JACAREZINHO
A triste história de vergonha causada pela ignorância
Por Marcelo Bareato
É interessante observarmos o quanto perdemos quando nos negamos a entender e pôr em prática conceitos que ouvimos todos os dias.
Não é de agora que estamos às voltas com a questão dos Direitos Humanos, com afirmações do tipo “malandro não tem direito a ser tratado com Direitos Humanos não”. Vez em sempre recebemos questionamentos sobre o que vale mais, a vida de um traficante ou de um policial, como se a vida fosse diferente e pudesse ser relativizada de pessoa para pessoa.
Destarte, a negativa sobre a aplicação igualitária de direitos e garantias fundamentais interfere sobremaneira nos anseios de todas as classes sociais, levando ao caos e total instabilidade jurídica; senão vejamos.
Quando falamos de Direitos Humanos, estamos a nos referir às garantias jurídicas universais que protegem indivíduos e grupos contra ações e omissões dos governos que atentam contra a dignidade humana, segundo entendimento formado e consolidado pela ONU.
Esse direito, por sua vez, é que embasa o conceito de dignidade da pessoa humana, segundo o qual, todos devem ter respeito uns pelos outros. Inserido na Constituição, no artigo 1.o, inciso III, tem o sentido de que todo e qualquer indivíduo é dotado de direito e, como tal, deve ser tratado com respeito, deve ter uma vida digna, possuindo direitos irrenunciáveis pelo mero fato de existir.
É sobre essa junção de conceitos e direitos que, por exemplo, está inserido o pedido que muitos brasileiros fazem quando se referem a querer ter uma arma e poder andar com ela como garantia da sua vida, ou seja, não há como pedir o porte de arma aos legisladores se não o fizermos invocando os Direitos Humanos e a Dignidade da Pessoa Humana.
Aliado a esses conceitos e de forma indivisível está um conceito razoavelmente novo e quase desconhecido no Brasil, mas que o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD -, tenta implantar no eixo das américas desde 1994, a Segurança Humana. Referido conceito se apoia na perspectiva de que todo o ser humano tem obrigatoriamente 3 direitos básicos, oponíveis entre todos e que obriga o Estado ao respeito incondicional, quais sejam: 1) direito de viver sem temor, 2) direito de viver sem carência e 3) direito de viver com dignidade.
Percebam que ter direitos e preservar a dignidade enquanto pessoa são inerentes a pessoa humana e, por essa razão, irrenunciáveis e de aplicação obrigatória independente de raça, credo, condição financeira ou marginalização.
As origens são remotas e encontram eco nos artigos 2, 3 e 5, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Resolução 217, III, da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948.
Se assim o é, não há como escolher por acertos e erros, quem pode ser portador de tais direitos e quem, por indicação de terceiros, não poderá alegar em seu favor que tais direitos sejam respeitados.
É seguindo esse raciocínio, por demais elementar, que o Supremo Tribunal Federal, em agosto de 2020, com vistas a ADPF 635, tendo por base o desrespeito a dignidade da pessoa humana experimentado nas comunidades cariocas, proibiu operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia, ações essas que colocassem em perigo a vida de moradores e fossem cravadas de extrema violência, sob pena de responsabilidade civil e criminal.
Outro fator que precisa chegar ao conhecimento de todos que nos lêem, é que a polícia militar brasileira segue as determinações dos Governos de Estado, sob a orientação básica de ser uma força preventiva e só atuar de forma repressiva em último e extremado caso e, por esse motivo, tem poder para prender e conter, mas não matar.
A seu turno, a polícia civil, tem função investigativa, atua como braço do judiciário e da mesma forma, não possui autorização para matar a não ser em casos de legítima defesa, direito esse assegurado a todo e qualquer cidadão, conforme previsão do artigo 23 e sua combinação com 25, ambos do Código Penal.
Dito isso, qualquer indivíduo que seja rotulado como “cidadão de bem” ou “bandido”, possui o mesmo e irrestrito direito de ser processado de forma legal (com estrita obediência aos ditames da lei), exercer seu direito a ampla defesa e, se for o caso, ser penalizado. É importante lembrar que no Brasil apenas executamos pessoas em caso de guerra externa declarada, quando então, a morte poderá ser indicada através de pelotão de fuzilamento, sendo proibida qualquer atividade letal, seja em que caso for, sob pena de responsabilização pelo crime de homicídio.
Com vistas a toda essa introdução, muito nos impressiona quando vemos nas mídias comentários que remetem ao conceito de racismo estrutural (o conceito está ligado a ideia das interações entre instituições, que produzem resultados prejudiciais às pessoas não brancas e que remonta a 1897), ao falar da trágica operação realizada no dia 5 de maio de 2021, quando cerca de 200 agentes entre policiais civis e militares adentraram ao conjunto de domicílios criado de maneira desordenada e densa, sem acesso a serviços públicos essenciais e que no Brasil chamamos de favela, mais precisamente, Favela do Jacarezinho, operação conhecida pelo fantasioso nome de Exceptis.
