O Poder Estatal Como Ferramenta De Marginalização Da Pobreza
O Poder Estatal Como Ferramenta De Marginalização Da Pobreza
Sobrevivência. Palavra chave que define o instinto mais primitivo de todas as espécies de seres vivos no planeta. Viver mais um dia é uma conquista e tanto nessa realidade que pode ser tenebrosa e incerta na maioria das vezes.
Embora seja a espécie dominante do planeta, não é diferente com os seres humanos. São frágeis e indefesos quando confrontados com outras espécies ou até mesmo com seus iguais. O comportamento pode ser desmedido e inconsequente quando desprovidos de regras. Por tal motivo, abre-se mão de liberdade em troca de convívio coletivo em nome da segurança e perpetuação da espécie.
O homem era andante guiado por estações do ano e sempre precisava migrar por causa da estiagem, que causava falta de alimentos e água. Tudo mudou com a descoberta da agricultura há cerca de 12 mil anos.
Após tal feito, seres humanos se agruparam formando os primeiros conglomerados populacionais.
Assim nasce a propriedade privada, pois com o surgimento das aldeias e povoados, alguns cidadãos começaram a se destacar por sua relevância na produção de alimentos e por decorrência disso acumular bens materiais. Sobre o tema, discorre Marx: “a propriedade privada nasce como consequência da exploração da agricultura e do consequente domínio de um grupo sobre outro”.
Como é de se esperar, poucos proprietários eram detentores de quase toda a autoridade de produção e abusavam de seu poder econômico.
Os proprietários dominantes precisaram criar e moldar uma estrutura de poder para preservar seu patrimônio e consolidar a força que possuíam em decorrência dele. Algumas famílias se destacavam com o acumulo de bens materiais e se consolidaram no poder, se transformando em monarquias, ou seja, se criou a figura de um líder e seus auxiliares que detinham poder absoluto nas questões que envolviam o dia-a-dia dos habitantes das aldeias. A primeira que se tem noticia é a do Japão:
Diz a lenda que a monarquia do Japão existe desde o ano 600 a.C., quando Jimmu, filho de Amaterasu, a deusa do sol, se transformou em imperador. Os imperadores que vieram depois mantiveram a tradição de se serem considerados divindades e de serem descendentes de Amaterasu. Foi Hirohito, o pai de Akihito e avô de Naruhito, quem renunciou publicamente a sua divindade no final da Segunda Guerra Mundial, quando o Japão, derrotado, se rendeu. (BBC, 2020)
Existem ainda hoje diversas monarquias que mantêm em poder de seus territórios, como as monarquias japonesa e britânica, por exemplo.
A desigualdade social não é algo exclusivo do período contemporâneo. Crimes eram comuns nos primórdios da vida em comunidade.
É incerto apontar a origem exata da pena como sanção, pois sua criação perde-se no tempo. O que se sabe é que, foi criada para proteger a propriedade e integridade de patrimônio e punir crimes capitais como homicídio, por exemplo. A respeito disso assevera Bittencourt, em sua obra Falência Da Pena De Prisão, 2011:
A origem da pena, todos recordam, é muito remota, perdendo-se na noite dos tempos, sendo tão antiga quanto à humanidade. Por isso mesmo é difícil situá-la em suas origens. Quem quer que se proponha aprofundar-se na história da pena de prisão corre o risco de equivocar-se a cada passo. As contradições que se apresentam são dificilmente evitadas, uma vez que o campo encontra-se cheio de espinhos. Por tudo isso não é tarefa fácil.
No princípio de sua aplicação a pena era corpórea e se pagava os crimes com suplícios que atingiam o corpo do condenado. Em alguns casos, matava-se toda a família do acusado. Na Grécia antiga, durante vários séculos, no tocante às ofensas de caráter religioso e politico as sanções eram coletivas. Os traidores e tiranos eram mortos e com eles toda a sua família.
Em Roma, que surgiu de uma comunidade agrícola em 753 a. C. na península itálica e se tornou um dos maiores impérios do mundo antigo, as leis eram aplicadas pelos Patrícios – um grupo de dez homens – que tiveram a função de criar um conjunto de leis que ficou conhecido como Lei Das XII Tábuas.
