O DIREITO À SAÚDE NO AMBIENTE PRISIONAL BRASILEIRO: REFLEXÕES SOBRE O “DEVER SER” E O “SER”
O DIREITO À SAÚDE NO AMBIENTE PRISIONAL BRASILEIRO: REFLEXÕES SOBRE O “DEVER SER” E O “SER”
Érick Vanderlei Micheletti Felicio[1]
Marcelo Lamy[2]
A dita saúde prisional reflete a negligência estatal quanto à saúde pública. Portanto, nesse contexto, existem condicionantes de saúde – como saneamento básico e educação – que assumem posições determinantes e, por isso, não podem ser olvidadas na análise acerca do precário quadro sanitário do sistema carcerário brasileiro.
Isso significa que as condições de vida de uma população interferem diretamente na concretização do direito social e fundamental à saúde, extrapolando-se, por conseguinte, a seara das regras institucionais, de modo que as políticas sanitárias não podem constituir algo isolado, mas devem representar providências estruturais nos casos dos então negligenciados, ou seja, dos ainda abandonados pelo Estado, especialmente quando estes se encontrem privados de liberdade pelo encarceramento. Caso contrário, qualquer política pública voltada à saúde da população carcerária – por mais bem intencionada que se apresente – falhará, aliás, como falhado tem e até o momento.
Pelo exposto, pode-se asseverar que a saúde de uma população é determinada mais pelo estilo ou pelas condições de vida das pessoas (condicionantes sociais) – como educação, informação, renda, trabalho, nutrição, alimentação, habitação, ambiente saudável, por exemplo – do que pela própria disponibilidade e qualidade dos serviços de saúde. Há que se reconhecer, como consequência, que a solução para o enfrentamento do problema acerca da concretização do direito fundamental em debate, no sistema prisional, também envolve a consolidação de políticas públicas de saúde, como defendem SÁ et al. (2013, p. 284), ao citarem SOLA (1998):
“[…] o processo de formação de políticas públicas é fruto de uma dinâmica de fatores sociais, econômicos, políticos e ideológicos cuja característica é a complexidade. […] É válido relembrar que a escolha política relacionada à criação e implementação de uma política pública específica para o sistema prisional só foi objeto de ‘escolha’, por parte do poder público, mais de vinte anos após o reconhecimento da saúde como direito em uma carta política democrática e republicana, que não faz distinção em relação ao destinatário desse direito, pois, apenados ou não, todos têm direito à saúde. Nesse ponto, temos os negligenciados, ou seja, aqueles que são ‘esquecidos’ pelo Estado.”.
Para VOLIC & BAPTISTA (2005), também mencionados por SÁ et al. (2013, pp. 284-285):
“[…] a negligência pode ser observada em diversos aspectos das relações entre os homens, especialmente quando há uma dependência de cuidados e de proteção de uns em relação a outros. Ou seja, quando ocorre uma relação de dependência, na qual necessidades específicas de uns só podem ser supridas por seus cuidadores (aqui a figura do cuidador pode ser lida como Estado), não no sentido paternalista, mas no sentido Estado prestador/concretizador de direitos fundamentais. O sujeito da negligência é aquele a quem é atribuída a responsabilidade dos ‘cuidados’, no caso em tela, os apenados.”.
Conclui-se o seguinte: uma atitude poderá ser considerada negligente quando não seja acidental e desde que expressa por meio de ação negativa ou ausência voluntária de exercício desses cuidados pelos seus responsáveis, a produzir repercussões graves na vida daquele que é (ou deveria ser) o cuidado.
Ou seja: o Poder Público, ao não atentar para o evidente problema sanitário do sistema prisional, e assim, ao deixar de agir para reverter tal quadro precário vislumbrado, pode ser considerado negligente.
Ainda segundo SÁ et al. (2013, p. 285), a ausência de cuidados configuradora da negligência “é também caracterizada pela dor ou pelo prejuízo que ela proporciona quando não supre necessidades fundamentais do outro, tais como a saúde.”. E prosseguem:
“Esses cuidados estão relacionados às necessidades básicas fundamentais que podem ser materiais, psicológicas ou sociais. A saúde é a necessidade mais vital dentre todas, pois sem condições mínimas de saúde, não há vida.
Ainda sobre as necessidades, é oportuno observar e reforçar a ideia de que nesse rol estão as necessidades de limites, de regras, de liberdade, de afeto, de felicidade, de ajuda, de comunicação, de proteção, dentre outras. Não há como falar de sobrevivência dentro de um presídio sem condições mínimas de saúde, de salubridade, dentre outras.”.
