BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A SUSPENSÃO DE LIMINAR 1.504.
O incêndio ocorrido na Boate Kiss, em Santa Maria/RS, no dia 27 de janeiro de 2013, que vitimou 242 pessoas e deixou outras 636 feridas, é sem sombra de dúvidas, uma das páginas mais tristes de nossa história. Uma tragédia sem precedentes, que ficará eternamente marcada em nossa memória.
Feito este breve, mas necessário introito, podemos nos debruçar sobre os aspectos processuais penais que adornam o julgamento deste caso, especificamente a Suspensão de Liminar n. 1.504 de relatoria do Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux.
Antes disso, cabe relembrar que em 23/01/2020, entrou em vigor a Lei n. 13.964/2019, intitulada de “Lei Anticrime”, que alterou dentre vários dispositivos a redação do art. 492, inciso I, alínea “e”, determinando que o juiz presidente no caso de condenação, “mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos”.
Trata-se de hipótese de execução antecipada (ou provisória) da pena, nos casos onde o(s) réu(s) são condenados a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão.
É bem verdade que o STF, já admitiu outrora, a execução provisória do julgado no âmbito do procedimento do júri (ver por todos: HC 147.957/RS, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 23/11/2017; HC 148.720/AL, Rel. Min. Edson Fachin, j. 31/10/2017; HC 145.496/RS, Rel. Min. Rosa Weber, j. 05/10/2017).
Todavia, oportuno salientar que ambos os precedentes são anteriores ao julgamento do mérito dos ADCs 43, 44 e 54, que como sabido, estabeleceu que o cumprimento da sentença penal condenatória, só pode ser realizado após o seu trânsito em julgado, sob pena de violação ao princípio da presunção de inocência.
Já sob a égide da nova legislação, o STJ firmou entendimento de que é, “indevida a execução provisória das penas, ainda que em condenação, proferida pelo
Tribunal do Júri, igual ou superior a 15 anos de reclusão, por violação ao princípio da presunção de inocência previsto no art. 5º, LVII, da Constituição Federal” (nesse sentido: HC 558.894/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA
TURMA, julgado em 06/04/2021, DJe 12/04/2021; AgRg no HC 565.921/PE, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 19/05/2020, DJe 28/05/2020).
No mesmo diapasão caminha a doutrina.
Nas palavras de Aury Lopes Jr. (2021, p. 934) tal dispositivo “viola a presunção constitucional de inocência, na medida em que trata o réu como culpado, executando antecipadamente sua pena, sem respeitar o marco constitucional do transito em julgado”.
Em simetria, são as lições de Renato Brasileiro (2020, p. 1540) “a busca por um sistema penal mais eficiente não autoriza a conclusão no sentido de que a soberania dos veredictos admite a execução provisória de decisão condenatória proferida pelo Júri. Se a permanência do acusado em liberdade após a condenação em primeira instância pelo Júri representa um risco à execução da pena ou à garantia da ordem pública, impõe-se a decretação da prisão cautelar. Agora, ausente o periculum libertatis a que se refere o art. 312 do CPP, não se pode admitir a execução provisória de uma prisão penal, sob pena de se negar ao acusado perante o Júri não apenas o respeito à presunção de inocência, que a Constituição Federal estende até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Em suma, o art. 492, inciso I, alínea “e”, padece de inconstitucionalidade. Afronta o tanto quanto disposto no art. 5º, LVII, da CF/88 (ver por todos: PRADO, Geraldo. O estatuto jurídico da prisão processual no júri e a tese da soberania dos vereditos; PITOMBO, Sérgio de Moraes. Da inconstitucional execução antecipada da prisão no júri).
Pois bem.
Após o midiático julgamento em plenário e ante a iminência de prolação de sentença penal condenatória, a defesa de um dos quatro réus impetrou ordem de habeas corpus em caráter preventivo, objetivando, em síntese, a manutenção do status libertatis do imputado.
Deferida a medida liminar e sustados os efeitos da decisão que determinou a imediata prisão dos réus (à luz do art. 580 do CPP, o efeito da decisão liminar foi estendido à todos os réus), ingressou o Ministério Público com uma medida de Suspensão de Liminar, frente o STF.
O Presidente da Corte, Min. Luiz Fux, deferiu a medida liminar, sob os argumentos de que, “uma vez atestada a responsabilidade penal dos réus pelo
Tribunal do Júri, deve prevalecer a soberania de seu veredito, nos termos
do artigo 5º, XXXVIII, “c”, da Constituição Federal, com a imediata
execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, ante o interesse
público na execução da condenação” e “a elevada culpabilidade em concreto dos réus, conforme reconhecida pela sentença condenatória, tendo em vista os
eventos pelos quais eles foram responsabilizados, resultantes em tragédia internacionalmente conhecida, com 242 vítimas fatais e mais de 600
feridos”.
Por derradeiro, invocou como subsídio à sua decisão o §7º, do art. 4º, da Lei 8.437/92 e o art. 297 do RISTF.
