O SUS E A SAÚDE SEXUAL E REPRODUTIVA DAS MULHERES BRASILEIRAS EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS
O SUS E A SAÚDE SEXUAL E REPRODUTIVA DAS MULHERES BRASILEIRAS EM TEMPOS DE CORONAVIRUS
Daniela da Silva Baumgarten[2]
Flavia Verena Nascimento Santana[3]
A saúde da mulher está incluída nas políticas de saúde do Brasil desde as primeiras décadas do século XX. Nesta época, no entanto, a visão a respeito da mulher era pautada apenas em seu aspecto biológico e no seu papel social de mãe e progenitora. Essa visão refletia diretamente nos serviços de saúde ofertados, que se limitavam aos programas materno-infantis voltados para a assistência às mulheres em seu período de gestação e parto[4].
Na década de 80, no âmbito do movimento feminista brasileiro, esses programas foram fortemente criticados por ofertarem às mulheres acesso a alguns cuidados de saúde apenas durante o ciclo gravídico-puerperal, deixando-as sem assistência na maior parte do seu ciclo vital. Nesse contexto, destaca-se a importância do movimento de mulheres não apenas em expor as desigualdades nas condições de vida e relações entre os sexos, mas também em denunciar o quanto essas diferenças causavam problemas de saúde que afetavam de forma particular a população feminina. Com forte atuação no campo da saúde, o movimento foi além de propor mudanças nas relações sociais entre homens e mulheres e reivindicou também a elaboração, execução e avaliação de políticas públicas voltadas para a saúde da mulher4, [5].
Nesse contexto em que as mulheres passaram a exigir o reconhecimento de sua condição de sujeitos de direito, com necessidades que vão além do momento da gestação e parto, foi lançado, pelo Ministério da Saúde (MS), em 1984, o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM). Elaborado de forma conjunta entre representantes de grupos feministas, gestores estaduais e pesquisadores de universidades, o PAISM se tornou um marco histórico, pois agregou o ideário feminista ao campo da saúde da mulher, rompeu com o modelo de atenção exclusivamente materno-infantil e ampliou a atenção das políticas públicas de saúde a todas as etapas do ciclo vital feminino[6].
Em 2004, vinte anos após o lançamento do PAISM, outro marco, trazendo novos avanços no cuidado à saúde da mulher brasileira, foi lançado. O Ministério da Saúde, tomando como base o diagnóstico epidemiológico acerca da situação da saúde da mulher no Brasil e as reivindicações de diversos segmentos sociais, elaborou a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM). Além de preconizar a atenção a todos os ciclos de vida, a PNAISM trouxe para o âmbito da saúde pública questões relativas à interseccionalidade, dando visibilidade a diferentes grupos de mulheres (negras, indígenas, de diferentes orientações sexuais, residentes em áreas urbanas e rurais ou de difícil acesso, em situação de risco, presidiárias, soropositivas, com deficiência, dentre outras)[7].
Todo esse histórico de reivindicações pela saúde integral das mulheres brasileiras reflete a luta feminina pelo reconhecimento das mulheres enquanto sujeitos sociais. Historicamente, a mulher sempre foi definida por seus atributos biológicos, tendo sua identidade e sexualidade vinculadas exclusivamente à procriação e ao exercício da maternidade. Por muitos anos, os programas nacionais de saúde voltaram sua atenção apenas para este âmbito, esquecendo-se das mulheres não-mães ou sem desejo de maternidade[8]. Com os avanços trazidos pela PNAISM, esse cenário mudou; as ações e serviços de atenção à saúde da mulher, inclusive aquelas relacionadas à saúde sexual, passaram a ser cada vez mais integrados à saúde pública brasileira.
A chegada da pandemia da Covid-19 ao Brasil, em março de 2020, porém, oferece uma nova ameaça aos avanços e direitos conquistados no âmbito da saúde feminina. A restrição de atividades para enfrentamento da pandemia tem afetado importantes serviços que até então eram oferecidos às mulheres de forma regular e gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS), em especial aqueles relacionados à Saúde Sexual e Reprodutiva. Como alertado por Simone de Beauvoir[9] anos atrás, basta uma crise – seja ela política, econômica, religiosa ou, por que não, sanitária? – para que as mulheres voltem a ter seus direitos questionados.