Destarte, a negligência nas prisões brasileiras tem muitas e diferentes formas.
NOGUEIRA & PIRES (2004, p. 755) acentuam que o direito à saúde está vinculado a uma condição de cidadania ativa, isto é, a “uma constante luta contra qualquer constrangimento que impeça o seu exercício.”. Não pode ser resumido à formalização em leis e sem sua concretização cotidiana. Para os autores, tal direito social deve ser considerado, no plano político, como uma instância de luta coletiva, portanto, deslocado do plano meramente formal e não histórico.
E, segundo DALLARI (1988), a efetividade desse direito se dará de acordo com o grau de desenvolvimento socioeconômico e cultural do Estado e conforme a participação dos indivíduos no processo.
Nesse contexto, quanto à efetividade e universalidade do direito à saúde no ambiente prisional brasileiro – cuja natureza é de garantia fundamental, individual e coletiva, destarte, indisponível e interpretado como cláusula pétrea do sistema aberto de normas e princípios representado pela Constituição Federal de 1988 (cf. artigos 5.º, § 1.º, § 2.º e § 3.º; 60, § 4.º; e 196) – há evidente abismo entre o formal e o material ou inegável paradoxo entre os teores de normas e a realidade.
Para ilustrar esse quadro, dentre tantos exemplos cabíveis, destaca-se o conteúdo de disposições das Regras de Mandela.
Editadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1955, as Regras Mínimas para o Tratamento de Presos passaram por revisão em maio de 2015 e incorporaram recentes doutrinas de Direitos Humanos. Tal novo conjunto de normas, denominado Regras de Mandela, aborda cuidados específicos à saúde das pessoas em situação de privação de liberdade, de modo a representar documento internacional em sintonia com os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro (cf. artigo 198, da Constituição Federal de 1988; e Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990).
Segundo as observações preliminares das Regras de Mandela, estas buscam “estabelecer os bons princípios e práticas no tratamento de presos e na gestão prisional”, observada a variedade de condições jurídicas, sociais, econômicas e geográficas no Mundo.
Dentre seus princípios, tem-se que “todos os presos devem ser tratados com respeito, devido a seu valor e dignidade inerentes ao ser humano. Nenhum preso deverá ser submetido à tortura ou tratamentos ou sanções cruéis, desumanos ou degradantes e deverá ser protegido de tais atos, não sendo estes justificáveis em qualquer circunstância.”. Ademais, explicita-se que “o encarceramento e outras medidas que excluam uma pessoa do convívio com o mundo externo são aflitivas pelo próprio fato de ser retirado destas pessoas o direito à autodeterminação ao serem privadas de sua liberdade.”. Por conseguinte, assevera-se que “o sistema prisional não deverá agravar o sofrimento inerente a tal situação, exceto em casos incidentais, em que a separação seja justificável, ou nos casos de manutenção da disciplina.”.
Ainda como princípio, as autoridades competentes “devem oferecer educação, formação profissional e trabalho, bem como outras formas de assistência apropriadas e disponíveis, inclusive aquelas de natureza reparadora, moral, espiritual, social, esportiva e de saúde. Tais programas, atividades e serviços devem ser oferecidos em consonância com as necessidades individuais de tratamento dos presos.”.
Os serviços de saúde são especificamente abordados nas regras 24 a 35 do referido documento normativo. Estipula-se que “os presos devem usufruir dos mesmos padrões de serviços de saúde disponíveis à comunidade, e os serviços de saúde necessários devem ser gratuitos, sem discriminação motivada pela sua situação jurídica”, bem como, projeta-se que “os serviços de saúde serão organizados conjuntamente com a administração geral da saúde pública e de forma a garantir a continuidade do tratamento e da assistência, inclusive nos casos de HIV, tuberculose e outras doenças infecciosas, abrangendo também a dependência às drogas.”.
Para isso, as unidades prisionais deveriam oferecer serviços de saúde prestados por equipes interdisciplinares, compostas de pessoal qualificado o suficiente para “avaliar, promover, proteger e melhorar a saúde física e mental dos presos, prestando particular atenção aos presos com necessidades especiais ou problemas de saúde que dificultam sua reabilitação.”. As equipes, ainda, possuiriam independência clínica, experiência em Psicologia e Psiquiatria, além de garantirem a prestação de serviços odontológicos qualificados à população prisional.