Lugar de filhos ilustres como o ex jogador Romário da Seleção Brasileira, atual Senador da República, com população estimada muito acima de 38 mil habitantes, atendida por Unidade Pacificadora desde 2013, por linha ferroviária e por importantes avenidas que cruzam o local ligando a Zona Central do Rio a Baixada Fluminense, a favela do Jacarezinho foi invadida na manha da quinta-feira, 05 de maio próximo passado, com a pretensa perspectiva de prisão de 21 aliciadores de menores para o tráfico e, após 6 horas, protagonizou a operação mais letal da história do Rio de Janeiro,
deixando um saldo de 29 pessoas mortas, das quais apenas 4 eram alvos da operação e 1 era policial militar.
Impressionante pelos números e vítimas, mas também pelo banho de sangue derramado junto a um lugar de ruas estreitas, casas humildes que serviram de barricadas para os policiais e por vitimar civis que estavam acordando e se preparando para o trabalho, pessoas que não estavam sequer na lista de procurados, ganhou maior destaque junto aos jornais televisivos e a alguns incautos quando começaram a enaltecer a atitude policial com dizeres como: “a operação foi um sucesso” (Tino Jr. Balanço Geral, Record, Rio de Janeiro), “tratar a ação policial no Jacarezinho como chacina é ofensivo” (Joel Pinheiro), “ao tratar como vítimas traficantes que roubam, matam e destroem famílias, a mídia e a esquerda os iguala ao cidadão comum, honesto, que respeita as leis e o próximo. É uma grave ofensa ao povo que há muito é refém da criminalidade. Parabéns à Polícia Civil do Rio de Janeiro” (Jair Bolsonaro).
Percebam que nem mesmo o Chefe Maior do Estado Brasileiro parece ter noção do que significa o texto Constitucional a que ele está obrigado a defender sob toda e qualquer ameaça e quão importante é essa missão para controle do caos e soberania.
De toda sorte e para que sirva de comparativo, mostrando que atitudes brutais como essa na cidade do Rio de Janeiro não são casos isolados, é interessante a consulta as reportagens que demonstram o ocorrido em 11 de maio de 2013, na Favela Coreia, Zona Oeste da Cidade Maravilhosa, onde um helicóptero da Polícia Militar, com alto poder de fogo e sem a confirmação de quem estava dentro de um veículo a ser perseguido, abriu fogo na perspectiva de que o Traficante Matemático ali estivesse. Foram 9 quarteirões e 2 minutos de fogo intenso sobre um veículo que estava em movimento na favela e por um local onde pessoas caminhavam, onde motos transitavam, num verdadeiro espetáculo macabro que deixou vários prédios alvejados e exterminou o referido traficante e os ocupantes do carro. Outros exemplos podem ser facilmente estudados quando acessamos a Corte Interamericana de Direitos Humanos e lá procuramos pelos crimes praticados no Brasil e julgados pela Corte Internacional.
A pergunta a ser feita é por demais simples: pode o policial, seja ele militar ou civil, decidir a vida de qualquer pessoa? Dessa primeira indagação decorrem as demais: um policial que cumpre mandado de prisão em unidade pacificada pode decidir quando valem ou deixam de valer conceitos e direitos como dignidade da pessoa humana, direitos humanos e segurança humana? A Constituição Federal pode ser relativizada por qualquer pessoa que julgue ter direitos maiores daqueles expressos por garantias fundamentais?
A resposta e suas derivações remontam ao início do nosso artigo, meu Caro Leitor! Se queremos ter direitos, antes precisamos garanti-los a todos e a qualquer pessoa, se queremos fazer valer princípios seja com a finalidade de moradia, estadia ou aquisição de armamento, primeiro temos que dizer ao Estado Brasileiro que temos capacidade de escolher o que é melhor e sermos tratados como cidadãos.
De nada vale permitir que a polícia relativize direitos e garantias fundamentais, que o judiciário vire as costas para obrigação de defender a Constituição e depois mergulhar em infinitos processos tentando fazer valer direitos que nos foram
negados com a aquiescência de seus legítimos detentores. E que não nos enganemos: a triste história de vergonha que defendemos hoje patrocinada por aqueles que desprezam vidas menos privilegiadas, mas que jamais agiriam de tal forma em locais mais abastados, delimita a vergonha com a qual seremos medidos em momentos futuros.
O autor é doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.o 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO, Advogado Criminalista, membro da Comissão Especial de Segurança Pública da OAB Nacional, Conselheiro Nacional da ABRACRIM, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, Presidente da Comissão Especial de Direito Penitenciário e Sistema Prisional da OAB/GO, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).