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A INEFICIÊNCIA DOS MECANISMOS PROTETIVOS DE URGÊNCIA PREVISTOS NA LEI 11.340/2006

A INEFICIÊNCIA DOS MECANISMOS PROTETIVOS DE URGÊNCIA PREVISTOS NA LEI 11.340/2006

JÚLIA BRASIL NOLDIN
OAB/SC 62.831

1 INTRODUÇÃO

Inexistem dúvidas de que a violência doméstica contra a mulher é um elemento
histórico da sociedade, que iniciou em seus primórdios. Também é sabido que quando ocorre
no seio familiar, na maioria das vezes perpetrada por aqueles por quem a vítima possui afeto e
carinho, é ainda mais agravada a situação vivenciada.

Os dados nunca mentiram. Ainda, diante do ciclo da violência vivenciado por
inúmeras vítimas, não é raro nos depararmos com mulheres incapazes de perceber a situação
de violência em que se encontram, não identificando seus sofrimentos e submissão. Além disso,
uma boa parte das mulheres vítimas de violência doméstica sequer conhece os seus mecanismos
de proteção, pela ineficiência de políticas públicas que permitam que essa informação chegue
até elas.

Questiona-se, portanto: seria a Lei Maria da Penha e seus instrumentos protetivos
eficazes de maneira suficiente a fim de proteger a vítima? Espera-se que, seja possível através
deste artigo, uma maior reflexão do assunto, de forma a incentivar os debates, aumentando a
proteção e amparo às vítimas da violência doméstica e familiar no Brasil.


2 MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA


A Lei 11.340/2006 elenca um rol de medidas para tentar dar efetividade ao seu
propósito de proteção da mulher em situação de violência. As providências, contudo, não se
limitam às medidas protetivas de urgência previstas no art. 22 e art. 24 da lei. “A adoção de
providências está condicionada à vontade da vítima. Ainda que a mulher proceda o registro
da ocorrência, é dela a iniciativa de pedir proteção por meio de medidas protetivas” (DIAS,
2019, p. 160).


Salienta-se que, “a maioria das vítimas que solicita a proteção não deseja o
processo criminal do agressor, mas tão somente se livrar da situação de violência”
(FERNANDES, 2015, p. 143). Complementa-se que, à Lei 11.340/06 foi adicionado, em 2018,
pela Lei n. 13.641/2015, o crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência.


O PROCEDIMENTO PROTETIVO


Com o advento da Lei Maria da Penha, criou-se, para a autoridade policial, o dever
jurídico de proteção à vítima. O procedimento protetivo, contudo, trouxe alguns contornos da
violência, além do problema da revitimização, questões que impõem um cuidado especial
durante à persecução penal diante da vítima de violência.


“O destrato, o descaso, a falta de orientação, a culpabilização da vítima
pela violência,
a negativa em registrar a ocorrência, o tom jocoso, a
minimização da dor ou gravidade da
violência são condutas
inadequadas por parte das autoridades que incrementam o sofrimento
da vítima. (FERNANDES, 2015, p. 194)


A efetividade do procedimento nos crimes de violência doméstica e familiar exige
uma leitura cautelosa, diante das particularidades do caso concreto, visto, que caso não haja
cautela, o retorno do silêncio da vítima durante fase da lua-de-mel pode fadar o instrumento
protetivo ao fracasso, em virtude da falha estatal de proteger a vítima e repreender o agressor.


As providências de cunho protetivo estão previstas no art. 11 da Lei 11.340/06 e,
consistem na proteção policial, comunicação com o Ministério Público e com o Poder
Judiciário. Existe, portanto, uma necessidade de capacitar os agentes estatais e estruturação das
delegacias especializadas no atendimento à vítima, sendo essencial para a proteção da mulher.
Ademais, a informação adequada precisa chegar ao alcance da vítima, quanto aos seus direitos,
instrumentos protetivos e às redes de atendimento e proteção.


“É certo que a Polícia Civil tem função predominantemente investigatória, atuando
após a prática da infração com a finalidade de colher elementos que possibilitem o oferecimento
da denúncia” (FERNANDES, 2015, p. 206).


Leciona Maria Berenice Dias:


Infelizmente, ainda que haja determinação legal para que a Polícia Civil
dê prioridade à criação de Delegacias Especializadas de Atendimento à
Mulher – DEAM […] e mantenha equipes especializadas para o
atendimento e investigação das violências graves contra a mulher
(LMP, art. 12-A), ainda é pouco significativo o número de tais espaços
neste imenso Brasil. (DIAS, 2019, p. 199)


Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, é necessário que a
autoridade policial identifique qualquer dificuldade da vítima ao acesso à Justiça, como
incapacidades físicas, psicológicas, sociais e culturais. Esses fatores, muitas vezes, levam a uma
dependência em relação ao agressor e aumentam, inclusive, as chances de novo ataque à sua
integridade.