SAÚDE SEXUAL E REPRODUTIVA PRÉ PANDEMIA DE COVID-19
Os direitos sexuais e reprodutivos constituem um dos Direitos Humanos fundamentais que permitem aos indivíduos plenitude no decorrer da vida. De modo geral, a Saúde Reprodutiva diz respeito ao completo bem-estar físico, mental e social inerente ao sistema reprodutor e a todos os aspectos que o envolve. Já a Saúde Sexual é definida como a capacidade de tanto homens quanto mulheres exercerem sua sexualidade de forma satisfatória, livre e segura, sem constrangimento, violência ou qualquer ato discriminatório[10].
Dentre os aspectos mais relevantes relacionados à Saúde Sexual, está o direito ao sexo seguro, incluindo a prevenção de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). No Brasil, muitas mulheres não adotam medidas de proteção às ISTs porque desconhecem sua gravidade, ignorando, por exemplo, a existência do Papilomavírus Humano (Human Papiloma Virus – HPV), uma das ISTs que atinge às mulheres de forma mais frequente e com maiores repercussões sobre sua saúde[11].
Estima-se que cerca de 80% das mulheres com vida sexual ativa terão contato com o HPV em algum momento de suas vidas, sendo que destas, 32% serão infectadas pelos tipos causadores de cânceres do colo do útero. No Brasil, o câncer de colo uterino é o terceiro mais frequente entre as mulheres e a quarta causa de morte por neoplasia na população feminina[12]. Entre 2010 e 2018, o país registrou 50.773 casos de óbitos por esta causa, sendo que 27.069 foram de mulheres negras (aproximadamente 55,5% do total de casos notificados). Estes números são considerados elevados quando comparados aos dados de nações em desenvolvimento, com programas mais estruturados para detecção precoce da doença[13],[14].
A forma mais eficaz de prevenção do câncer de colo de útero é a redução dos riscos de infecção pelo HPV. Esta se dá através do uso de preservativos (feminino ou masculino) durante a relação sexual, e por meio da vacinação (que, em 2017, teve sua cobertura ampliada para meninas de 9 a 14 anos e meninos de 11 a 14 anos). Além da inclusão desta vacina no calendário do Programa Nacional de Imunizações, o Ministério da Saúde preconiza a realização periódica do exame preventivo (papanicolau) para mulheres a partir de 25 anos como estratégia complementar à proteção contra outros subtipos oncogênicos do vírus[15].
Além de ser um método de rastreamento de neoplasias de colo uterino para a população feminina assintomática, o exame preventivo também proporciona diagnóstico e intervenção precoces para as mulheres sintomáticas, contribuindo para maiores chances de cura da doença. Segundo o Sistema de Informação do Câncer (SISCAN), entre os anos de 2013 e 2019, foram realizados 34.544.695 exames deste tipo no Brasil.No entanto, apenas 12.488 destes exames citológicos foram realizados em mulheres analfabetas[16], fato que evidencia a importância de se reduzir as desigualdades socioeconômicas para garantir a saúde da mulher de forma universal e equânime. Afinal, o exercício seguro da sexualidade e da reprodução são direitos de todas as mulheres, independentemente de sua condição social.
Direito “híbrido” entre a Saúde Sexual e a Saúde Reprodutiva, o planejamento reprodutivo[17] envolve um conjunto de ações que permite regular a fecundidade da mulher e garante a ela autonomia sobre o seu corpo e sua prole, sendo o Estado responsável por dispor de meios que efetivem tal ato. No Brasil, desde 1996 o planejamento reprodutivo é um direito de todo o cidadão e confere às mulheres os direitos legais sobre seu sistema reprodutor. Isso significa que para além das questões inerentes à pré concepção, infertilidade e reprodução assistida, as mulheres devem ter acesso a meios cientificamente aceitos para contracepção[18].
