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EMANCIPAÇÃO FEMININA: PANDEMIA MORAL X COVID-19

EMANCIPAÇÃO FEMININA: PANDEMIA MORAL X COVID-19

Aline Venutto[1]


Mulher sexo frágil, mulher de fogo e sangue. Mulher delicada, mãe e dona de casa. De repente eis que explode. Numa revolução? Ou será desejo? Que essa traz escondido no peito. Com amor e emoção? A mulher busca a emancipação! Ela libera ou tenta libertar. Tenta ser gente, ser ela, ser mulher, e ser feminina. E tentando isto, ela tenta sentir. Tenta deixar o sexo fluir. Tenta sentir o gozo, chegar ao orgasmo. Mas e a sociedade? Ela determina uma menina insensível até certa época, até se casar. Depois espera que a menina botão, em flor se transforme e então seja um fenômeno na cama. A menina que até ontem tinha que se resguardar, casou se, e de hoje em diante tem que se emancipar. E o botão que virou flor, tem que se abrir, e ser o que é posto e imposto, e não o que se sentir.

(Marilia Barbosa dos Santos, 2004, p. 10)

Esse texto teve seu início bem antes que eu pudesse imaginar, escrevê-lo. A citação acima é uma marca existencial para além da minha condição humana. Marca a trajetória de uma mulher, que através de suas palavras transmite um sentimento real, e completamente palpável. Mesmo que não sentíssemos tudo isso, ela faz nos sentir. Essa mulher-escolha, como alusão exordial, não se deu ao acaso, tem alguns elementos vinculantes ao “Ser” em construção, de uma coletividade comum.

Primeiramente, marca a fala de alguém que esta, que é, e que vive a própria realidade desenhada por suas palavras, marca um lugar de fala fático, real, presente. É uma mulher falando da situação da mulher, das sensações limitantes vividas. E é também um desejo-necessidade de demarcamos ainda mais o solo literário, com a literatura feminina. Para que as mulheres reconheçam que podem escrever, e que (re)conheçam o que já existe escrito. E ainda mais do que isso, é para que essas mulheres sejam chamadas por seus nomes completos, não somente pelo sobrenome, que pode gerar dúvida quanto ao gênero sexual, por exemplo. Para que possam ainda, se motivarem ao registro formal da escrita feminina, no universo literário, um espaço de alcance tão difícil para nós, mulheres.

Por fim, e não menos ou mais importante, Marilia Barbosa dos Santos, é minha Tia. Foi Professora, Pedagoga, Psicóloga, e mãe através do coração- útero, gerando seus oito sobrinhos com imensa ternura. Sem dúvidas uma mulher que viveu a frente do seu tempo. Hoje, assiste-me citá-la, de outra dimensão, ainda maior. É um trecho do seu poema em prosa, intitulado como Emancipação Feminina, no Livro Pegadas na Alma, publicado em 2004, post mortem.

Deixo-o como provocação inicial, posto que contempla exatamente o que este artigo pretende transbordar e derramar. O lugar e o não lugar da mulher numa sociedade patriarcal, sua emancipação tão falaciosa, sua luta contínua, sua sexualidade cheia de preconceitos e dogmatismos, e seu silêncio sofrido levado ao extremo, no grito mudo do confinamento trazido pela pandemia do Covid-19.

O que tratamos aqui, ultrapassa o simples limite de um estado pandêmico ocasionado por um vírus que se dissemina aceleradamente pelo contato. Desrespeita e extrapola, inclusive os limites impostos pela possibilidade de estarmos vivenciando um Estado de exceção. O aumento significativo da vulnerabilidade feminina, é um vírus agressor que se alastra assustadoramente. A violência doméstica como um lugar comum, como um algo cotidiano e corriqueiro, que fora tornado como simples. Um machismo vândalo que se alimenta no silêncio dos lares, que se nutre da imposição do distanciamento social, e se estende alcançando mais e mais mulheres, em suas diversas situações. A cada ausência de contato com o mundo externo, infinitos gritos de dor. O cuidado com a saúde física e a prevenção que, está nos lares, acentua de maneira frenética a violência doméstica contra a mulher. Não são meras afirmações, são dados estatísticos comprovados matematicamente, oriundos de estudos e pesquisas, uma vergonhosa realidade que sobreexcede o sentimental e atinge os ápices de uma dita racionalidade.