Pelas regras supramencionadas, as unidades prisionais deveriam assegurar “o pronto acesso à atenção médica em casos urgentes”, e assim, que as pessoas encarceradas fossem transferidas para instituições ou hospitais especializados, a fim de serem submetidas a tratamento ou cirurgia necessários.
Quanto aos estabelecimentos destinados às mulheres privadas de liberdade, as Regras de Mandela exigem “acomodação especial para todas as necessidades de cuidado e tratamento pré e pós‑natais” e procedimentos específicos para que os nascimentos ocorram em hospitais, portanto fora das unidades prisionais. Outra determinação é a de que crianças eventualmente nascidas em ambientes carcerários não tenham, nas respectivas certidões, os registros desses locais como os de seus nascimentos.
Determina-se, ademais, por meio das Regras de Mandela, que os agentes de saúde devem examinar todas as pessoas encarceradas, não apenas logo em que admitidas nos estabelecimentos e instituições prisionais, mas também depois disso e sempre que necessário. Afinal, mediante tal procedimento:
- Identificariam as necessidades de atendimento médico e adotariam os tratamentos devidos;
- Apurariam a prática de maus-tratos contra presos recém-admitidos, bem como sinais de sofrimento psicológico ou de qualquer outro tipo, causados pelo encarceramento, “incluindo o risco de suicídio ou de lesões autoprovocadas, e sintomas de abstinência resultantes do uso de drogas, medicamentos ou álcool”;
- Promoveriam medidas ou tratamentos apropriados e individualizados;
- Determinariam o tratamento cabível e o asilamento clínico temporário de presos portadores de doenças infectocontagiosas; e
- Avaliariam a “aptidão do preso para trabalhar, praticar exercícios e participar das demais atividades, conforme for o caso”.
Dentre outros pontos constantes das Regras de Mandela, sob a perspectiva da saúde prisional, tem-se: 1) a confidencialidade dos exames médicos; e 2) as questões de ética nas relações entre agentes de saúde e encarcerados por eles atendidos.
Enfatiza-se o dever de proteção da saúde física e mental das pessoas presas, mediante prevenção e tratamento de doenças baseados exclusivamente em fundamentos clínicos. Ainda, que se deve garantir a aderência à autonomia do preso quanto à própria saúde. Para tanto, há previsão sobre o direito ao exercício – ou não – do consentimento informado.
Desse modo, proíbe-se, inclusive, que as pessoas segregadas sejam submetidas a experimentos médicos ou científicos potencialmente prejudiciais à saúde, como remoção de células, tecidos ou órgãos. Porém, admite-se a doação de células, tecidos ou órgãos aos seus (das pessoas presas) parentes. Permite-se, inclusive, a participação em pesquisas acessíveis à comunidade, voltadas à obtenção de resultados benéficos à saúde.
O Supremo Tribunal Federal (STF), por sua vez, firmou entendimento no sentido de que, se o Estado figura como parte de Convenção Internacional de Direitos Humanos, “todos os seus órgãos, inclusive seus juízes, também estão subordinados àquela, o que os obriga a zelar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam enfraquecidos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e finalidade. […]”. Assim, “[…] a União assume as obrigações neles pactuadas, sujeitando-se, inclusive à supervisão dos órgãos internacionais de controle, porquanto só ela possui personalidade jurídica no plano externo. […]” (STF – RECURSO EXTRAORDINÁRIO n.º 592.581-RS – Pleno – Rel. Min. RICARDO LEWANDOWISKI – Julgado em 13/8/2015 – DJe de 1/2/2016; apud STF, 2018, pp. 9-10).
E mais: o Pretório Excelso decidiu que a interpretação, nesses casos, deve conduzir à adoção de normas e de conclusões mais favoráveis à pessoa humana, concedendo-lhe ampla proteção jurídica advinda de adequado processo hermenêutico, “[…] de modo a viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs. […]” (cf. STF – HABEAS CORPUS n.º 93.280-SC – 2.ª Turma – Rel. Min. CELSO DE MELLO – Julgado em 23/9/2008; apud STF, 2018, pp. 94-95).
Contudo, as Regras de Mandela, embora avançadas disposições de Direitos Humanos cogentes e autoaplicáveis no Brasil, constituem exemplos de normas que não se tornaram efetivas e que não geraram as repercussões esperadas quanto à elaboração de políticas públicas pelo Estado brasileiro, cujo panorama carcerário infecto vive contínuo e crescente caos, onde impera sistemática violação a direitos fundamentais da pessoa humana, isto é, o denominado “estado de coisas inconstitucional”[3].