A punição era exibida de forma espetaculosa em praças públicas onde os acusados eram enforcados, esquartejados ou envoltos em chumbo derretido. A pena, em sua aplicabilidade da época, servia para que outras pessoas soubessem que, se cometessem os erros do condenado teriam o mesmo destino e com isso causava-se medo na população. A esse respeito exemplifica FOCALUT em sua obra Vigiar e Punir, 2014
Enquanto era feita a leitura da sentença de condenação, estava de pé no cadafalso, sustentado pelos carrascos. Era horrível aquele espetáculo: estava envolto em grande mortalha, a cabeça coberta por um crepe, o parricida estava fora do alcance dos olhares da silenciosa multidão. E sob aquelas vestes misteriosas e lúgubres, a vida só continuava a se manifestar através dos gritos horrorosos, que se extinguiram logo, sob o facão.
O que é considerado certo ou errado depende da época e do senso comum que é imposto pela classe dominante sob a massa.
. A esse respeito, Luís Carlos Valois, em seu livro O direito Penal da Guerra Às Drogas, 2021, onde analisa a criação de legislações e punições de tais substâncias reflete sobre algo que abrange todo tipo penal e que aqui se faz pertinente mencionar:
Conceitos, preconceitos, morais individuais e até características de personalidade influenciando legislações inteiras e tratados internacionais, desvendam um direito vivendo de aparência de cientificidade, enquanto tem suas estruturas elaboradas muitas vezes de acordo com viés pessoal e tendencioso de uma única pessoa favorecida por circunstâncias politicas.
Na idade média (476 – 1453), havia uma combinação de igreja e estado, e isso fazia com que tudo que não agradasse ou colocasse os dogmas religiosos em risco fosse considerado errado e criminoso.
As ordálias ou juízos de Deus foram utilizados pelo direito germânico nesse período histórico. Neste ordenamento jurídico, aplicava-se um julgamento no qual não havia interferência dos homens. O acusado deveria provar sua inocência se submetendo a vários testes que provariam sua inocência. Rogerio Greco em seu Curso De Direito Penal exemplifica um desses procedimentos: “O acusado deveria segurar, durante determinado tempo, uma pedra incandescente ou colocar sua mãos em água fervente. Se suportasse o sofrimento significava que era inocente e que Deus o havia absolvido; caso contrário, estaria comprovada sua culpa”.
Quem mais sofreu nesse tempo foram as mulheres que eram queimadas vivas por supostos atos de bruxaria, o que, em suma, eram atos de curandeirismo e outras praticas medicinais que eram à época desconhecidos ou não compreendidos pelos quais ocupavam o poder naquele momento da história.
Em seu auge, nos séculos 16 e 17, estima-se que a Inquisição matou até 100 mil pessoas, entre mulheres, homens e crianças. As mulheres eram o principal alvo quando a perseguição era a possíveis adeptos à bruxaria. Os motivos são diversos e contestáveis. Fosse por estarem conquistando mais liberdades, ou quebrando normas sociais vigentes, as mulheres eram vistas como uma terrível ameaça. O clérigo católico Heinrich Kramer afirmou em 1487, no seu livro, Malleus Maleficarum, que “as mulheres têm tendência natural a se tornarem bruxas” (OBSERVATÓRIO DO TERCEIRO SETOR, 2021).
A partir do século XVI começa a surgir um movimento chamado humanismo penitenciário e alguns estudiosos do tema se notabilizaram e contribuíram para o sistema que está em uso nos dias atuais. Antes, a confissão era tida como rainhas das provas, entretanto, não há limites quanto a forma de consegui-la. Sob esse prisma assevera BECCARIA, 1764
Cada ato de nossa vontade é invariavelmente proporcional à força da impressão em nossos sentidos. A impressão de dor pode crescer até um grau que, ocupado por inteiro a mente, compelirá o sofredor a utilizar o método mais rápido para livrar-se do sofrimento (…) e ele acusará a si mesmo dos crimes dos quais é inocente.
Com o passar do tempo, a punição publica e suplícios que envolviam o corpo dos condenados recebem criticas da população e se tornam reprováveis do ponto de vista social. Isso ascende alerta nos lideres, pois uma população insatisfeita pode ser perigosa. As criticas vão se avolumando. O sofrimento do condenado faz com que os telespectadores de tais crueldades tenham por ele uma concepção de vitima e dos juízes os algozes. Beccaria, em seu livro Dos Delitos e Das Penas descreve tal percepção de seus contemporâneos: “O assassinato que nos é apresentado como um crime horrível vemo-lo sendo praticado sem nenhum remorso”.