Como componente do planejamento reprodutivo, a anticoncepção possui diferentes métodos: temporários/reversíveis (hormonais, barreira, intrauterinos, comportamentais e duchas vaginais) e definitivos (esterilização). No Brasil, dentre os métodos temporários, o SUS disponibiliza a pílula, a minipílula, a pílula anticoncepcional de emergência, o injetável mensal, o injetável trimestral, o diafragma, o dispositivo intrauterino (DIU) de cobre, o preservativo (camisinha masculina e feminina), a laqueadura e a vasectomia[19], [20].
Entre as mulheres brasileiras pertencentes à faixa etária de 18 a 49 anos, o método contraceptivo mais utilizado na última década foi o anticoncepcional oral, em detrimento dos métodos cirúrgicos que anteriormente detinham a hegemonia. Algumas hipóteses explicam esta transição: facilidade de acesso e disponibilidade gratuita no serviço público, aumento da atividade industrial com maior inserção de mulheres no mercado de trabalho, aumento da escolaridade, maior empoderamento feminino e desejo de controlar o ciclo menstrual[21].
No que diz respeito às adolescentes, que também devem ter o seu direito à contracepção garantido – em média, as mulheres têm sua primeira relação sexual por volta dos 15 anos –, estudo realizado no Brasil indica que o método contraceptivo mais utilizado pelas mulheres nesta faixa etária é o preservativo masculino, seguido do anticoncepcional oral[22]. Embora seja um tema delicado, reflexões relativas à prevenção da gravidez na adolescência precisam ser aprofundadas. Entre 2010 e 2015, o Brasil apresentou um índice de 68,4 bebês nascidos vivos para cada mil adolescentes, índice maior que a média latino-americana (65,5 nascidos vivos a cada mil adolescentes)[23].
A escolha das mulheres e adolescentes por um método contraceptivo sofre influência significativa de aspectos sociodemográficos e econômicos que se relacionam diretamente com a eficácia e efetividade do planejamento reprodutivo. Fatores como moradia, raça/cor, escolaridade, acesso a plano de saúde, dentre outros, quando somados a algum grau de vulnerabilidade, limitam as condições de acesso, escolha e adesão ao método. A esterilização cirúrgica, por exemplo, é mais comum em mulheres negras do que o anticoncepcional oral[24].
A análise dos serviços de saúde ofertados às mulheres até a chegada da pandemia no Brasil aponta que a atenção dispensada à Saúde Sexual e Reprodutiva no país, apesar dos avanços alcançados, sempre apresentou fragilidades – em especial referentes a questões raciais e socioeconômicas. No entanto, mesmo longe do ideal, estes serviços garantiam às mulheres o reconhecimento de suas necessidades de saúde, com acesso a ações educativas, preventivas, de diagnóstico e tratamento em diferentes etapas do ciclo de vida.
SAÚDE SEXUAL E REPRODUTIVA NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID-19
No Brasil, as primeiras normativas técnicas do Ministério da Saúde relacionadas à saúde da mulher no enfrentamento da pandemia foram associadas ao ciclo gravídico puerperal e revelaram preocupações com a transmissão vertical da Covid-19. A primeira publicação, datada de 18 de março de 2020[25], trata exatamente do aleitamento materno em situações em que há risco de transmissão do novo coronavírus da mãe para o bebê. A Nota Técnica segue a recomendação de entidades internacionais, orientando que a amamentação seja preservada mesmo em caso de infecção pela Covid-19.
Após esse primeiro documento, outras Notas Técnicas relacionadas à saúde materna e neonatal foram publicadas. As publicações seguem a tendência de associar a saúde da mulher à reprodução. Não há menção à sexualidade feminina enquanto experiência singular desassociada do desejo pela maternidade. Assim, as Notas seguem abordando, principalmente, orientações para o parto e o puerpério[26].