A obra de PACHUKANIS (2017) alerta sobre a distância entre o “dever ser” e o “ser”. Para tal jurista russo, esse distanciamento constitui uma barreira instransponível para a compreensão e a efetivação do Direito, como uma postura de manutenção do status quo. O Direito que se encerrasse em uma hierarquia de normas (“dever ser”), portanto sem contato com o fenomenológico (“ser”), seria apenas como uma espécie de máscara que encobriria as lutas de classes e as relações de poder.
O Estado – conforme MARX & ENGELS (1982) – é produto da contradição da sociedade dividida por antagonismos irreconciliáveis entre as classes econômicas, em função das relações de produção, para a qual se faz necessário um poder aparentemente acima e distante dela.
Há uma pretensa separação entre o interesse público – resguardado pelo Estado – e o interesse privado – inerente à sociedade civil e capitalista.
Contudo, como o Estado nasce do conflito entre os interesses de classes, é o desejo da classe economicamente dominante que ele representa ao mesmo tempo em que é por meio dele (Estado) que essa classe se faz politicamente prevalecente, ao utilizar dos meios repressivos para a exploração da classe oprimida, vulnerável e negligenciada (MASCARO, 2002).
O interesse privado se sobrepõe ao público, mas de forma mascarada, por meio do Direito que se pretendia universal: “os direitos concedidos aos cidadãos são regulados de acordo com as posses dos referidos cidadãos, pelo que se evidencia ser o Estado um organismo para a proteção dos que possuem contra os que não possuem.” (ENGELS, 1982, p. 137).
A promulgação do direito à saúde no Brasil é fruto de movimentos sociais envolvidos no processo de redemocratização do país e produtores da Reforma Sanitária Brasileira. Ocorreu, segundo CAMPOS (2008), concomitantemente ao neoliberalismo. Isso favoreceu o mercado e o afastamento do Estado dos setores sociais.
Para FLEURY (2009) houve retrocesso na construção da saúde como valor público. Afinal, sob a orientação neoliberal, a saúde passou a ser bem de consumo individualizado, inclusive com o aval e a promoção estatal. A classe capitalista e burguesa avança com incentivos fiscais, transferências de serviços e prestações para o setor privado, cortes de gastos públicos nas políticas sociais e decorrente atrofia do papel estatal de efetivação dos direitos fundamentais.
Com o avanço desse quadro neoliberal, a serviço exclusivo do capital, tem-se a retirada de direitos conquistados pelos movimentos populares. Consequentemente, o acesso aos serviços de saúde torna-se algo negociável e limitado ao alcance daqueles que possuem condições financeiras para comprá-lo.
Então, a regra de ouro desse novo estilo de cidadania mercadológica é a seguinte: a pessoa somente será considerada cidadã, se integrada ao mercado como consumidora ou produtora. E isso, por óbvio, vale para a saúde, de modo que tudo estará, de algum modo, ligado ao aspecto predominantemente econômico (QUEIROZ, 2006).
Para MERHY (2012) não são recentes os fatos reveladores de que, no Brasil, algumas vidas valem mais do que outras, bem como, de que certas pessoas possuem mais direitos do que as demais. Assevera que houve uma reversão da aposta inicial e constitucional acerca do SUS, tanto no sentido organizacional quanto no diretivo, regulatório, avaliativo, financeiro e no próprio processo de cuidado em saúde. O SUS passou a exercer uma função meramente suplementar ao setor privado, pois, inverteram-se os papeis.
Resta estabelecida uma situação contraditória: de um lado o direito universal e institucionalizado; de outro, sua negação à população vulnerável e hipossuficiente, a qual é negligenciada.
Trata-se de confirmação da análise de MARX (1982), no sentido de que a mera afirmação do direito como universal esconde as diferenças existentes entre explorados e exploradores, as lutas de classes presentes no capitalismo e, por fim, determina o império da lógica burguesa.
O jusnaturalismo evolui pela necessidade de se assegurar o funcionamento do sistema por meio de instâncias estabelecidas pelas relações produtivas, e assim, resta configurado o Direito como algo classista, reduzindo-se a instrumento manejado, em seu bojo, no interesse da classe exploradora.
Destarte, um direito tido como universal e igualitário apenas existe sob a perspectiva legal ou formal, isto é, permanece longe da concretude. Afinal, no sistema vigente, não obstante os conflitos, trabalhadores e capitalistas são, perante o Direito, considerados como iguais, ou seja, são assim tratados formalmente, mas permanecem obscuras as enormes desigualdades materiais entre referidas classes (MASCARO, 2002).
