indivíduos se enquadrem em determinado gênero vêm modificando-se com o passar dos anos. Atualmente encontra-se muitas mulheres (gênero feminino) assumindo papéis que há algumas décadas eram destinados apenas aos homens. O acesso das mulheres ao ensino e a inserção no mercado de trabalho de modelo capitalista sobretudo no contexto pós-Primeira Guerra Mundial[22] possibilitou que elas se tornassem protagonistas de suas próprias vidas e, portanto, começassem a atuar nas mais diversas áreas profissionais. A mulher saiu, definitivamente, do espaço que lhe era reservado na esfera privada para atuar, também, na esfera pública, alcançando o status de cidadã, que sempre foi concedido ao homem.
Tais fatores, contudo, não colocaram a mulher em condição de igualdade material em relação aos homens. Em alguma medida, a desigualdade pode ser vista como acentuada à medida que as mulheres, neste momento contemporâneo da civilização ocidental, sobrecarregam-se com as demandas da sociedade de capital sem desonerarem-se dos afazes relativos aos cuidados com a casa, a família, filhos, marido etc. Estima-se que as mulheres, no Brasil, gastam, em média, 27 horas de sua semana com cuidados domésticos, em relação à média de 10 horas semanais dos homens[23].
Notadamente, essa condição de dupla (ou às vezes, tripla) jornada que é imposta às mulheres faz com que elas sejam obrigadas a aceitar, em alguns casos, trabalhos mais precários, salários mais baixos e estejam muito mais sujeitas aos espaços de informalidade laboral.
Percebe-se que nas últimas décadas as mulheres tiveram que produzir novas visões de mundo, tiveram que gerir condições de vida para si e para suas famílias, sobrecarregando-se para dar conta das atividades que a elas são impostas, o que pode ser. Para que as mulheres atinjam posições sociais análogas às dos homens, devem dar conta de um número muito maior de atividades e ainda vencer os preconceitos de gênero a que tradicionalmente já estariam submetidas pelo só fato de serem mulheres.
Assim, na relação entre trabalho e capital, as mulheres constituem uma parcela da força de trabalho que sofre dupla sujeição: ao Homem e ao Capital[24]. Assim, quando as mulheres viram no horizonte a possibilidade de ocuparem os mesmos postos de trabalho que os homens, tiveram vitórias, mas limitadas apenas à assunção de obrigações para si mesmas, sem dividir com o gênero masculino aquelas obrigações que já lhes incumbiam por tradição social.
A VULNERABILIDADE DA MULHER EVIDENCIADA E AGRAVADA NA PANDEMIA: EFEITOS DIRETOS DA COVID-19 SOBRE AS TRABALHADORAS BRASILEIRAS
Com o advento da crise sanitária da Covid-19, tem-se evidenciada a referida condição de subalternidade da mulher, que, já responsável pelo cuidado da família, teve que assumi-lo de maneira ainda mais contundente. Os filhos, com educação à distância, devem ser cuidados em casa ao mesmo tempo em que o trabalho remunerado é desempenhado em formato de home office. Nos grupos de mensagens trocadas e nas redes sociais, são as mães – e apenas elas, não os pais – que recebem ideias de atividades lúdicas a serem desempenhadas com os filhos enquanto vigentes os efeitos do isolamento social.
Na questão do trabalho o cenário pode ser ainda mais trágico para as mulheres. Para aquelas que não tem condição de trabalho formal, há grande supressão das possibilidades de exercício das atividades informais, haja vista as medidas de isolamento social. Segundo dados produzidos recentemente pelo Instituto Locomotiva, pelo menos 92% das mulheres entrevistadas informam que a alimentação da família será prejudicada após um mês de isolamento social para contenção do avanço da Covid-19. Estima-se a existência, no Brasil, de mais de cinco milhões de mães vivendo em mais de 260 comunidades nas maiores cidades do país. Ainda, 73% das entrevistadas informam a ausência de qualquer poupança ou valor resguardado para casos de emergência. Ainda, 80% informaram ter perdido renda já nas primeiras semanas (março e abril de 2020) de efeitos do isolamento social[25].
Das 11,6 milhões de famílias chefiadas exclusivamente por mães de filhos de até 14 anos no Brasil, 55% vive com menos de R$ 10,00 (dez reais) por pessoa por dia, elevando-se este percentual para 63% quando se trata de famílias chefiadas por mulheres pardas e pretas[26].