Há uma crise para além de um vírus mutável (cientificamente) que afeta a saúde de forma abrupta, e pode sim, levar a morte. Há um crise humana, de conduta, de amor ao próximo, de amor próprio, de dignidade, uma enorme pandemia moral. A sociedade como um todo, ênfase talvez, na fração machista, tenha se esquecido que a mulher é antes e acima de tudo um Ser humano. Ser humano que possui direitos, e deveres também, mas que tem uma história, memória, valores, sentimentos, e merece no mínimo respeito.

DESENVOLVIMENTO

“O que significa ser mulher nos dias de hoje? Espera-se que sejamos fortes, mas modestas. Instruídas, mas sem opiniões polêmicas. E acima de tudo bonitas. Será que não chegou a hora de termos uma conversa séria umas com as outras, de nos abrirmos e admitirmos que por trás de uma maquiagem perfeita, do cabelo armado e dos lindos vestidos, alguns dias são extremamente difíceis”. Essa é uma fala da Série do Netflix, chamada Coisa mais linda, a personagem é uma jornalista feminista que nos anos 60, tenta demarcar esse lugar de fala, e retratar a situação da mulher na sociedade, vivendo todos esses contextos conflituosos do nosso universo particular.

A força de nosso movimento está exatamente em nossa essência, que é o compartilhamento, a partilha. A rede que criamos, e que fortalecemos com o processo do caminhar. Destruindo a falsa rivalidade, e distância que existia entre as mulheres. É uma teia de solidariedade, transubstanciada no exercício de se colocar no lugar da outra. Ao que chamamos de sororidade.O ato de afivelarmos as almas para juntas, enfrentarmos o cooperativismo masculino, que ainda é dominante em todas as instâncias. Uma história de fazimento à muitas mãos, assinalada de sangue, muito suor, lágrimas, mas também de uma afetividade que não conhece empecilhos e limites. De uma travessia significativa, mas de uma longa, íngreme e árdua estrada pela frente, para um porvir melhor, mais sereno e digno, mas para além disso, transformado.

Entretanto, ainda há em tudo isso, um lugar marcante de não memórias. Como um espaço em que não coubessem os relatos, os acontecimentos reais perpassados, a narrativa das tragédias, as lutas, as superações, as conquistas, mas também as dores, e as inúmeras perdas que não tiveram se quer investigação ou responsabilização. Que foram e ainda seguem sendo banalizadas. Um lugar em que não houve a justeza da justiça.

A Professora Constância Lima, que se dedica de forma apaixonada a pesquisar esses registros e não registros do pioneirismo feminino na literatura, trabalhando numa pesquisa de resgate. Afirma que, o brasileiro tem uma cultura do “memoricídio”, e a caracteriza como uma amnésia social e cultural fundada por razoes ideológicas e históricas. O que faz total sentido diante do posicionamento social que assistimos, ou seja, a ainda exacerbada ausência de um posicionamento.

“Nossa emancipação! Parece que enferrujou, a bala perdida que me alcança, a ferradura que me calça, a alça, a lança tranca, a resistência necessária. Oxidou, a ponte, a fonte, a chance de fundir o que rachou, e difundir pra gerações. A demanda do mundo é amar!” Esse trecho da música, Quando a fé ruge, da banda O Teatro Mágico, é em si um poema da realidade, que grita ritmadamente o memoricídio que inconscientemente praticamos. Sejamos mulheres ou homens, negros, pardos, amarelos, católicos, ateus, judeus, crentes e tantos outros mais. Sejamos tão somente humanos, percebendo que vivemos sobre rastros, e esses rastros nos são essências, são a nossa construção gradual, a evolução progressiva, passo a passo em busca de condições melhores, e situações melhores. Em busca de uma transformação, de se dá ouvindo à exclamação de que a demanda do mundo, é amar! Esquecer disso, ou ignorar a tudo isso, é sim esquecer a bala que alcança e alcançou a tantos (as), é tornar corriqueiro a ferradura que nos impõe um trabalho subumano, é lançar mão de uma resistência necessária que já fora vivida para um existência como a atual. “Resistir e ser plural”, conclamamos.