Há um tradicional descaso quanto às políticas públicas vinculadas às matérias penais, a desvelar que, no Brasil, à pessoa em situação de privação de liberdade é negada a adequada condição de paciente.
Para terem esperança de acesso a serviços inerentes à saúde, os detentos submetem-se aos valores hierárquicos e às relações de dívida e gratidão.
Tem-se, ainda, situações de pagamentos pelos serviços de saúde extramuros: aquilo que o Estado deve prover, conforme os ditames legais, no caso das pessoas encarceradas, passa a ser de responsabilidade das famílias dos presos, desde que tenham condições financeiras a tanto ou sejam constituídas de pessoas que procuram e pressionam os serviços públicos de saúde (extra e intramuros) aos quais os encarcerados pretendem ter acesso.
Nota-se que a presença das famílias durante a execução penal tem importância essencial na própria sobrevivência da população carcerária.
Posto isso, não há que se cogitar de efetivação, no ambiente prisional, do princípio da universalidade, um dos norteadores do SUS. Aliás, se fosse assegurado aos presos, seria encarado, pela sociedade civil liberta, como mais direito ou indevido privilégio, visão esta desvirtuada pelo adicional e indevido julgamento moral e moralista a que submetidos os encarcerados, pois galgados à posição de inimigos da sociedade, legitimando-se, na prática social, uma espécie de bis in idem.
Se o reconhecimento do outro como igual é tido como fator imprescindível para a admissão de seus direitos fundamentais, o julgamento moral sobre o comportamento de uma pessoa que tenha rompido o pacto social acaba por autorizar a sua discriminação, impedindo que a ela seja reconhecida, por exemplo, o direito de acesso à saúde, pois é uma infratora e, por isso, resta prejudicada, na prática, a efetivação igualitária e universal de tal imprescindível direito social.
Em síntese: não mereceria consideração a pessoa que tivesse praticado conduta de afronta ao tido como legal e moralmente correto, destinando-se ao agente do ato reprovável a limitação ou a cessação do acesso aos serviços de saúde, efeito este considerado por naturalmente decorrente da punição, como sanção precipitada ou adicional.
A penalização, por conseguinte, revela-se entendida como o conjunto resultante do isolamento provocado pela sanção penal de prisão, oriunda de julgamento jurídico via processo penal, e da constante violação de direitos fundamentais a que a pessoa segregada é submetida, proveniente, desta vez, de adicional julgamento moral e moralista sobre o anterior comportamento social do preso e durante a experiência carcerária.
Quando a privação de direitos essenciais decorre da prisão dita provisória, essa violência é tão absurda quanto a da primeira hipótese. Significa julgamento moral e antecipado, como efeito de custódia tida como cautelar e que, em regra, deriva de uma cultura de superencarceramento, esta geradora de constantes antecipações de eventuais penas privativas de liberdades.
Pune-se jurídica e moralmente, de forma antecipada e mais de uma vez, de modo desproporcional, não individualizado, ilegal e desumano, o que acaba por atingir também os familiares das pessoas nessas situações.
Conclui-se que a efetivação do direito à saúde das pessoas presas vai além da garantia de acesso às ações e serviços públicos de saúde. Exige o rompimento da lógica punitivista, o que fora observado na luta inerente ao Movimento Antimanicomial. E tal rompimento pressupõe o deslocamento do eixo espacial e a alteração do modelo de concepção da solução dos conflitos do Estado para a comunidade, promovendo-se laços de solidariedade e controle local (ZAFFARONI, 2001).
OLIVEIRA & DAMAS (2016. p. 27) ainda alertam que nas prisões:
“[…] não se encontram apenas membros de organizações criminosas. Muitas pessoas que cometeram algum tipo de delito, mas não têm conexão com o crime organizado, também lá estão. Há ainda os que aguardam julgamento ou uma decisão judicial de soltura ou transferência para outro órgão prisional, e os inocentes, ou autores de delitos que normalmente não resultariam em prisão, mas que por circunstâncias diversas se encontram detidos, e as crianças, filhas das prisioneiras, que vivem em companhia de suas mães apenadas. Finalmente, há os ‘casos sociais’, pessoas que, embora já com ordem de soltura simplesmente não têm para onde ir, caso de muitos internos de Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, os chamados hospitais-prisões. […] É, portanto, uma população diversa, a qual a sociedade, e o Estado, se dispõem a punir, custodiar e reintegrar socialmente. Para esse fim há necessidade de agentes prisionais qualificados, técnicos especialmente capacitados e gestão competente.”.
