INSTITUTOS TRANSACIONAIS PENAIS E O DESESTÍMULO AO CÁRCERE: UMA POLÍTICA PRÓ DESVIO.
INSTITUTOS TRANSACIONAIS PENAIS E O DESESTÍMULO AO CÁRCERE: UMA POLÍTICA PRÓ DESVIO.
1 INTRODUÇÃO
As medidas despenalizadoras, conceitualmente, são medidas que tendem a reduzir a gravidade da punição aplicada e afastar a incidência da pena privativa de liberdade ao agente desviante. O grande crescimento de institutos penais transacionais desde a criação do Código Penal de 1940 – ainda vigente – revela uma tendência de desestimulo ao encarceramento.
A implementação de diversos institutos despenalizadores a partir da lei 9099/95, bem como no âmbito do pacote anticrime, do Acordo de Não Persecução Penal, a própria Sursis Penal ou a Substituição da Pena Privativa de Liberdade, gestadas juntamente com o Código, marcam esse panorama, que não é exclusivo do sistema brasileiro.
Entendemos que esse novo paradigma global (que se concretiza nos países mais desenvolvidos) tem estrita relação com os direitos humanos e guarda consonância com as garantias e os direitos fundamentais, galgando os caminhos do desenvolvimento humano e social.
Ademais, no caso brasileiro, o contexto de criação da Lei 9099/95, demandava uma maior efetividade do judiciário, que abarrotado, não supria a demanda processual existente, efetivando também outra garantia, que é a duração razoável do processo e o acesso ao judiciário.
É certo que em alguns países, como o são a Islândia (atualmente o país mais seguro do mundo), Portugal, e Nova Zelândia, possuem os melhores índices de segurança mundial. E o Brasil, a nona posição entre os países mais violentos do mundo.
Ocorre que o país considerado mais seguros do mundo, ao contrário do que se pensa, tem políticas de prevenção ao crime muito mais efetivas, sendo o cárcere uma medida extrema e quase desnecessária.
Outrossim, é importante ressaltar que, no caso da Islândia, fatores como a igualdade social, educação, IDH contribuem ou determinam a baixa criminalidade, o extremo oposto do que se vê em relação ao Brasil.
No entanto, para a análise a ser realizada, os fatores sociais não determinarão os resultados, sim as políticas criminais adotadas.
Portanto, inicialmente far-se-á uma análise da relação violência x cárcere no Brasil, apontando algumas questões que agravaram, ao longo dos anos, a situação da criminalidade brasileira.
Posteriormente, adentraremos a análise da inefetividade das atuais políticas anticárcere implementadas, bem como a síndrome da bandidolatria que se dissemina na sociedade em contraste com a visão garantista tradicional de Luigi Ferrajolli.
Por fim, resta uma análise geral de todo o contexto produzido, a fim de corroborar a proposta de estudo trazida.
2 A DESENCARCERIZAÇÃO MASSIVA E A POLÍTICA PRÓ DESVIO
2.1 A VIOLÊNCIA E O CÁRCERE
Apesar de ser um dos países com mais alto índice de “encarceramento” , o Brasil ainda ocupava nona posição no Ranking dos países mais violentos do mundo em 2019, segundo dados da agência da Organização das Nações Unidas,.
Isso prova que uma política criminal implementada não resulta, necessariamente, na diminuição da violência ou criminalidade no país, ao revés, gera um sistema prisional extremamente precário e sem condições de suprir o mínimo existencial dessa população, ou como reconhecido pela cúpula do poder judiciário nacional, Estado de Coisas Inconstitucionais que presenciamos atualmente no país.
Analisando o exemplo supramencionado de “sociedade ideal”, percebemos que no caso da Islândia, muito além de fatores como igualdade, educação e desenvolvimento humano, o aparato repressivo do Estado atua, prioritariamente, na prevenção ao crime e a sociedade mantém vivos os freios morais, posto ser impossível qualquer política que resolva a generalização de todos os desvios, mesmo os de juridicidade neutra. Uma sociedade em que o motor é ser desviante é impossível se viver em ordem.
No caso do referencial utilizado, segundo pesquisa da BBC Brasil, a cultura do país é majoritariamente preventiva, denunciando-se qualquer indício de desvio, reafirmando a eficácia das normas.
Essa forma de atuação evita que o câncer da criminalidade se enraíze na sociedade de forma a corrompê-la por completo, como é o caso do Brasil, especialmente em algumas Regiões.