No caso das trabalhadoras domésticas, que são cerca de 6 milhões no Brasil e representam cerca de 15% das trabalhadoras ocupadas (10% das brancas e 18,6% das negras), a orientação geral do Ministério Público do Trabalho (MPT) é que tais trabalhadoras sejam dispensadas do trabalho com a garantia da manutenção da remuneração, como as demais categorias consideradas não essenciais[27]. Ocorre que, na prática, tal recomendação não garante a manutenção das condições de sustento dessas mulheres, haja vista que, conforme os dados fornecidos pela mesma instituição – MPT – mais de 70% das trabalhadoras domésticas não tem situação regular de trabalho formalizada, o que dificulta (quando não inviabiliza) seu acesso à direitos trabalhistas e previdenciários, como seguro-desemprego caso sejam demitidas ou auxílio-doença caso sejam infectadas e precisem se afastar do trabalho. Caso mantidas trabalhando, a vulnerabilidade é evidenciada pela superexposição à contaminação: em seus locais de trabalho, lidam de maneira corporal com o convívio da família que lhe emprega, expondo a si mesmas e, por consequência, os indivíduos que coabitam (que, com parcas condições de sustento, têm acesso precário a tratamento de saúde e assim por diante; a vulnerabilidade de desenvolve de maneira geométrica[28]).
É cristalino que o atual contexto sanitário apenas acentua o que estruturalmente já está evidenciado: as mulheres trabalham mais (porque conciliam suas jornadas entre atividades laborais para sustento econômico da família e, na maioria dos casos, arcam exclusivamente com a responsabilidade de cuidar da família – crianças, outros adultos e idosos).
De acordo com Boaventura de Sousa Santos:
Poderia imaginar-se que, havendo mais braços em casa durante a quarentena, as tarefas poderiam ser mais distribuídas. Suspeito que assim não será em face do machismo que impera e quiçá se reforça em momentos de crise e de confinamento familiar. Com as crianças e outros familiares em casa durante 24 horas, o stress será maior e certamente recairá mais nas mulheres[29].
Na atual conjuntura, vê-se, as mulheres têm essa condição agravada, pois o trabalho passa a ser, de maneira mais delineada, algo permanente, a ser exercido dentro de casa e de maneira permanente – ainda que distintas as classes sociais –, entre atividades que, quando exercidas, geram a manutenção financeira da família, e outras como cuidar da casa, cuidar dos filhos – que não estão indo à escola –, auxiliar seus filhos nos afazeres escolares, cuidar dos idosos – que, em sua maioria, requerem cuidado redobrado haja vista a existência da chamada “população de risco” quanto ao vírus –, sem contar, no presente estudo, as questões relativas ao notório crescimento da violência de gênero como decorrência do isolamento social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A atual crise sanitária de viés pandêmico em que estamos inseridos – cujos efeitos são devastadores em todos países do globo – tem sido perversamente pedagógica, à medida que não apenas demonstra, mas acentua as disparidades entre as mais diversas camadas da população. Aos vulneráveis é dada uma ainda maior carga de vulnerabilidade, que perdem as já escassas fontes de renda, têm dificultado ainda mais o acesso aos sistemas públicos de saúde e, por consequência, infectam-se e morrem em números mais elevados. Ademais, via de regra, o vírus ingressou nos países por meio das populações de mais alta renda, que se infectaram em viagens ao exterior.
No caso da vulnerabilidade de gênero, como resultado de uma lógica de subalternidade, as mulheres sofrem as consequências de maneira mais contundente que os homens, haja vista as responsabilidades que já levam consigo em tempo de “normalidade”: a de sustento de suas famílias combinadas com os cuidados da casa e da família.
Ocorre que, na pandemia, tais questões restaram ainda mais delineadas, haja vista a perda contundente de acesso aos postos de trabalho – formais ou informais – bem como o aumento das demandas decorrentes dos membros da família e da casa. A vulnerabilidade é acentuada, assim, pela crise das condições de trabalho somada à sobrecarga pessoal. A esfera pública e a esfera privada encontram-se para potencializar as dificuldades enfrentadas pelas mulheres.