É exatamente nessa altura da minha escrita, que os significados e significantes do título escolhido se encontram, se entrelaçam firmemente e se abraçam, misturando as motivações latentes e as almas das quais se forma. Emancipação, pandemia, moral, feminina, covid-19, dançam (des)ordenadamente, (des)construindo tudo que dia a dia vivenciamos nos tornando ainda mais cegos do que já estávamos ou aclarando de uma brancura espessa e concreta tantos aprendizados novos ou não.

De forma horizontal, e não aprofundada, resta dizer sobre emancipação, em específico feminina, sobre pandemia, moral e os desdobramentos pretendidos a se usar esses termos-conceitos, que ao colocarmos em debate, se tornam abertos, receptivos e completamente absorvíveis.

Emancipação, superficialmente, diz de esforços para obtenção de direitos políticos e de igualdade, em boa parte dos casos, por um grupo específico. Todo ser humano é um ser político, assim como todo ato é um ato político. A mulher em sua emancipação, possui vasto histórico de lutas com relação a vários direitos, básicos, políticos, de uma remota possibilidade de igualdade. Direito ao voto, à educação, à escrita, principalmente e antes de tudo isso de ser considerada humana, pensante, racional e ativa como todo e qualquer ser humano, homem. Podemos dizer de uma existência pretérita de educação direcionada, no que tange ao direito de ir à escola, já que as meninas eram preparadas desde sempre para a vida doméstica. Muito já se mudou, moldou, mas ainda carecemos amplamente do reconhecimento da capacidade da mulher, de desvelar, exercer e expressar-se, dignamente perante a sociedade.

Em alguns momentos, essa emancipação feminina, semanticamente, ilustra-se, como uma mulher que fica de pé perante um todo, mas está sozinha, ilhada em suas condições e desejos, direitos e deveres, sendo somente responsabilizada, sem qualquer oferta ou garantimento. Não há com o que essa mulher que é a própria posição de emancipação, se nutrir. Ela está fraca, se vê fraca e desguarnecida em si mesmo diante do todo que se apresenta.

Lado outro, de grande intersecção, esta pandemia que fora decretada pela OMS, para tanto observa-se se para caracterizá-la, a ocorrência de uma doença que é infecciosa e se espalha de forma sustentavelmente entre humanos, se localizando numa grande proporção geográfica. Eis pois, o contágio veloz do coronavírus, que estamos vivenciando. Nessa ceara, está o meu paradoxo analógico que ligação a pandemia do COVID-19 a uma pandemia dita moral. Um colapso assustador, que dissemina um vírus que apaga o sopro vital da dignidade humana. Contamina, adoece, cega e extirpa da coletividade humana sentimentos como empatia, respeito, solidariedade, amor, ética e afetividade. É a pandemia de um vírus que mata mesmo permanecendo vivo. Que mina, e vai fazendo morrer aos poucos, por descaso, sofrimento, violência, indiferença, somatizado a uma dor que é gigantesca, e que é ignorada.

O conceito de moralidade é amplamente discutido, muito verticalizado, e de muitas análises, contudo, nos ateremos ao básico, que nos é, essencial. Um conjunto de crenças e regras, que orientam e norteiam as condutas, os comportamentos das pessoas para a vida, individual e em sociedade, são grosseira e vulgarmente valores humanos a serem preservados e seguidos.

Alguns dizem ou acham que a questão moral está exatamente nesse momento que se permite, que se abre, a possibilidade de fazer escolhas, de escolher ajudar, colaborar e perpetuar, ou não. Momento em que se pode axiologicamente ponderar sobre outro, e entender sobre os limites, os seus e os do outro. Momento em que, se coloca no lugar do outro que destinatário de sua ação, sopesando o agir, escrutino a conduta, permito sentir a dor de estar no lugar do outro.

A questão que nos alcança aqui é, quem se permite tocar pela delícia e dor de ser no e o outro, para conseguir analisar condutas, e agir “moralmente”. E dentro de uma premissa mais larga, perceber que a maioria não teve se quer escolha sobre a ação ou não ação dentro de uma moralidade. Angustiante lugar-espaço do humano no qual nos encontramos com as nossas misérias e mazelas, e percebemos a profundidade abismal em nós.