Ademais, segundo pesquisa realizada pelo canal BBC Brasil (2013), a Islândia é um dos países com maiores taxas de posse legal de armas, ocupando a 15° posição no ranking mundial em 2013, refutando teses ideológicas de que o desarmamento da população é a saída para a diminuição da violência urbana.
No Brasil, em 2006, à despeito da decisão popular manifestada pelo referendo realizado, foi-se subtraído do cidadão o direito a posse legal de arma de fogo, deixando o cidadão completamente dependente de um aparato repressivo estatal deficiente, e uma criminalidade fortemente armada e organizada. Criou se o ambiente perfeito para o caos atual.
Assim, a necessidade de encarcerar é menor, bem como os índices de criminalidade e violência, já que a atuação estatal é preventiva.
A necessidade de encarcerar é filha da leniência, não com o crime apenas, mas com o que vem antes: a ideia de crime. No Brasil criou-se o senso de que ser criminoso é uma virtude. Basta observar o que a indústria do entretenimento tem exaltado.
Além disso, no Brasil, outra tese que domina entre os que se autointitulam garantistas, é a que atribui parte da responsabilidade pelo crime ao próprio Estado/sociedade, sob o pseudônimo jurídico de teoria da co-culpabilidade da sociedade, que, conforme Pessi e Giardin (2018, p.35) “é obvio que teorias dessa ordem escondem, sob um verniz de pseudossofisticação e preocupação humanitária, o mais autêntico barbarismo”, se opondo à essência e verdadeiro objetivo do humanismo, que conforme Moraes Jr. (p. 90) citado por Pessi e Giardin (2018, p.34)
Humanismo sadio é o que se volta ao trabalhador pacato: para a faxineira, para a lavadeira (que não delinquem); para o balconista e para o ascensorista (que não delinquem); para o metroviário e para o bancário (que não delinquem); para rurícola, cujo único crime é suplicar um pedaço de terra, para o funileiro, o carpinteiro, o operário em construção (que não delinquem); para todos quantos se vêem submetidos a formas espoliativas de trabalho, abrigam-se em sub-habitações, alimentam-se precariamente, vestem-se mal, afligem-se em corredores de hospitais deficientes (e não delinquem, não delinquem, não delinquem, porque mansos de espirito, puros, dotados de boa índole). Falso e hipócrita humanismo é o que prodigaliza benesses aos que estupram, sequestram, roubam e matam. Grifos nosso.
Fato é que inexiste sociedade pacífica e com baixos índices de criminalidade sem uma efetiva política de segurança pública e de repressão a criminalidade, como pregam alguns estudiosos. O que existe são medidas tão efetivas de repressão ao crime que tornam quase desnecessárias a aplicação de reprimendas mais severas, como a própria pena privativa de liberdade.
Esse segundo caso é exatamente o que ocorre em países mais desenvolvidos como a Islândia.
O caso brasileiro, ao revés, inicialmente adotou-se uma política criminal de encarceramento massivo e, mais atualmente, afrouxam-se as cordas, achando que a violência e a criminalidade irão diminuir juntamente com o número de privados no sistema prisional.
Além disso, a situação se agrava com a cultura da bandilolatria, que distorcendo parâmetros sociais, se infiltra na hermenêutica jurídica, e corrompe ideias garantistas essenciais ao processo, em especial o processo penal.
Ainda citando Pessi e Giardini (2018, p. 34), essa bandidolatria, “é a mentalidade hegemônica junto à oligarquia acadêmica, político-burocrática e jurídica do país, verdadeira bússola quebrada a guiar a elaboração e aplicação das leis e ações levadas a efeito em matéria de segurança pública”.
O cenário que se tem, é um aumento no índice de violência e criminalidade, principalmente nas grandes cidades, o domínio de regiões pelo poder não estatal, e uma completa incredulidade social na efetividade do sistema penal.
O Brasil tomou o caminho reverso dos países mais desenvolvidos, cuidando só, e muito mal, da última missão do estado no que tange a segurança pública, isso é, a punição.
2.2 A INEFETIVIDADE DOS INSTITUTOS PENAIS TRANSACIONAIS E A DEVOÇÃO SOCIAL AO CRIMINOSO
Inicialmente, a fim de ilustrar o que será analisado nessa sessão, cita-se o diálogo inicial do filme O Poderoso Chefão
Bonasera – Eu acredito na América! A América fez a minha fortuna. Criei minha filha ao estilo americano. Dei liberdade a ela. Mas eu a ensinei a nunca desonrar a família. Ela arrumou um namorado que não era italiano. Ela ia ao cinema com ele. Chegava tarde. Eu nunca reclamei!