“Não há como se conceber, nos dias atuais, uma Polícia Civil unicamente
repressiva, que atua exclusivamente para apurar infrações penais. E a
Lei Maria da Penha a recriou no âmbito da violência doméstica, tornando-a interventora e protetora da vítima.”
(FERNANDES, 2015, p.
206)


Entrementes, como forma de auxiliar na atuação protetiva, a Lei Maria da Penha
instituiu uma inovação, trazendo uma equipe de atendimento multidisciplinar para ajudar as
vítimas de violência doméstica e familiar. Esta equipe, desenvolve o essencial trabalho de
orientação encaminhamento, prevenção e demais medidas voltadas à ofendida e aos seus
familiares, bem como para ajuda ao agressor.


“A equipe multidisciplinar, além de atuar no processo, tem por
finalidade “recuperar” os envolvidos no ciclo da violência […] Além da
atuação processual, a equipe deve desenvolver programas para a vítima,
o agressor e a sua família. Sabe-se que o processo não interrompe a
violência, apenas a descortina, para que o Estado intervenha”
(FERNANDES, 2015, p. 228).


Ainda, observa-se imprescindível a conscientização da sociedade através de
políticas públicas capazes de suprir quaisquer necessidades das vítimas, visto que “a fragilidade
emocional e até mesmo física em que se encontra a mulher, a hipossuficiência, faz com que o
silencio seja o maior dos cúmplices dos episódios de violência” (DIAS, 2019, p. 287).


Torna-se, portanto, “necessária a existência de órgãos, instrumentos e
procedimentos capazes de fazer com que as normas jurídicas se transformem de existências
abstratas dirigidas à vontade humana, em ações concretas” (DIAS, 2019, p. 287).


3 DADOS DA VIOLÊNCIA NO ESTADO DE SANTA CATARINA


Em Santa Catarina, a gravidade maior encontra-se na desintegração das redes de
apoio. O estado, no ano de 2018, ocupou o segundo lugar no Anuário Brasileiro de Segurança
Pública nos casos de violência doméstica. O conjunto da falha estatal em diversos fatores
impede que a mulher fique assistida, reafirmando uma sensação de vulnerabilidade.


O Fórum Brasileiro de Segurança Pública traz os dados da violência doméstica
contra a mulher no primeiro semestre do ano de 2020, nos quais observa-se que o Estado de
Santa Catarina, quanto aos crimes contra a integridade física, teve um total de 7.275 casos
registrados.


Quanto aos crimes contra a liberdade individual, perpetrados por meio de violência
moral, o estado registrou cerca de 14.900 casos. Relativamente aos crimes contra a dignidade
sexual, foram registradas 1.483 ocorrências (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA
PÚBLICA, 2020, on-line).


No intuito de melhorar a conexão entre as redes de apoio à violência, o Ministério
Público de Santa Catarina e o Governo do Estado instituíram o Pacto Estadual Maria da Penha, com o objetivo de conectar os setores de proteção, contudo, o pacto tem se mostrado ineficiente.
Sheila Sabag, conselheira da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e
Familiar – CEVID/SC diz que “Estamos tentando implementar o pacto desde sua assinatura,
mas encontramos muitas dificuldades”. A conselheira ainda afirma que “As redes de proteção
à mulher no estado não são integradas. Os dados não são únicos, são vários dados que não se
conectam” (RABELO, 2020, on-line).


Da mesma forma, Fabiana de Souza, gerente de políticas para mulheres da
Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social aduz que:


Existem fragilidades na articulação dessas redes, sim. Sabemos que
existem importantes programas, projetos, serviços sendo desenvolvidos
aqui, mas precisamos melhorar a articulação intersetorial das políticas
e atuar transversalmente. (RABELO, 2020, on-line)


A situação foi agravada com a chegada da COVID-19, momento em que muitas
instituições de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher permaneceram
fechadas por semanas, inviabilizando o atendimento às mulheres em situação de violência.


Outro dado alarmante é observado quando se analisa a quantidade de locais de
atendimento à mulher em situação de violência. De acordo com um levantamento realizado pelo
site Azmina, de 2016, dos 296 municípios catarinenses, apenas 35 possuem delegacias
especializadas à mulher (DPCAMI), contudo, essas não existem apenas para o atendimento das
mulheres em situação de violência, atendem também crianças, adolescentes e idosos
(RABELO, 2020, on-line).


Ademais, no estado de Santa Catarina, apenas os municípios de Florianópolis e
Dionísio Cerqueira possuem Centros de Referências Específicos às Mulheres em Situação de
Violência (CREMV). Em 65 municípios, esse tipo de assistência é realizado pelos Centros de
Referências em Assistência Social (CRAS). Também, evidenciando ainda mais a situação
precária do estado de Santa Catarina, ressalta-se a mínima quantidade de abrigos, apenas dez e,
de acordo com a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social, a taxa de ocupação nesses
locais no mês de abril estava em 46,7% (RABELO, 2020, on-line).


Por toda essa situação, além da falha na integração da rede, Santa Catarina continua
a produzir números assustadores. De janeiro a julho do ano de 2020 foram 23 assassinatos e 92
tentativas de homicídio contra as mulheres em âmbito doméstico e familiar. As ocorrências de
ameaça, lesão corporal, calúnia e outros são registradas centenas todos os dias e, ainda mais
assustador é o fato de que no estado, nove mulheres são estupradas diariamente, conforme informa a Secretaria de Segurança Pública (SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA DE
SANTA CATARINA, 2020, on-line).