Nessa tessitura, os programas de distribuição de renda são fundamentais para dar acesso à alimentação e a uma sobrevivência minimamente digna enquanto perdurarem os efeitos da pandemia, mas, pelo que é possível perceber, não resolvem o problema estrutural de inferiorização social da mulher e de desigualdade de gênero. Para que isso seja enfrentado, é necessário um rompimento com os círculos viciosos de desigualdade, que mantêm as mulheres nos piores postos de trabalho e com as piores remunerações ante sua obrigação “precípua” de manter os cuidados da casa e da família e, simultaneamente, relegando à mulher a condição de cuidadora da família por serem as suas condições de trabalho piores que as dos homens. É necessário, assim, que o Estado assuma seu papel – ativo – de redução da desigualdade, criando políticas públicas para mudança das condições materiais de vida das mulheres. Ou estará, em sua omissão, fazendo uma distinção misógina entre seus cidadãos.
[1] Mestra em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Possui Graduação em Direito pela Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). Professora da Graduação em Direito e de cursos de a Especialização da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP/RS). E-mail: biancapazzini@gmail.com.
[2] Pós-doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela UFPR. Possui Graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Professora do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Professora da Graduação e do Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP/RS). E-mail: fabiana7778@hotmail.com.
[3] DUSSEL, Enrique. Método para uma Filosofia da Libertação. São Paulo: Edições Loyola, 1986.
[4] Covid-19 (Coronavírus Disease 2019) é a sigla utilizada para designar a doença provocada pelo coronavírus, SARS-CoV 2, encontrado pela primeira vez em seres humanos no ano de 2019. Até a data do fechamento do presente texto, 20 de julho de 2020. a Covid-19 já havia infectado mais de 14 milhões de pessoas em todo o mundo, provocando a morte de cerca de 600 mil pessoas. TEIXEIRA, João Paulo Allain; SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes. Da sociedade do cansaço à sociedade da vigilância: entre utopias e distopias, o direito à privacidade no contexto pós-pandemia. In. MELO, Ezilda, BORGES, Lize, et. al. (Coord.) Covid 19 e direito brasileiro: mudanças e impactos. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2202, p. 36.
WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Coronavirus Disease (COVID-19) Dashboard. Disponível em: https://covid19. who.int/. Acesso em: 20 jul. 2020.
[5] Luis Alberto Warat utiliza o termo “transmodernidade” em sentido análogo ao de pós-modernidade, entendendo-as como /a fase contemporânea do “capitalismo em sua nova fase de ‘barbárie informatizada’”, que decompõe o político, destrói as formas naturais de sociabilidade e aniquila as identidades e os afetos comuns. WARAT, Luis Alberto. O Futuro de Dinossauro: ou a hiper-realização da história. Seqüência. UFSC, Florianópolis, v. 12, n. 23, p. 25-37, 1991.
[6] Em seu sentido triunfante, entende-se como globalização, segundo Boaventura de Sousa Santos, “xal e que, como feixes de relações sociais, envolvem conflitos, vencedores e vencidos”. Inobstante, frequentemente “o discurso sobre globalização é a história dos vencedores”. SANTOS, Boaventura de Sousa. Direitos Humanos: o desafio da interculturalidade. Revista de Direitos Humanos.”, v. 02, jun./2009, p. 11-18.
[7] Combinada com a queda do muro de Berlim, o esfacelamento da URSS, o bloqueio econômico à Cuba, “enfim, a derrubada de muitos modelos que [apesar de imperfeitos, frise-se] animavam a esperança dos povos para se libertar de sua miséria”. DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 15.
[8] Os Estados Unidos não exercem, sozinhos, os poderes impostos e decorrentes de sua globalização: têm a companhia e o apoio dos países desenvolvidos ou pertencentes ao chamado Norte Global, tais como Japão, Alemanha, França, a própria Rússia e, mais recentemente, também a China. AZEVEDO, Plauto Farado de. Neoliberalismo: desmonte do Estado Social. Porto Alegre: Libretos, 2018. p. 164-165.
[9] MORIN, Edgar. As duas globalizações: complexidade e comunicação. In: SILVA, Juremir Machado da. Uma Pedagogia do Presente. 3. ed. Porto Alegre: Sulinas, EDIPUCRS. 2001. p. 39-40.
[10] HALLAL, Ronaldo. Covid-19: uma epidemia que não é democrática em um mundo desigual. Publicado em 29 de abril de 2020. Sul 21. Disponível em: https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2020/04/covid-19-uma-epidemia-que-nao-e-democratica-em-um-mundo-desigual-por-ronald-hallal/. Acesso em: 10 jul. 2020.
[11] BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: a experiência vivida. Volume 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 11.