Referidos autores ainda promovem uma descrição lúgubre das prisões, ensejadora de reflexão:
“A VIDA É COMO UM ROMANCE. Cheia de estímulos, aventuras, surpresas, desfechos inesperados, risos e lágrimas. As prisões constituem verdadeiras exceções à vida. Como um conto mal escrito, monótono, repetitivo, sem ilusões, sem perspectivas, e com desfechos previsíveis de um final quase sempre infeliz. Os personagens parecem viver um período sem tempo, no qual a paisagem não sinaliza mudança, nem para bem nem para mal. É sempre a mesma e pesa sobre o cotidiano um ar sufocante em que as tensões jamais se esvanecem.”.
Situação tão desoladora remete ao seguinte trecho da obra de TOLSTÓI (2010):
“Se fosse formulado o problema psicológico: como fazer para que pessoas da nossa época, pessoas cristãs, humanas, simples e boas, pratiquem as maldades mais terríveis sem se sentirem culpadas, só haveria uma solução possível – seria preciso que se fizesse exatamente como se faz agora, seria preciso que tais pessoas fossem governadores, diretores, oficiais, policiais, ou seja, que em primeiro lugar estivessem convencidas de que existe um trabalho chamado serviço de Estado, no qual é possível tratar as pessoas como se fossem coisas, sem relações fraternas e humanas com elas, e em segundo lugar que essas mesmas pessoas do serviço do Estado estivessem unidas de tal forma que a responsabilidade pelo resultado de suas ações para as outras pessoas não recaísse em ninguém isoladamente. Fora de tais condições, não existe possibilidade em nossa época de cumprir tarefas tão horríveis como as que vi hoje.”.
FELICIO & LAMY (2020, p. 64) concluem que a precariedade da saúde nos estabelecimentos prisionais brasileiros, promovida com a conivência estatal, é expressão potencializada do “sistema penal subterrâneo” (ZAFFARONI, 2002; PIERANGELI, 2015) em prejuízo da saúde pública.
É preciso alinhar a elaboração das políticas de cuidados em saúde das pessoas presas a uma nova e urgente perspectiva humanitária, para a construção de um direito à saúde que ultrapasse a mera formalidade e de um SUS que seja concretamente universal, integral e equitativo.
AZEVEDO CAMPOS, C. A. de. O estado de coisas inconstitucional e o litígio estrutural. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural.
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[1] Advogado Criminalista. Tribuno do Júri. Bacharel em Direito pela Universidade de Sorocaba (UNISO). Títulos acadêmicos de Especialista (com capacitação à docência superior) em Direito Constitucional Brasileiro pela Universidade São Francisco (USF) e de Mestre em Direito da Saúde (dimensões individuais e coletivas) pela Universidade Santa Cecília (UNISANTA). Palestrante. Escritor e Professor convidado nas áreas das Ciências Criminais. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e à Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM). É membro efetivo e integrante da Comissão de Direitos Humanos do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).
A Dissertação de Mestrado do autor Érick Vanderlei Micheletti Felicio (cf. FELICIO, É. V. M. O direito à saúde das pessoas em situação de privação de liberdade pelo encarceramento. Dissertação de Mestrado. Universidade Santa Cecília. Programa de Pós-Graduação stricto sensu em “Direito da Saúde: dimensões individuais e coletivas”. Santos/SP, 2019), desenvolvida sob a orientação do Professor Doutor Marcelo Lamy, relaciona-se intrinsecamente com as pesquisas que tal autor continuou a desenvolver depois do encerramento do ciclo do Mestrado. Diante disso, há ideias e alguns trechos de textos do referido autor, presentes em seus estudos anteriores acerca da temática principal, que foram replicados e atualizados aqui.
[2] Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito Administrativo pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor Permanente e Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito da Saúde (dimensões individuais e coletivas) da Universidade Santa Cecília (UNISANTA). Professor da Faculdade de Direito, Diretor (geral e de pesquisas) do Observatório dos Direitos do Migrante e Coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da UNISANTA. Líder do Grupo de CNPq/UNISANTA “Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável”.
[3] A expressão “estado de coisas inconstitucional”, adotada pelo STF no julgamento da ADPF n.º 347/DF, foi importada da Corte Constitucional Colombiana para a designação da violação sistemática dos Direitos Humanos nas prisões. Sobre o tema: v. AZEVEDO CAMPOS, C. A. de. O estado de coisas inconstitucional e o litígio estrutural. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural.