TRAJETÓRIA PROFISSIONAL DE MULHERES NEGRAS E PROFESSORAS DA EDUCAÇÃO PENITENCIÁRIA
TRAJETÓRIA PROFISSIONAL DE MULHERES NEGRAS E PROFESSORAS DA EDUCAÇÃO PENITENCIÁRIA
Lucidéa Portal Melo de Carvalho
Eliane Leal Vasquez
INTRODUÇÃO
Professores, pesquisadores e ex-professores da educação penitenciária já
escreveram uma parte da história da escola da prisão no norte do Brasil, como no
caso do Estado do Amapá, no período de 2008 a 2014, com base em pesquisas de
graduação e pós-graduação.
Há dez anos, por exemplo, Vasquez (2010) publicou um livro que abordou
as bases da educação penitenciária a partir da análise da legislação brasileira e
constatou que desde a metade do século XIX já se defendia a instrução religiosa,
moral e escolar dentro das prisões e, por fim, a educação profissional. A autora
também registrou como implementou-se a oferta de cursos para pessoas presas no
Território e Estado do Amapá de 1975 até 2007, pesquisa em História da Ciência
que enfatizou aspectos da cultura escolar e cultura prisional.
Na área da História, Andrade (2014) pesquisou o ensino de história para
estudantes da Escola Estadual São José (EESJ) e discutiu questões sobre o
trabalho docente no contexto de encarceramento, sendo um dos primeiros estudos
que tratou do ensino de história para adultos presos e estudantes da rede pública
de ensino na cidade de Macapá.
Já Abreu (2008) investigou a educação penitenciária no Amapá e destacou
o tema na área da Educação de Jovens e Adultos (EJA). O autor destacou o currículo das turmas de Ensino Fundamental e Médio da EESJ, e o trabalho de professores que ensinam disciplinas das áreas de Ciências Humanas, Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, Ciências das Linguagens e Códigos, e que são servidores públicos da Secretaria de Estado da Educação (SEED/AP). Além da visão do estudante detento sobre os conteúdos ministrados, relação interpessoal entre corpo docente e discente, apresentando reflexões acerca da importância da escola e da educação escolar no encarceramento.
Com base nesses trabalhos e outros autores citados por Vasquez (2010), Andrade (2014) e Abreu (2008) verifica-se que pouco registrou-se quem são os professores da EESJ, e não foi realizada pesquisa sobre a trajetória profissional de professoras negras que trabalham na educação penitenciária no Estado do Amapá.
A trajetória profissional de docentes lotados na SEED/AP, em Macapá, é um tema que merece atenção em projetos de investigação ou literários para documentar a memória da vida profissional, e ao mesmo tempo, a memória institucional a partir de narrativas autobiográficas.
METODOLOGIA DA PESQUISA NARRATIVA
O artigo de relato de experiência foi produzido como parte das ações do projeto literário: Mulheres Negras: protagonismo feminino, trajetórias e desafios, que tinha como meta publicar um livro impresso, organizado por Freitas et al (2020).
Com base na pesquisa narrativa de mulheres negras, o objetivo deste estudo foi registrar as trajetórias profissionais, as experiências e os saberes no âmbito do trabalho docente na educação penitenciária e também as dificuldades enfrentadas na educação física e na alfabetização de adultos presos, no Estado do Amapá.
Neste trabalho, usamos o termo pesquisa narrativa como sendo uma metodologia e estudo da experiência como relato, assim como uma forma de pensar sobre as experiências das pessoas (CLANDININ; PUSHOR; MURRAY ORR, 2007).
Não foi possível realizar o grupo focal com as participantes do estudo como planejado inicialmente na capital do Estado do Amapá, em decorrência da pandemia da COVID 19, o que não impediu a conclusão de ação de apoio ao projeto literário. Por esse motivo, recorremos ao canal de comunicação virtual, por meio do WhatsApp para convidar as professoras negras para relatar suas trajetórias profissionais no sistema penitenciário.