Há dois meses ele a levou para passear com outro amigo, eles a fizeram beber whisky, e aí tentaram abusar da minha filha. Ela resistiu, manteve a honra! Então bateram nela como em um animal. Quando eu fui ao hospital, o nariz dela estava quebrado, o queixo estilhaçado, preso com um arame. Ela não conseguia nem chorar por causa da dor, mas eu chorei. Por que eu chorei? ela era a luz da minha vida! Uma menina linda! Agora jamais vai ser linda de novo! (choros) desculpe!
Eu fui à polícia como um bom cidadão. Os dois rapazes foram julgados. O juiz os condenou a três anos de prisão e suspendeu a sentença. Suspendeu a sentença! E eles ficaram livres naquele mesmo dia. Eu fiquei no tribunal como um idiota, e aqueles dois safados sorriram para mim. Aí eu disse a minha mulher: para termos justiça, temos que ir ao Dom Corleone.
Dom Corleone – Por que você foi à polícia? Por que não veio a mim primeiro?
Bonasera – O que o senhor quer de mim? Diga qualquer coisa, mas faça o que estou implorando!
Dom Corleone – O que você quer?
Bonasera – (cochichos)
Dom Corleone – Isso não posso fazer!
Bonasera – Eu pago o que o senhor pedir!
Dom Corleone – Nos conhecemos há muitos anos, mas é a primeira vez que vem a mim se aconselhar ou pedir ajuda. Eu me lembro a primeira vez que me convidou para ir à sua casa. Embora minha mulher seja madrinha da sua única filha. Mas vamos ser francos, jamais quis a minha amizade! Tinha medo de ficar em débito comigo.
Bonasera – Eu não queria me envolver em problemas.
Dom Corleone – Eu entendo, você achou o paraíso na América. Montou um bom negócio, tinha uma boa vida, a polícia te protegia, tinha os tribunais. não precisava de um amigo como eu! Mas… agora vem a mim e diz: Dom Corleone, faça justiça! Mas você não pede com respeito, não oferece amizade. Nem pensa em me chamar de padrinho! Em vez disso, vem a minha casa, no casamento da minha filha e me pede para matar por dinheiro.
Bonasera – Eu só peço por justiça!
Dom Corleone – isso não é justiça. Sua filha ainda está viva!
Bonasera – então que eles sofram, como ela está sofrendo. Quanto eu devo lhe pagar?
Dom Corleone – Bonacera… Bonacera. O que foi que eu fiz para que me tratasse com tanta falta de respeito? Se tivesse vindo a mim por amizade, os pilantras que maltrataram sua filha já estariam sofrendo nesse instante. E se, por acaso, um homem honesto como você fizesse inimigos, eles seriam meus inimigos, e temeriam você.
Bonasera – Quer ser meu amigo? Padrinho.
Dom Corleone – Bom! Um dia, e esse dia talvez jamais chegue, eu vou pedir a você para me fazer um favor, mas até esse dia, aceite a justiça como um presente pelo casamento da minha filha.
Bonasera – Grazie!
A ilustre obra cinematográfica, que até os dias atuais é considerada uma das maiores produções do cinema mundial retrata a conivência do Estado com o crime e a insatisfação da vítima com essa proteção deficiente.
Dizem que a arte imita a vida!
Em um contexto real, cita-se obituário da segurança pública do Rio Grande do Sul, veiculado pelo Correio do Povo na edição de 25 de agosto de 2016 trazia o seguinte:
Uma mulher foi morta em uma tentativa de roubo de um veículo o final da tarde desta quinta feira no bairro de Higienópolis, em porto alegre. O crime ocorreu em frente ao Colégio Dom Bosco, na rua Ari Marinho. De acordo com informações da Brigada Militar, a vítima tinha ido buscar o filho no colégio quando um homem se aproximou e anunciou o assalto. O disparo ocorreu no momento em que ela tentava tirar o cinto de segurança. O carro da vítima, um Honda Fit, não foi levado. O criminoso fugiu em um Fiat Palio vermelho, onde era aguardado por outros três homens, em direção à avenida Plinio Brasil Milano. A Brigada Militar faz busca na região.