O equívoco, data vênia, é manifesto. Senão vejamos:
(i) A soberania dos veredictos não é requisito autorizador da prisão no âmbito dos procedimentos do júri. É dizer, a soberania dos veredictos está intrinsicamente ligada à imutabilidade do julgamento popular, sendo defeso à qualquer órgão jurisdicional arvorar-se nos porquês da decisão tomada pelo povo. Guilherme de Souza Nucci (2010, p. 388) explicita que, “respeitar a soberania dos veredictos significa abdicar da parcela de poder jurisdicional, concernente ao magistrado togado, para, simplesmente, fiscalizar e buscar corrigir excessos e abusos, mas sem invadir o âmago da decisão, crendo-a justa ou injusta”.
(ii) A Lei 8.437/92 não tem aplicação no campo penal. É restrita às sentenças proferidas em processos de ação cautelar inominada, no processo de ação popular e na ação civil pública, enquanto não transitadas em julgado (art. 4°, §1º, da Lei 8.437/92);
(iii) Os réus, como bem esboçado no decisão liminar, permaneceram em liberdade durante a maior parte do iter processual, não causando nenhum entrevo à persecução penal. Um sistema de justiça que precisa prender para “resguardar” sua credibilidade, é um sistema falido;
(iv) Houve verdadeira supressão de instância, porquanto da decisão proferida no TJ em sede liminar, caber o manejo de agravo interno e posteriormente, a interposição de recursos frente o STJ. Soa como paradoxal, um Tribunal que invoca diuturnamente enunciados sumulares como o 691, admitir um “recurso” per saltum.
(v) A nova sistemática adotada pelo Pacote Anticrime (art. 492, inciso I, alínea “e”, do CPP) é norma que interfere no poder de punir, dotada de caracteres materiais e processuais (norma híbrida ou mista). Resta afastado, portanto, o princípio da imediatidade (art. 2º, do CPP). Sua incidência está restrita aos fatos praticados após a entrada em vigor da Lei n. 13.964/2019.
Mas como se sabe, em terrae brasilis, não há nada que não possa piorar.
Quando do julgamento do mérito do HC, após ter ciência de dois votos (sabe-se lá como) que seriam aptos a concessão da ordem, o MP-RS fez novo pedido no bojo da SL. 1.504, qual seja, a sustação dos efeitos da decisão (concessiva) em sede de habeas corpus.
Pedido acatado.
Em outra decisão, o Min. Luiz Fux, sustou os efeitos de “eventual” decisão colegiada de concessão do Habeas Corpus nº 70085490795 pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
Em síntese, numa só tacada (ou melhor, em duas), o Presidente do Supremo Tribunal Federal, destruiu preceitos básicos e comezinhos do processo penal, como a presunção de inocência (art. 5º, LVII, CR), devido processo legal (art. 5º, LIV, CR), juiz natural (art. 5º, XXXVII, CR), favor rei, e sobretudo, relegou à míngua a garantia do habeas corpus (art. 5º LXVIII c/c art. 647, CPP).
Mas não é só.
A decisão prolatada fez surgir um inusitado (para se dizer o mínimo) instituto jurídico no Brasil: o habeas corpus concessivo que não concede a liberdade!
Tempos estranhos…
Anote-se ademais que o processo penal, em nosso vernáculo é delineado pelo já citado princípio do favor rei, princípio este que nas palavras de Rogério Schietti Machado Cruz (2013, p. 93), “além de constituir uma regra fundamental para a interpretação da norma processual penal, e também um princípio geral de inspiração que, em concreto, deve encontrar sua manifestação nos preceitos jurídicos particulares”.
Outrossim, mister sublinhar que derivam do favor rei, como bem rememora o citado autor (2013, p. 94) a previsão de recursos e ações impugnativas exclusivas da defesa, v.g. embargos infringentes e de nulidade (art. 609, § único, CPP), revisão criminal (art. 621, CPP) e o habeas corpus (art. 647, CPP).
Com efeito, o habeas corpus, na lição de Rogério Lauria Tucci (2004, p. 419) “circunscreve-se à tutela da liberdade física do indivíduo”, tratando-se (é bom que se frise) de garantia irrenunciável, cuja suspensão, reforça Nereu José Giacomolli (2014, p. 396) encontra óbice expresso no art. 27.2 da CADH.
É, pois, na visão da Corte Interamericana uma garantia judicial indispensável a proteção dos direitos, não podendo ser restringido e nem abolido, nos termos do art. 7.6 da CADH (Opiniões Consultivas n. 8/1987 e 9/1987).
No caso em tela, o solipsismo judicial (Lênio Streck), mostra novamente uma de suas facetas mais sombrias, dá lugar ao processo penal do espetáculo (Rubens Casara) e apedreja o elenco de garantias fundamentais do processo penal.
O Poder Judiciário, em sua função de salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais não pode ser irracional. Não pode curvar-se diante do apelo público e/ou midiático. Deve exercer seu mister contramajoritário, pois afinal, como bem assentado por Rubens Casara (2015, p. 12) “no processo penal voltado para o espetáculo não há espaço para garantir direitos fundamentais”.
Não se faz justiça com injustiça. O respeito à Constituição é corolário de uma sociedade democrática. Já dizia Luis Alberto Warat, “direitos sem garantias são promessas de amor”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias processuais nos recursos criminais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.
NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
TUCCI, Rogerio Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.