Participaram como voluntárias do projeto, em maio de 2020, duas professoras negras da EESJ (Tabela 1), escola pública que atende aos homens e mulheres que estão cumprindo pena de privação de liberdade e que são estudantes de Cursos de Ensino Fundamental e Médio.
De acordo, com o tempo de serviço das professoras negras da educação prisional (Tabela 1), constatamos que elas têm experiência de ensino em turmas formadas por adultos presos.
A relação estabelecida entre as autoras e as professoras negras foi de confiança, quando elas aceitaram participar como voluntárias deste projeto, devido a primeira autora também trabalhar com ensino de geografia na educação prisional e a segunda por ter atuado como professora de matemática na área.
As transcrições das suas narrativas foram citadas no artigo, com base no Termo de Consentimento e Livre Esclarecido – TCLE e seus nomes verdadeiros foram citados, com base nas autorizações concedidas às autoras.
RESULTADO DA PESQUISA NARRATIVA
Transcrevemos na íntegra as narrativas autobiográficas das professoras negras da educação penitenciária, que ainda fazem parte do corpo docente do Quadro de Servidores Públicos do Governo do Estado do Amapá.
TRAJETÓRIA PROFISSIONAL DE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS PRESOS
“Eu me chamo Maria Deusa dos Santos, sou mulher negra e professora dos anos iniciais (Alfabetização) da Escola Estadual São José (EESJ), que se localiza no interior do Instituto de Administração Penitenciária do Amapá (IAPEN).
Atuo na educação prisional há dezoito anos. A princípio, não foi minha escolha trabalhar nessa área de ensino. Mas em 2002, a EESJ era a escola pública que tinha vaga para professor na cidade de Macapá, no período em que saí de outra escola que trabalhei e fui lotada pela Secretaria de Estado da Educação na EESJ.
Desempenho meu trabalho com os alunos encarcerados da mesma forma que sempre trabalhei na educação pública, com responsabilidade, dedicação e cumprindo o meu dever de servidora pública. E, portanto, auxilio na construção dos conhecimentos, mesmo enfrentando dificuldades na educação prisional, como a ausência de uma parte dos alunos em cada semana na sala de aula. Alguns frequentam a escola esporadicamente, pelo fato deles não serem retirados pelos agentes penitenciários de suas celas, em decorrência de vários motivos que são informados à gestora da escola.
Outra dificuldade que enfrento como professora da alfabetização da educação prisional é a falta de materiais didáticos apropriados aos adultos presos. Os livros didáticos que ficam disponíveis para estudo na sala de leitura da escola, não são suficientes aos estudos. Os alunos da EESJ têm acesso aos livros em horários restritos para realizar as tarefas escolares que são solicitadas pelos professores.
As estratégias de ensino que uso na educação prisional são diversificadas e adequadas aos assuntos abordados nas disciplinas de Português, Ciências, História, Matemática, Geografia e Arte. Também faço anotações da participação dos alunos em relação ao seu processo de aprendizagem em uma ficha de acompanhamento individual e que também serve para atribuir notas de cada bimestre do ano letivo nas turmas de Educação de Jovens e Adultos na Educação Prisional.
Avalio que é necessário reivindicar a melhoria das condições educacionais no cárcere e fora dele. Também é preciso ultrapassar a visão de que a escola sozinha dará conta do rendimento escolar e da preparação de um cidadão mais ativo e consciente, uma vez que a EESJ está inserida dentro de outra instituição: a prisão.
O processo educativo na escola que fica dentro do cárcere é mais lento, em virtude das condições das pessoas presas, principalmente, quando elas ainda não sabem ler e escrever. Mas com esmero e dedicação, nesses 18 anos de magistério, consegui fazer com que muitos aprendessem a ler e escrever, o que para mim é uma vitória!
Sinto-me orgulhosa e vencedora pelo fato de ter contribuído com a formação escolar de muitos homens e mulheres que estavam presos e que receberam o seu livramento condicional, e que agora estão usufruindo da sua liberdade fora da prisão.