Em 10 de abril de 2020, foi publicada a primeira Nota Técnica abordando a saúde da mulher de forma mais ampliada, ainda que restrita aos cuidados ginecológicos. O documento destaca a importância de que o atendimento ambulatorial às mulheres seja mantido sem que haja descontinuidade no tratamento ou no exame de condições clínicas que possam acarretar em prejuízos à saúde da mulher, tais como investigação de neoplasias e ISTs[27].
Em 18 de abril de 2020, nova Nota Técnica envolvendo a temática da Covid-19 em mulheres gestantes, parturientes e puérperas foi emitida. O documento enfatiza as alterações fisiológicas que ocorrem no organismo da mulher durante o ciclo gravídico-puerperal e que levariam a uma predisposição para infecções graves, inclusive respiratórias, sendo necessária uma atenção especial a este grupo de mulheres[28]. Desde então, gestantes e puérperas passaram a ser consideradas, pelo Ministério da Saúde, como parte do grupo de risco para a Covid-19.
Uma vez que a gravidez passou a ser considerada uma condição clínica de agravamento para a infecção por Covid-19, esperou-se que o acesso aos serviços que possibilitam às mulheres evitar gestações indesejadas fosse ampliado. No entanto, essa preocupação não vem se traduzindo em maior disponibilidade de serviços de contracepção. Pelo contrário, há relatos apontando para uma diminuição no acesso aos métodos e procedimentos contraceptivos para mulheres neste período de pandemia[29].
Em 04 de maio de 2020, pela primeira vez foi publicado pelo Ministério da Saúde um documento citando a contracepção feminina durante a pandemia, embora enfatizando o uso de métodos contraceptivos no pós parto, a fim de evitar uma nova gravidez em um curto espaço de tempo[30]. Desde então, a única Nota Técnica publicada envolvendo a Saúde Sexual e Saúde Reprodutiva durante a pandemia foi lançada no dia 01 de junho de 2020.
A publicação do dia 01 de junho designa quatro serviços como essenciais e ininterruptos à Saúde da Mulher: (I) serviços de contracepção de forma geral; (II) serviços de atenção à violência sexual; (III) serviços que garantam o direito ao abortamento seguro, segundo casos previstos em Lei; (IV) serviços de prevenção e tratamento a ISTs. O documento expôs uma preocupação já alertada pela ONU[31]: o aumento de gestações indesejadas durante a pandemia, decorrentes do aumento da violência contra as mulheres e da dificuldade no acesso à contracepção. Como estratégias primordiais na atenção à Saúde Sexual e Reprodutiva, a publicação apresenta uma tríade composta pelo direito ao planejamento reprodutivo; acesso à informação e educação em saúde; e uso de tecnologias como o teleatendimento[32].
A despeito dos elogios à Nota Técnica realizado por entidades de especialistas em saúde da mulher, três dias após a sua publicação, o Ministério da Saúde informou que o documento seria revogado e exonerou dois funcionários responsáveis pela sua divulgação. Diversas organizações da sociedade civil se manifestaram contra a atitude do órgão público, que desde então não realizou novas publicações sobre o assunto[33].
A publicação, no entanto, deu visibilidade à discussão a respeito das barreiras de acesso à Saúde Sexual e Reprodutiva enfrentadas pelas mulheres durante a pandemia. Um dos grandes obstáculos encontrados pelas mulheres no acesso à contracepção durante a crise diz respeito à decisão de algumas entidades federativas de manter em funcionamento apenas serviços de saúde considerados urgentes ou prioritários. Deste modo, cirurgias, exames e atendimentos ambulatoriais considerados eletivos passaram a ser suspensos ou adiados. A interrupção desses serviços costuma ser justificada com base em dois argumentos principais. Primeiro, há a necessidade de reduzir o fluxo de pacientes nos serviços de saúde e, assim, diminuir o risco de exposição de usuários e profissionais ao vírus. Segundo, constata-se que há uma escassez de recursos humanos e financeiros ocasionados pela pandemia (decorrentes tanto do afastamento de profissionais infectados, como da necessidade de desviar alguns profissionais de suas funções originais para atender às demandas da Covid-19)[34].