A punição se torna algo que é contida como demasiada e de intensidade por muitos tida como elevada. Isso faz com que o processo penal se adeque a realidade que agora vem a porta dos operadores do direito e executores das penas. Nesse diapasão, já disse FOCAULT:
Não foi o acaso, não foi o capricho do legislador que fizeram do encarceramento a base e o edifício quase inteiro de nossa escala penal atual: foi o progresso das ideias e educação dos costumes.
O suplício público do corpo do condenado desaparece aos poucos, restando-se aplicado em poucos países, porém a punição ainda permanece desproporcional e isso é percebido pela sociedade da época. Não obstante a realidade o tema também foi retratado pela literatura. Victor Hugo, em seu Livro Os Miseráveis conta a historia de Jean Valjean que, sem alternativa, furta um pedaço de pão para saciar a fome de seu sobrinho e por isso permanece preso por dezenove anos cumprindo trabalhos forçados nas prisões da França.
O poder sempre precisa ser ocupado e não permite vácuo. O problema é que sempre alguém é escolhido a vitima de seus piores atos, seja por classe social, raça, cor, etnia, características físicas, gênero ou orientação sexual. Ao longo dos séculos é possível observar como o diferente é tido como parâmetro para o que é ruim.
Na Grécia antiga, mais precisamente em Esparta, cidade-estado (900 a.C. e 192 a.C), os recém-nascidos que não se enquadravam nos padrões da sociedade eram descartados, abandonados para morrer ou assassinados de pronto.
Pouco tempo atrás, a deformidade física servia para identificar criminosos patológicos. Lombroso (1836–1909), um dos expoentes da criminologia, que é a ciência que estuda o crime e criminoso, em seu livro O Homem Delinquente (1876) cita características do criminoso: “má formação do crânio, grande orbita ocular, protuberância na parte inferior traseira da cabeça, dentre outras”.
Na história nacional, o hospital colônia localizado na cidade de Barbacena, do estado de Minas Gerais (1903 – 1980) foi uma instituição que marcou a história da psiquiatria no Brasil. Voltado ao tratamento de pessoas portadoras de deficiência mental, não era necessário comprovação do diagnóstico para que o paciente fosse internado e por isso acaba se tornando depósito de pessoas tidas pela sociedade como indesejáveis. Daniela Arbex, em seu livro Holocausto Brasileiro, 2019, narra:
A estimativa é que 70% dos atendidos não sofressem de doença mental. Apenas eram diferentes ou ameaçavam a ordem pública. Por isso o Colônia tornou-se destino de desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras, alcoólicos, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos.
Nos dias atuais, infelizmente, não se tem muito que se comemorar.
Sim, os suplícios acabaram, entretanto, quem define o que é crime ainda são os detentores do poder e esses não vivem a realidade que abrange toda a população.
O estado é falho e com a ausência das instituições, as periferias viram campo de guerra dominado por facções em que jorram sangue de jovens que, em muitos casos, não tiveram oportunidade de se alfabetizar. A falta de estrutura básica, saneamento e asfalto, por exemplo, fazem com que o crime organizado justifique sua presença no dia-a-dia da população carente. Muitas vezes, são os traficantes que oferecem alimento e acabam recrutando jovens para serem introduzidos no mundo do crime e esses, por sua vez, aceitam tais propostas devido a falta de emprego. Para piorar ainda mais esse quadro, o estado quando entra em bairros carentes, na maioria das vezes, traz consigo mortes e eventos traumáticos que faz com que o trafico e as milícias se fortaleçam, pois essa inversão de valores faz com que os viventes dessa realidade tenham a certeza de que o estado só destrói enquanto o poder paralelo se faz presente e atuante para a melhora de sua qualidade de vida.
De forma estrutural o estado coloca pessoas para lutar contra seus iguais.
Faz parte da rotina os programas policiais que exibem de forma espetaculosa e sensacionalista os crimes que ocorreram nas ultimas 24h. São ferramentas de dominação e disseminação de ódio. Dominação por conta do medo que atinge todos os telespectadores. A disseminação de ódio, por sua vez, ocorre quando, sem muita reflexão e nenhum conhecimento jurídico ou sociológico a respeito, em busca de audiência, os apresentadores expressam opiniões em que sempre predominam o nós contra eles.