O tempo que eles permanecem na escola com os professores é curto e menor, se comparado com o restante do seu tempo no convívio social dentro das suas celas ou pavilhões, e portanto, fora da escola. Por isso, acredito que é dever da sociedade apoiar o trabalho docente e o desenvolvimento dos educandos, assim como dos alunos da EESJ.
Sobre especificamente a situação de discriminação, posso dizer que já fui discriminada em algumas ocasiões de minha vida por ter a cor negra na pele. Mas sempre lembrava de meus pais que diziam “Minha filha, a educação é a única forma de ascensão social. É a resposta do negro à sociedade”. E essa se tornou uma diretriz para minha vida. Na minha experiência de ensino na educação prisional, mostrei às pessoas que a pessoa negra tem dignidade e minha profissão merece respeito, assim como qualquer outra professora.
No Brasil, a situação da pessoa negra é alarmante, mas para mulher negra é ainda mais difícil. A questão de gênero é culturalmente complicada, pois somos heranças da dominância masculina e de uma história de luta. Mas sobrevivemos e continuamos a sobreviver. Em pleno século XXI, uma parte da sociedade ainda nos olha como se fôssemos pessoas inferiores, como se não tivéssemos valor entre os outros grupos de indivíduos.
Tudo que conquistei até hoje na minha vida profissional, foi suado, e por isso alcancei o que preciso para viver em paz com minha família. Na EESJ, sou uma professora benquista entre os professores, gestores, alunos e pessoas que estão presas. Eu trato as pessoas igualmente na educação prisional, com respeito, independentemente de grupo étnico, cor da pele e gênero, buscando valorizar seus potenciais e habilidades, assim como sou recebida e tratada no meu ambiente de trabalho”. (Maria Deusa dos Santos, 2020)
TRAJETÓRIA PROFISSIONAL DE ENSINO DE EDUCAÇÃO FÍSICA NO CÁRCERE
“Eu sou Andrezza Alexander Coelho e comecei a trabalhar na Escola Estadual São José (EESJ), no ano de 2011, quando substituí o professor Sidcley Barroso pelo período de três meses. Confesso que fiquei apreensiva pelo fato de ter preconceito e medo das pessoas presas.
Mas com o passar do tempo, fui me adaptando e gostando do trabalho que comecei a desenvolver na 1escola, sempre com muito empenho e carinho. Ao final dos três meses, o professor Sidcley Barroso pediu para sair da escola e do Governo do Estado. O diretor da escola na época era o professor Raimundo Aldo Siqueira. Ele solicitou que eu permanecesse lotada na escola como professora de educação física.
No início do trabalho, eu tive dificuldades quanto ao planejamento de conteúdos e atividades práticas que se adequassem àquela realidade tão complicada, pois não tínhamos espaço para desenvolver as aulas práticas. Diante disso, os próprios alunos se negavam a realizar as atividades, eles diziam que não gostavam de brincar e que já eram velhos para aqueles tipos de atividades lúdicas.
Com o passar do tempo, fui pesquisando atividades que melhor os atenderiam e que se encaixassem as suas respectivas faixas etárias, e que também trouxessem benefícios aos apenados, atividades estas que os deixassem reflexivos. Aos poucos, fui explicando para eles a importância da atividade física no sistema penitenciário, relacionada aos aspectos biopsicossociais das pessoas.
A educação física é uma disciplina que envolve muito o aluno, por trabalhar com a cultura corporal. Hoje posso afirmar que mudei a concepção que os alunos e as pessoas presas tinham sobre a educação física no ambiente prisional escolar. Hoje a realidade é outra. Eles gostam e se interessam em participar dos projetos e eventos organizados pela escola, isto tudo, porque procurei trabalhar com a realidade que os circundava e falo sobre todos os conteúdos possíveis para que participem das aulas teóricas e práticas, tais como: jogos, dança, ginástica, esportes e lutas, de acordo com o ciclo específico de cada turma.