Assombroso que, diante de todo o cenário pandêmico, de instabilidade, insegurança, pressão, ansiedade, perdas e de todo o descompasso, nós mulheres, tenhamos que lidar com a violência crescente dentro de nossos lares, oriunda provavelmente de nossos amores. Lar e amor, são palavras-locais, espaços de estadia, permanência, de refazimento, de proteção, de acolhimento e de exponencial crescimento de boas sensações e sorrisos, e não de morte. Porque a cada mulher violentada, estamos sim diante da morte, que não seja a física, mas a morte da identidade, a morte da personalidade, da luta travada há séculos. Tristeza que se perpetua de geração em geração, pregando e defendendo que o silencio como a solução. O calar-se como melhor saída. Amar seja ao companheiro, ou amar a si mesmo, ou a seus filhos, nunca será sinônimo ou consequência, de se calar, de aceitar e muito menos de apanhar. Amar requer voos mais altos, mergulhos profundos, águas límpidas, pessoas dispostas e antes de tudo isso, respeito e (ad)miração.

CONCLUSÃO

Questionar o próprio lugar de fala, ou ainda viver com intensidade um não lugar de fala, numa sociedade totalmente patriarcal e machista, em que as questões da mulher são fortemente preestabelecidas historicamente, é uma responsabilidade universal, um poder-dever humano, que está arraigado em nós, e em nossas entranhas desde que fomos constituídos como seres humanos, pensantes, racionais, possuidores de intelecto.

Ouvir a voz das mulheres, ou fazer ouvir a voz das mulheres, é exigir e fazer valer seus direitos políticos e sua existência como um igual. É não ser preciso que escancaremos sofrimentos, barreiras e nomes de mulheres que perderam suas vidas para conquistar algo ou para tentar um reconhecimento. É não precisar lembrar a todo instante, e em todo contexto quantas lutas e quanta submissão e abnegação foi preciso.

Citando um trecho da nova versão da música Sujeito de Sorte, numa releitura feita pelo Emicida, no álbum AmarElo, com participação da Majur e do Pablo Vittar, que diz “Permita que eu fale e não as minhas cicatrizes. Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes, que nem devia ‘tá aqui”. É o poema que diz exatamente o que almejamos, que tenhamos voz, vez, e que sejamos realmente ouvidas, indiferentes das cicatrizes, que são as marcas do que passamos até então, não gostaríamos de ter que (re)lembrar de dores sempre, e das duras marcas da trajetória, todas as vezes e a todo instante.

O desejo vivo, claro e latente é que enquanto mulheres possamos escutar o sabor de todas as dimensões de se estar vivo, inclusive as felizes.

A pandemia do coronavírus, que escancarou a pandemia moral em que vivíamos, levando-a ao extremo, deve nos servir de estímulo para a transformação. Para que alegando, também possamos viver de forma efetiva e real, a convicção de que, não foram as pessoas que foram feitas para as cidades, para o mundo, ou para o externo. Foram as cidades, o mundo, o externo e as oportunidades que foram feitas para as pessoas (homens e mulheres, todos e sem exceção). Um pensamento, ou uma forma de pensar quase que sensível, irreal, mas palpável, que limita e flutua entre os espaços fronteiriços da condição humana, volitando entre o sonho, o engano, e a realidade. Concretude, é a exigência. Dignidade, é a urgência. Ter respeito ao próximo não é ato de clemencia, ou benevolência, é o mínimo, o justo, o preciso.

Que essa pseudoemancipação feminina, tão recheada de falácias, tão romantizada pela mídia, e tão carente de eficácia, seja solidez, seja antidoto, seja cura, e liberdade. Manter a mulher nesse lugar de desigualdade, submissão, (des)ordem jurídica, e violência constante e reiterada, é equipara-la a um buquê, e como nos canta Milton Nascimento e Criolo, “buquê são flores mortas num lindo arranjo”. Seria contemplar nossa beleza, sem reconhecer nossa importância. Seria se importar com ter uma mulher ao lado sem reconhecer a mulher que se tem. Seria dizer da sua inteligência sem entender sua capacidade de sentir. Uma beleza cheia de um imenso vazio.

Agressões machistas, discriminação, não lugar, memoricídio, colapso moral, pandemia de violência doméstica, subjugamento, menosprezo e tudo mais que disso faça companhia, recebe nesses dias de isolamento e distanciamento social o nosso sinal vermelho. Nossa manifestação que se posiciona, fora de uma neutralidade, fora da zona de conforto, dizendo não a violência. Afinal, somos com Conceição Evaristo, “A gente combinamos de não morrer”.


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