Deste modo, argumenta-se que algumas consultas e atendimentos precisam ser priorizados em detrimento de outros, a fim de não sobrecarregar o serviço de saúde. No entanto, tal argumento mostra-se falho, uma vez que não considera que gestações não desejadas, tumores de colo de útero ou de mama e ISTs, entre outras condições clínicas que afetam a saúde da mulher, poderão levar, no futuro, a uma demanda ainda maior aos serviços de saúde. Tais condições podem inclusive ocasionar hospitalizações evitáveis e expor as mulheres a um grande risco de infecção pela Covid-19 através da transmissão hospitalar.
Assim, ao mesmo tempo em que o acesso aos serviços de Saúde Sexual e Reprodutiva diminui, a vulnerabilidade das mulheres aumenta. Uma das grandes preocupações da pandemia é o crescimento na incidência de casos de violência doméstica e sexual[35]. Além das graves repercussões sobre a saúde mental das vítimas, essas violências tornam a necessidade de contracepção de emergência e aborto seguro ainda maior. No entanto, as dificuldades que já eram enfrentadas antes da pandemia se mantêm e algumas tornam-se ainda mais severas.
É provável que mulheres que se encontram em situação de confinamento com seus abusadores, neste momento, encontrem mais dificuldade para denunciá-los. O próprio processo decisório de buscar esses serviços pode ser retardado pelo imperativo “Fique em casa”, amplamente divulgado como parte das medidas de distanciamento social. As barreiras de acesso também são potencializadas neste cenário – desde o uso do transporte público (com frota reduzida em diversos estados) para chegar até o serviço, até as condições estabelecidas para triagem dentro das instituições de saúde. Além disso, mesmo após acessar os serviços, é possível que essas mulheres não recebam os cuidados oportunos, em função da indisponibilidade de leitos, equipamentos ou insumos. Alguns métodos contraceptivos, por exemplo, podem se tornar indisponíveis, uma vez que a maior parte deles são importados de países asiáticos e a pandemia tem provocado a restrição de mercadorias a nível mundial[36].
Estimativas de estudos realizados por Riley e colaboradores[37] apontam que, caso ocorra, no mundo, uma redução de 10% no uso de contraceptivos reversíveis, este número já será suficiente para que mais de 15 milhões de gestações indesejadas aconteçam. Os mesmos autores concluíram que, em virtude das dificuldades envolvendo o acesso aos anticoncepcionais, à contracepção de emergência e à interrupção voluntária da gravidez durante a pandemia, 10% dos abortos seguros realizados no mundo serão convertidos em abortos inseguros. Serão 3,3 milhões de abortos inseguros a mais realizados em virtude da escassez de serviços Saúde Sexual e Reprodutiva no cenário da Covid-19. Como consequência destes abortos, são previstos mais 1000 óbitos maternos no ano.
Além das mortes por abortamento, há estudos que preveem aumento na mortalidade materna decorrente da pandemia. Um estudo brasileiro recente demonstrou que, de fevereiro a junho de 2020, 124 mulheres grávidas ou puérperas morreram de Covid-19 no Brasil, número que já ultrapassa o total de óbitos maternos relacionadas à Covid-19 em todo o mundo. É importante ressaltar que destas mortes, 71 eram mulheres não-brancas[38]. Este dado reflete a necessidade de se lançar um olhar diferenciado para as desigualdades que afetam os diversos grupos de mulheres na pandemia.
PENSANDO A LONGO PRAZO: O QUE SERÁ DA SAÚDE SEXUAL E REPRODUTIVA NO PÓS PANDEMIA?
Apesar das fragilidades, as ações e serviços de Saúde Sexual e Reprodutiva ofertados pelo SUS no período pré pandemia foram marcados pelo acesso ao planejamento reprodutivo, ao aumento do uso da contracepção e aos meios de prevenção e tratamento das ISTs. A Covid-19 provocou um importante retrocesso nesses aspectos, colocando em risco a saúde de inúmeras mulheres que têm ficado sem atendimento de planejamento reprodutivo, consultas ginecológicas, exames preventivos, educação em saúde, entre outros. Tais atendimentos, embora não sejam emergenciais, não devem ser considerados opcionais, uma vez que a sua suspensão oferece uma ameaça à saúde das mulheres.