Um dos maiores entraves do trabalho docente é a entrada e saída de materiais didáticos no Instituto de Administração Penitenciária do Amapá (IAPEN) para realizar as atividades escolares. Eu sei, que para garantir a segurança no cárcere, nem tudo é permitido entrar. Mas as regras da segurança comprometem a produção das atividades no ensino.
Ás vezes, devido a proibição da entrada de alguns materiais didáticos na prisão, tenho que me reinventar como professora e ser ainda mais criativa, ou seja, sempre tenho que adaptar atividades e projetos ou usar um plano alternativo nas aulas. Isso compromete o que já tinha planejado. A princípio não funciona e assim aulas são planejadas de novo e executadas.
Outra questão importante são os conflitos e os entraves existentes no ambiente escolar dentro da prisão, que acabam interferindo no trabalho docente. É uma realidade delicada que devemos tratar sempre com positividade.
Em minhas aulas teóricas e práticas, utilizo as salas de aulas da escola, tanto no IAPEN, quanto na Coordenadoria da Penitenciária Feminino (COPEF). Quando tenho a oportunidade de usar outro espaço físico, utilizo o salão de eventos nos dois espaços físicos em que a escola oferta cursos de educação básica. Além da quadra multiuso que se localiza ao lado da escola.
A prática de educação física é um trabalho multidisciplinar. Eu planejo as aulas e projetos com a participação de professores de outras disciplinas, o que enriquece a produção de conhecimentos na educação prisional, pois é a soma de valores e de outros saberes.
Eu sou professora da educação prisional. Procuro desenvolver o melhor para que os alunos e pessoas presas reflitam o que fizeram e após do cumprimento de pena privada de liberdade, voltem à sociedade local, dispostos a continuar seus estudos e de preferência sem cometer crimes.
Por trabalhar em uma escola pública que fica dentro da prisão, recebo uma gratificação, denominada de parcela compensatória. Ou melhor, 15% a mais no salário. Um incentivo para que os professores continuem na escola.
Mesmo com essa gratificação, acredito que nem todos os docentes têm perfil para trabalhar com as pessoas presas, considerando que o ambiente carcerário é um pavio de pólvora e a qualquer momento pode explodir. Além disso, os professores correm o risco de contaminarem-se com doenças infectocontagiosas (tuberculose, sarna e outras), e também colocam em risco suas vidas, quando aceitam trabalhar no sistema penitenciário.
Os professores passam por situações estressantes constantemente. Situações essas que os deixam desconfortáveis e que acabam mexendo com a saúde mental. Por isso o valor em real que consta a mais no contracheque, acaba por não compensar. Diante desse cenário, muitos profissionais desistiram de trabalhar na educação prisional.
Eu utilizo nas minhas aulas a metodologia crítico superadora dos conteúdos, isto é, a aplicação dos conteúdos a realidade do aluno, no intuito de refletir e debater os temas da educação física. Acredito que o professor aprende muito com os alunos da EESJ, pois apesar de terem cometido crimes, eles são seres humanos e têm suas histórias de vida.
O valo humano é inquestionável, e acredito que deve ser o princípio básico da escola dentro da prisão. O papel do professor de uma escola do sistema penitenciário, não é de julgar a pessoa que cometeu um crime. Mas acolher e orientar para possibilitar um outro olhar na busca de um novo caminho para sua vida.
Durante as aulas de educação física, os alunos e reclusos relaxam, demonstram alegria e melhoram sua autoestima, sua capacidade física e habilidades corporais. Os benefícios do exercício corporal, quando frequentes são amplos para qualquer indivíduo. Os exercícios corporais podem se tornar hábitos e expressam-se na saúde física e mental, além de melhorar as relações sociais e a disciplina.
Penso que o trabalho do professor de uma escola da prisão é o resgate social das pessoas que foram afastadas da sociedade local, por terem cometido crimes. A missão do professor é auxiliá-los para que se
reparem ao seu retorno a vida fora da prisão.