A dita e tão falada guerra às drogas é outro instrumento dentre os quais o estado se serve para a perseguição e eliminação devidas pretas e pobres. É claro que negros não são as únicas vitimas dessa já enraizada ferramenta de disseminação de agressão, ódio e medo, mas quantas noticias foram veiculadas durante o ano passado que, a polícia adentrou um condomínio de alto padrão em busca de um traficante?
Valois diz faz uma analise do perfil do traficante que se encontra no sistema carcerário brasileiro: Não é o que lucra com o tráfico. É aquele que comercializa pequenas quantidades, que não entende porque se pode vender alimento transgênico, fazer bilhões de lucros com vendas de remédios que causam mais dependência e ele não pode comercializar uma planta que pode ser cultivada em qualquer lugar
O outor, ainda, acertadamente diz:
Guerra às drogas é sinônimo da criminalização de certas relações que o ser humano trava com algumas substâncias, mas drogas não morrem, não levam tiros e não são encarceradas, enfim, aos poucos o termo guerra às drogas vem revelando sua fase exclusivamente desumana de uma guerra contra as pessoas.
Essa é uma questão de saúde pública que vem sendo trada como politica criminal e esse tratamento só serve para eliminar vidas. É uma guerra que não se tem como ganhar e já nasce derrotada pela forma violenta que foi implementada no mundo todo. Médicos receitam a reclusão. Agem como se agentes da lei fossem e não percebem que a fria e crua interpretação da norma gera apenas encarceramento em massa e afasta cada dia mais uma solução para esse problema que se perdura por séculos.
O poder punitivo estatal encontra seu ápice na execução das penas impostas aos infratores. O ambiente carcerário é o local onde se pode visualizar a incompetência do estado em sua essência. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em levantamento realizado em 2019, o país tem 773.151 pessoas privadas de liberdade. O percentual de presos provisórios (sem uma condenação) é de 33%. Entre os presos, 61,7% são pretos ou pardos. Segundo o Depen, em 2014, 75% dos encarcerados têm até o ensino fundamental completo, um indicador de baixa renda.
A história demonstra a todos que, infelizmente, as coisas raramente mudam, porém alguns acontecimentos servem como alerta para todos. O encarceramento em massa não melhora a personalidade e não faz a ressocialização do apenado. Causa apenas sensação de tranquilidade à população que, em sua maioria, acredita que trancar o criminoso e jogar a chave fora é aplicação da justiça. Entretanto, essa visão rasa causa ainda mais problemas para todos.
O apenado não ficará preso para sempre e provavelmente sairá pior do que quando ingressou no sistema penitenciário. Como bem disse Bezerra da Silva, expoente da cultura brasileira, cantor e compositor de musicas que narravam o cotidiano da população brasileira de sua época e usava o samba como forma de critica social e reflexão: “Veja bem, não pedi nada emprestado, mesmo assim dizem que devo dolar adoidado ao famigerado FMI”.
Referências:
BITENCOURT, Cezar Roberto, Falência da pena de prisão: causas e alternativas, 4ª edição, São Paulo, editora Saraiva, 2011
FOCALUT, Michael: Vigiar e punir Nascimento da prisão, 42º edição, São Paulo – Editora Vozes, 2014
VALOIS, Luís Carlos: O direito Penal da Guerra às Drogas, 4ª edição, Belo Horizonte, São Paulo, Editora D’Plácido, 2021
BECCARIA, Cesare: Dos Delitos e Das Penas, 2ª edição, São Paulo, editora Hunter Books, 2017
LOMBROSO, Cesare: O Homem Delinquente, 1ª edição, São Paulo, editora Ícone, 2017
HUGO, Victor: Os Miseráveis, 1ª edição, São Paulo, editora Martin Claret, 2014.
ARBEX, Daniela: Holocausto Brasileiro: enocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil, 1ª edição, São Paulo, editora Intrínseca, 2019.
GRECO, Rogério. Curso De Direito Penal I, 17ª edição, São Paulo, editora Impetus, 2015.
Departamento Penitenciário Nacional (Depen)
Instituto Brasileiro do Direito de Defesa