Entrementes, observa-se no Poder Judiciário catarinense, 41.743 processos em
andamento envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, estando atrás apenas
dos processos sobre tráfico de drogas e, ainda, existem 47 casos enquadrados no crime de
feminicídio que são anteriores a 2015 (EVANGELISTA, [2020], on-line).


A Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência (CEVID), através da
desembargadora Salete Sommariva, questiona-se acerca do aumento do número de feminicídios
ao se depararem com cerca de 50 registros deste crime por ano no Estado de Santa Catarina.
Além disso, chama atenção ao fato de que, de 47 processos relacionados ao feminicídio, apenas
quatro vítimas possuíam medidas protetivas de urgência, de modo a escancarar a falha estatal
no cumprimento da eficiência da Lei Maria da Penha (EVANGELISTA, [2020], on-line).


Conforme os dados do Ligue 180, de todas as ocorrências atendidas pelo serviço,
Santa Catarina registrou 32,18% das ligações e, como bem salientado anteriormente, caso seja
emergência, a vítima deve ligar para o número 190 da Polícia Militar. Assim, o Anuário
Brasileiro de Segurança Pública – 2020, alerta que, no estado, somente no primeiro trimestre
do ano de 2020, foram registradas 12.182 ligações ao número emergencial da Polícia (BRASIL,
2019d, on-line).


Todos os dados demonstram a nocividade da violência doméstica contra a mulher,
porque, diante de uma sociedade machista, esses lares repletos de violência contribuem para
reprodução quase que perpétua de uma desigualdade de gênero, partindo de modelos fundados
nos estereótipos de força, poder masculino e a submissão feminina aos homens.


Muito embora tenha ocorrido mudanças nas últimas décadas relativas aos direitos
das mulheres, esses lares violentos, somados ao pensamento arcaico enraizado na sociedade
contribuem para manter a ideia de que a mulher deve ser subordinada ao homem e aos seus
desejos.


4 CONCLUSÃO


Percebe-se, portanto, que muito embora exista um enorme esforço da Lei
11.340/2006 em viabilizar a aplicabilidade de seus instrumentos protetivos e de assistência à
vítima, a realidade brasileira ainda apresenta diversos desafios para que sejam efetivamente
cumpridas.


Essa busca incessante pela efetividade e eficiência dos meios de combate à
violência doméstica é encontrada na deficitária destinação de recursos financeiros para a implementação de políticas públicas de assistência à mulher em situação de violência, a criação
de delegacias especializadas no atendimento à mulher, e demais meios para que a vítima se
sinta segura em pedir a proteção do Estado.


Além disso, é necessária a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
Contra a Mulher em quantidades e localidades suficientes para o atendimento das vítimas. Vale
salientar que a Lei Maria da Penha dispôs em seu corpo sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, contudo, não impôs a sua implementação,
como também não estabeleceu um prazo para que fossem instalados. E, muito embora o
Conselho Nacional de Justiça tenha recomentado (Recomendação n. 09/2007) a criação destes
Juizados especializados e a adoção das medidas, ainda percebe-se um número extremamente
reduzido destes (BRASIL, 2007, on-line).


Além disso, mormente a todas as questões, tem-se que os instrumentos protetivos
para coibir a violência doméstica e familiar, não são, por si só, suficientes. São necessárias,
portanto, políticas públicas de assistência às vítimas de forma a fortalecer suas autonomias, de
forma que o Estado passe a agir também no período “pós-processo”, para que a violência sofrida
não volte a ocorrer.


Salienta-se a importância da intervenção da equipe multidisciplinar que “permite
incorporar conhecimento extrajurídico ao processo, avaliando-se de modo mais circunstanciado
a vítima, o agressor e a família” (FERNANDES, 2015, p. 236). De acordo com Hermann (2008,
p. 198), a efetiva aplicabilidade dessa resolução depende da real existência desses programas
em locais de possível acesso à vítima. Por isso, é necessário, muitas vezes, que ela seja
encaminhada a programas outros que não específicos para sua condição.


Denota-se, portanto, que a Lei Maria da Penha é repleta de falhas na sua
aplicabilidade e eficiência. São encontradas falhas na execução da lei, visto que o Estado não
oferece o suporte necessário para que seja atingida a eficiência completa do texto normativo.


Falha-se em construir abrigos preparados, com uma equipe multidisciplinar atuante,
capazes de atuar nos inúmeros casos, de forma a melhor amparar a vítima, assegurando certa
proteção àquelas que passaram pela situação de violência.


Diante de tudo, é necessário que o Estado aja com celeridade acerca da
aplicabilidade de modo eficiente da Lei Maria da Penha. A implementação de mecanismos, por
meio de políticas públicas educacionais, que objetivam desestruturar os pensamentos
enraizados na nossa sociedade acerca da desigualdade de gênero seria um pontapé inicial para
que o poder público agir de forma a conscientizar e tornar eficiente o dito na Lei.

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