Muitos apenados buscam uma oportunidade de ingressar na educação superior, melhorar sua condição e ampliar seus conhecimentos. Mas ainda falta o compromisso do Governo Estadual e Federal em relação a oferta de cursos da educação superior às pessoas presas na cidade de Macapá, já que os cursos de graduação não são ofertados no cárcere.
Trabalho numa escola que tem muitos problemas estruturais, com o mínimo de materiais didáticos. Na maioria das vezes, preciso desembolsar recursos próprios para comprar materiais para continuar atividades e projetos, pois não posso contar com recursos do governo. Somando-se a essa dificuldade, ainda tem a falta da merenda escolar em alguns períodos. E quando tem, o cardápio não é diversificado. Além disso, lidamos com a falta de segurança na escola, os agentes penitenciários não ficam à disposição da escola. Algumas vezes eles aparecem na escola. É como se a escola não fizesse parte do complexo prisional ou como se fosse invisível.
Existem duas realidades escolares no cárcere. A primeira é a realidade da Penitenciária Masculina (Cadeião), onde localiza-se ao prédio da EESJ e a segunda realidade é o anexo da escola, que fica em salas cedidas na COPEF. Na primeira, há muitas dificuldades, pois é mais difícil lidar com os homens presos. Geralmente, o ano letivo inicia com um quantitativo bem acima do esperado de estudantes e ocorrem as surpresas: furtos em sala de aula, desvio de condutas entre outros, além dos conflitos e tensões entre eles.
Os alunos da EESJ demoram para entregar os trabalhos nos prazos agendados pelos professores. Eles faltam bastante nas aulas e a frequência é baixa com o passar dos meses. A maioria não leva a sério os estudos, mas alguns participam de parte das atividades práticas como jogos, torneios e outras.
Durante as aulas no anexo da EESJ, eu trabalho mais com o emocional das alunas, do que com as aulas propriamente dita. Elas têm dificuldades de relacionamento, sofrem pelo abandono e carência familiar. Mesmo assim, são participativas nas aulas de Educação Física. Elas adoram dançar e fazer ginástica, inclusive, fazem questão de usar roupas adequadas para praticar atividade física. Portanto, no anexo da escola, as aulas são mais tranquilas e consigo concluir o ano letivo com eficiência, considerando a assiduidade das mulheres presas e alunas da educação prisional.
Todos, homens e mulheres assistem filmes e vídeos educativos de conteúdos transversais, e os professores da EESJ mediam o debate das ideias que surgem. Os homens são mais participativos do que as mulheres nas aulas. Mesmo com as dificuldades enfrentadas, me sinto gratificada em trabalhar nessa escola, pois aprendi muito e continuo aprendendo sobre o comportamento humano no sistema penitenciário.
Cresci como pessoa e me tornei mais humana durante estes nove anos que trabalhei como professora. Considero-me uma militante da Educação Prisional, professora dessa área, que nem é reconhecida na legislação brasileira como modalidade de ensino, mas que existe no ato de trabalhar. A educação prisional da forma como desenvolve-se na EESJ é totalmente diferente de outras escolas públicas da cidade de Macapá. Ainda há muito o que avançar na Educação Prisional no Estado do Amapá e acredito que precisamos de mais leis que nos ajudem a dar passos mais largos na oferta dos serviços educacionais à população carcerária.
No que se refere ao preconceito e racismo por causa de minha origem e cor de pele, infelizmente nós, mulheres negras, somos taxadas pela sociedade por vários motivos. Lembro-me de minha infância, quando os meninos da rua e da escola chamavam-me de “pano preto”, essa expressão que escutava me magoava muito.
Lembro-me também que eu era valente e corajosa, quando me apelidavam, eu corria para bater em cada um deles e os enfrentava sem baixar a cabeça.
Quando eu estava no ensino fundamental e durante as aulas de educação física (dança), eu sempre tinha dificuldade de arrumar um par por causa da minha cor da pele e dos preconceitos de uma forma geral. Geralmente, eu conseguia dançar com um amigo que tinha a mesma cor da pele, pois tanto eu quanto ele, nós erámos deixados de lado. Ninguém queria se aproximar e tão pouco dançar conosco.
O ensino médio, eu cursei em Belém numa escola particular, período que recebi uma bolsa de estudo. Logo de início, percebi que os demais alunos da mesma escola e da turma, não se misturavam com aqueles considerados “pretos e pobres”. Meus amigos eram os outros poucos “pretos e pobres” que também frequentavam a escola. Foi angustiante essa fase de minha vida, mas consegui superar, mesmo sofrendo ataques racistas.
Ainda hoje, percebo que mesmo sendo professora negra, concursada do Governo do Estado do Amapá e mãe solteira, algumas pessoas na sociedade amapaense, olham minhas conquistas profissionais com despeito e preconceito.
Durante a educação superior, quando já adulta, consegui lidar com o preconceito e a discriminação racial. É importante relatar que durante meu trabalho na EESJ, eu não sofri preconceito. Falo isso para dizer que ocupei um cargo público como professora da Educação Prisional, na disciplina de Educação Física, com muita luta e esforço, pois eu vim da periferia, de uma família de classe média e imigrante. Eu sinto orgulho da minha vida pessoal e profissional: sou mulher negra e professora!”.(Andrezza Alexander Coelho, 2020)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A trajetória profissional de mulheres negras na educação prisional foi o foco da pesquisa narrativa, na qual destacamos as contribuições de duas professoras negras que trabalham na educação penitenciária no Estado do Amapá.
As suas narrativas autobiográficas possibilitam as pessoas que nunca tiveram acesso a uma escola instalada dentro da prisão, conhecer e aprender um pouco sobre o trabalho docente desenvolvido no sistema penitenciário. Principalmente, em relação ao ensino de educação física e de alfabetização de adultos presos, cujos direitos à educação são regulamentados na legislação brasileira da área da Educação e Execução Penal, assim como pela legislação estadual (MIRABETE, 1992; BRASIL, 1996; 2015; AMAPÁ, 2016).
No que se refere as experiência das professoras negras na educação prisional, as suas narrativas autobiográficas evidenciaram o trabalho docente em educação física e alfabetização de adultos presos, metodologias, dificuldades enfrentadas, como se sentem ao trabalhar no espaço de privação de liberdade, e ainda, o que pensam de trabalhar na educação prisional, como relacionam-se com os professores, estudantes e demais funcionários, revelando experiências humanas e o que elas aprenderam na escola da prisão.
***Artigo extraído do livro “Mulheres Negras: protagonismo feminino, trajetórias e desafios”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, Almiro Alves de. Educação entre Grades: Um estudo sobre educação penitenciária no Amapá. 2008. 130f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2008.
AMAPÁ. Resolução no 057/2015-CEE/AP. Diário Oficial do Estado, Macapá, n. 6134, 15 de fevereiro de 2016.
ANDRADE, Cleia Pantoja. Entre Muros e Grades: Perspectivas do ensino de história para o aluno recluso da Escola Estadual São José. 2014. 39f. Monografia (Graduação em História) – Universidade Federal do Amapá, Macapá, 2014.
BRASIL. Lei no 9394 de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Brasília, n. 248, 23 de dezembro de 1996. BRASIL. Lei no 13.163 de 9 de setembro de 2015. Diário Oficial da União, Brasília, n. 173, 10 de setembro de 2015.
CLANDININ, D. Jean; PUSHOR, Debbie; MURRAY ORR, Anne. Navigating sites for narrative inquiry, Journal of Teacher Education, Vol. 58, n. 1, p. 21-35, Jan. 2007.
MIRABETE, Julio Fabrini. Execução Penal: Comentários a Lei no 7210 de 11/07/84. 5.ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 1992.
VASQUEZ, Eliane Leal. Sociedade Cativa. Entre Cultura Escolar e Cultura Prisional: Uma incursão pela ciência penitenciária. Rio de Janeiro: CBJE, 2010.