[12] A monocultura é definida como o cânone padrão considerado como o único ou principal existente em uma sociedade. A classificação social, por sua vez, consiste na distribuição das populações por categorias que naturalizam hierarquias. Fora do cânone não há o que exista: tudo decorre dele. No caso, percebe-se a construção do feminino à luz do masculino, permanecendo marginalizado ou inferiorizado por ele. SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma Sociologia das Ausências e uma Sociologia das Emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 63, out./2002, p. 237-280. Disponível em: http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/ Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF. Acesso em: 13 jul. 2020.
[13] SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma Sociologia das Ausências e uma Sociologia das Emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 63, out./2002, p. 248. Disponível em: http://www.boaventuradesousasantos.pt/ media/pdfs/ Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF. Acesso em: 13 jul. 2020.
[14] PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993 (1988). p. 144.
[15] BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: a experiência vivida. Volume 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 24.
[16] SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes. Desafios coloniais e interculturais: o conhecimento jurídico colonial e o subalterno silenciado. Revista Contribuiciones a las ciências sociales, 2003.Disponivel em: http://www.eumed.net/rev/cccss/24/colonialidade.html. Acesso: junho de 2020.
[17] Segundo Eloise Damázio, o “termo ‘subalterno’ foi utilizado inicialmente por Gramsci (2002), para referir-se as classes subalternas, especialmente ao proletariado rural. Já os Subaltern Studies modificaram o significado de subalterno, ele é considerado como um sujeito histórico que responde também as categorias gênero e etnicidade, não apenas de classe. Nesse sentido, o conceito ‘subalterno’ é utilizado a partir da diferença colonial. O subalterno é identificado como o colonizado, ou com o sujeito colonial, não se trata de um ser passivo, um sujeito ausente, mas um sujeito ativo”. COLAÇO, Thais Luzia; DAMÁZIO, Eloise da Silveira Petter. Novas Perspectivas para a Antropologia Jurídica na América Latina: o direito e o pensamento decolonial. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012. p. 114.
[18] PIVAK, Gayatri. Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010. p. 14.
[19] Fatores motivadores para o casamento na infância: (1) gravidez; (2) desejo de controlar a sexualidade das meninas e limitar comportamentos percebidos como ‘de risco’; (3) dependência econômica dos homens; (4) como expressão da falta de oportunidade das meninas; e (5) como resultado das preferências e do poder dos homens adultos. TAYLOR, Alice; LAURO, Giovanna; SEGUNDO, Márcio; GREENE, Margaret. Ela vai no meu barco: casamento na infância e adolescência no Brasil. Resultados de Pesquisa de Método Misto. Rio de Janeiro e Washington DC: Instituto Promundo & Promundo, 2015. Disponível em: http://www.crianca.mppr.mp.br/2017/ 10/12783,37/. Acesso em: 20 jul. 2020.
[20] ADICHIE, Chimamanda Ngozi, Sejamos Todos Feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 34.
[21] OLIVEIRA, Camila Belinaso de. A Mulher em Situação de Cárcere: uma análise à luz da criminologia feminista ao papel social da mulher condicionado pelo patriarcado. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2017. p. 29.
[22] Frise-se, contudo, que a mulher “das camadas sociais diretamente ocupadas na produção de bens e serviços nunca foi alheia ao trabalho”, mesmo nas sociedades pré-capitalistas. Nos campos, nas manufaturas, no comércio e em quaisquer atividades de circulação de riquezas, as mulheres sempre conciliaram as atividades de natureza econômica com os afazeres do lar, sem deixar de serem responsáveis pelos cuidados para com a família. SAFFIOTI, Heleith. A Mulher na Sociedade de Classes: mito e realidade. Petrópolis: Vozes, 1976. p. 27-28.
[23] BRUSCHINI, Maria Cristina Aranha. Trabalho e Gênero no Brasil nos Últimos Dez Anos. Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, set./dez. 2007. p. 537-572. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/cp/v37n132/ a0337132.pdf. Acesso em: 14 jul. 2020.
[24] BRUSCHINI, Cristina. Trabalho Feminino: trajetória de um tema, perspectivas para o futuro. Estudos Feministas, v. 17, n. 1, 1994. p. 17-37.
[25] GUIMARÃES, Lígia. Coronavírus: 92% das mães nas favelas dizem que faltará comida após um mês de isolamento, aponta pesquisa. BBC News, São Paulo, 2 abr. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52131989. Acesso em: 18. jul. 2020.
[26] INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça – 1995 a 2005. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs… desigualdades_de_genero_raca.pdf. Acesso em: 19 jul. 2020