Há um fator agravante nesse cenário: no contexto ou fora do contexto da pandemia, o acesso aos serviços de Saúde Sexual e Reprodutiva atinge de maneira desigual às mulheres de diferentes raças, classes e orientações sexuais. A Covid-19 aprofunda essas desigualdades e provoca consequências que não se restringem ao momento da pandemia, mas que serão sentidas a longo prazo, como efeitos indiretos da Covid-19.
Esta breve comparação entre as ações e serviços de Saúde Sexual e Reprodutiva ofertados antes e durante a pandemia já evidencia o iminente risco de que as mulheres brasileiras vejam ser corroídas suas conquistas relacionadas à saúde, alcançadas depois de anos de luta do movimento feminista. Para evitar que tal desfecho aconteça, é de suma importância que haja mais mulheres nas instâncias de decisão relacionadas à saúde, a fim de garantir que as políticas públicas em favor do direito feminino à Saúde Sexual e Reprodutiva não sejam ainda mais enfraquecidas no período pós pandemia.
[1] Enfermeira graduada pelo Centro Universitário Ruy Barbosa (UniRuy), residente de Saúde Coletiva ênfase em Planejamento e Gestão em Saúde (ISC/UFBA). E-mail: santanaalice@hotmail.com
[2] Psicóloga graduada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), especialista em Clínica da Pessoa e da Família (EBMSP), residente em Saúde Coletiva com ênfase em Planejamento e Gestão em Saúde (ISC/UFBA). E-mail: danieladsba@gmail.com
[3] Fonoaudióloga graduada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), residente em Saúde Coletiva ênfase em Planejamento e Gestão em Saúde (ISC/UFBA). E-mail: flaviaverena@gmail.com
[4] Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: Princípios e Diretrizes. Brasília, 2011.
[5] Universidade Federal do Maranhão. UNASUS/UFMA. Saúde da mulher/Paula Trindade Garcia (Org.). São Luís, 2013. Disponível em:
[6] Costa AM. O Programa de Assistência Integral a Saúde da Mulher: anotações para um debate. Anais ABEP, 1986. Disponível em:
[7] Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: Princípios e Diretrizes. Brasília, 2004.
[8] Costa, Ana Maria. (2009). Participação social na conquista das políticas de saúde para mulheres no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, 14(4), 1073-1083.
[9] “Basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”. Beauvoir, S. de. (1975). Por que sou feminista? Entrevista de Simone de Beauvoir concedida ao programa “Questionnaire”, por Jean-Louis Servan-Schreiber. Disponível em: <http://prceu.usp.br/uspdiversidade/genero/simone-de-beauvoir-porque-sou-feminista-1975/> Acesso em: 10 jul. 2020.
[10] Brasil. Ministério da Saúde. Direitos sexuais, direitos reprodutivos e métodos anticoncepcionais. Brasília, 2009.
[11] AYRES, Andréia Rodrigues Gonçalves; SILVA, Gulnar Azevedo e. Prevalência de infecção do colo do útero pelo HPV no Brasil: revisão sistemática. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 44, n. 5, p. 963-974, out. 2010.
[12] Brasil. Ministério da Saúde. INCA, Instituto Nacional de Câncer. Câncer do colo do útero. Disponível:
[13] Brasil. Ministério da Saúde. DATASUS, Tabnet. Disponível em:
[14] OPAS. Organização Pan-Americana de Saúde. Disponível em:
[15] Brasil. Ministério da Saúde. Guia Prático sobre HPV. Perguntas e Respostas. Brasília, 2020.
[16] Brasil. Ministério da Saúde. Sistema de Informação do Câncer (SISCAN). Disponível em:
[17] O termo “planejamento reprodutivo” tem substituído o termo “planejamento familiar” por se tratar de uma questão que não envolve, necessariamente, o desejo de instituir uma famíllia.
[18] Brasil. Ministério da Saúde. Cadernos de Atenção Básica, n. 26. Saúde sexual e saúde reprodutiva. Brasília, 2013
[19] Idem.
[20] Estes dois últimos também são considerados métodos reversíveis, diferente do que acredita o senso comum.
[21] TRINDADE, R.E; SIQUEIRA, B.B; DE PAULA, T.F; FELISBINO-MENDES, M.S. Uso de contracepção e desigualdades do planejamento reprodutivo das mulheres Brasileiras. Cien Saude Colet. 2019/Out.
[22] VIEIRA, Elisabeth Meloni et al. Características do uso de métodos anticoncepcionais no Estado de São Paulo. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 36, n. 3, p. 263-270, jun.2002.
[23] OMS. Organização Mundial da Saúde; OPAS. Organização Pan-Americana de Saúde. Gravidez na adolescência.
[24] TRINDADE, R.E; SIQUEIRA, B.B; DE PAULA, T.F; FELISBINO-MENDES, M.S. Op. cit.
[25] BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Nota Técnica Nº 9/2020-DAPES/SAPS/MS. 2020.
[26] Nota Técnica Nº 6/2020-COCAM/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS (Aborda a saúde do recém-nascido); Nota Técnica Nº 7/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS (Aborda a atenção às gestantes); Nota Técnica Nº 9/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS (Recomendações para o Trabalho de Parto, Parto e Puerpério).
[27] Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Coordenação-Geral de Ciclos da Vida. Coordenação de Saúde das Mulheres. Nota Técnica nº 10/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS – Recomendações para as Consultas Ambulatoriais de Saúde da Mulher durante a Pandemia da COVID-19. Abr., 2020.
[28] Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Coordenação-Geral de Ciclos da Vida. Coordenação da Saúde da Mulher. Nota Técnica Nº 12/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS. Infecção COVID-19 e os riscos às mulheres no ciclo gravídico-puerperal.
[29] Rede CoVida – Ciência, Informação e Solidariedade. Boletim CoVida. Pandemia de Covid-19. Saúde e Direitos Reprodutivos no Cenário da Covid-19. Edição 07. 22 de jun. 2020. Disponível em:
[30] Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Coordenação-Geral de Ciclos da Vida. Coordenação de Saúde das Mulheres. Nota Técnica Nº 13/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS. Recomendação Acerca da Atenção Puerperal, Alta Segura e Contracepção Durante a Pandemia da COVID-19.
[31] ONU Mulheres Brasil. Gênero e COVID-19 na América Latina e no Caribe: dimensões de gênero na resposta. Brasília: ONU Mulheres Brasil; 2020. Disponível em
[32] Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Coordenação-Geral de Ciclos da Vida. Coordenação da Saúde da Mulher. Nota Técnica Nº 16/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS. Acesso à saúde sexual e reprodutiva no contexto da pandemia da Covid-19.
[33] Conselho Nacional de Saúde. NOTA: CNS repudia retirada de documento técnico sobre saúde sexual e reprodutiva das mulheres durante pandemia, do site do Ministério da Saúde. Disponível em:
[34] Rede CoVida – Ciência, Informação e Solidariedade. Op. Cit.
[35] ONU Mulheres Brasil. Op. Cit.
[36] Rede CoVida – Ciência, Informação e Solidariedade. Op. Cit.
[37] Riley T, Sully E, Ahmed Z, Biddlecom A. Estimates of the Potential Impact of the COVID-19 Pandemic on Sexual and Reproductive Health In Low- and Middle- Income Countries. International Perspectives on Sexual and Reproductive Health. 16 apr. 2020.
[38] Takemoto, M.L.S., Menezes, M.O., Andreucci, C.B., Nakamura‐Pereira, M., Amorim, M.M.R., Katz, L. and Knobel, R. (2020), The tragedy of COVID‐19 in Brazil: 124 maternal deaths and counting. International Journal of Gynecology and Obstetrics.