A pesquisa realizada pelo jornalista José Luís Costa “Como A Impunidade Matou Uma Mulher Que Buscava O Filho Na Escola” citada por Pessi e Giardin (2018, p.23) mostra o histórico criminal de Thiago Oliveira da Silva, o autor do crime, até a data dos fatos
2003 – infrator na adolescência. Com passagem pela Fase [ Fundação de Atendimento Socioeducativo], aos 17 anos foi apontado como autor de um assalto a motorista usando garfo de cozinha, em Porto Alegre;
2004 – foi preso 2 vezes, acusado de receptação e homicídio mas foi absolvido;
06 de abril de 2005 – um dia antes de completar 19 anos, assaltou um grupo distante na capital e feriu a tiro um deles;
19 de abril de 2005 – foi detido por suspeita de participar de um assalto;
20 de julho de 2006- foi condenado a 12 anos de prisão pelo assalto. a pena foi reduzida pelo tribunal de justiça para 10 anos e 9 meses;
15 de maio de 2007- mesmo com conduta carcerária considerada péssima exame criminológico apontando que apresenta alto grau de vulnerabilidade psicossocial, acarretando perigo à sociedade, foi beneficiado como progressão para o semiaberto e transferido para a Colônia Penal Agrícola de Charqueadas (CPA);
30 de agosto de 2007 – TJ cassou a progressão de regime, atendendo pedido do Ministério público. Mas antes de ser cumprida, o jovem fugiu da CPA em 14 de setembro.
22 de novembro de 2007 – foi recapturado. cumpriu punições no regime fechado em isolamento para fuga e mau comportamento carcerário;
21 de junho de 2010 – ganhou um novo benefício do semiaberto, mas, 12 dias depois, fugiu da CPA;
15 de dezembro de 2010 – foi recapturado, permanecendo em regime fechado, por 8 meses, na Penitenciária Estadual de Jacuí;
02 de agosto de 2011 – voltou para o semiaberto, transferido para a CPA. no mês seguinte, obteve direito a liberdade condicional.
02 de outubro de 2012 – foi preso em flagrante com 47 pedras de crack e um revólver calibre 38 com a numeração raspada na capital;
27 de fevereiro de 2013 – foi condenado a 8 anos e 8 meses. mas decisões do TJ e do superior tribunal de justiça diminuíram a pena para 3 anos e 2 meses, anulando a condenação por tráfico com o argumento de que não havia provas;
15 de agosto de 2013 – com a redução da pena, o livramento condicional foi mantido e Tiago voltou para casa;
14 de abril de 2014 – atendendo a recurso do MP, o tribunal de justiça mandou prender Tiago;
10 de agosto de 2015 – foi preso em flagrante por 6 assaltos na zona norte de Porto Alegre, crime ainda não julgado;
22 de outubro de 2015 – foi revogado o livramento condicional;
10 de dezembro de 2015 – determinada a regressão para o regime fechado;
23 de maio de 2016 favorecido com comutação de penas (desconto) conforme decreto presidencial (mesmo do indulto natalino) Thiago foi solto;
25 de agosto de 2016 – assaltou 8 pessoas e matou Cristine Fonseca Fagundes. foi preso no dia seguinte e confessou os crimes.
Em 11 de maio deste ano foi realizada a primeira audiência sem a presença de Thiago. A SUSEP não o apresentou por déficit de pessoal. Um dos PMs , testemunha da acusação, estava de férias. em 18 de agosto, houve a segunda audiência. em liberdade, Tiago ( em liberdade desde maio) não tinha sido localizado para ser intimado e não apareceu. Dias depois, matou a vendedora Cristine.
A cultura da impunidade não somente gera um sentimento de insatisfação popular com o Estado, como faz diversas vítimas diárias, como foi o caso citado acima, em que uma mulher foi morta na porta da escola do filho por um homem que deveria estar preso.
Voltamos os olhos principalmente para o criminoso, deixando a lesão e o objeto da lesão completamente de lado, criando uma tendência de vitimização do vitimizador.
Essa mentalidade criminosa floresce e se nutre pela cultura da impunidade, conforme Santos (ano p.87) citado por Pessi e Giardin (2018, p. 36) “Já há quem se pergunte se a sociedade, dentro de alguns decênios, não contará só com delinquentes e loucos, cujo número cresce em proporções avassaladoras”.
A inefetividade do Estado em dar uma resposta ao crime gera insegurança aos cidadãos, que insatisfeitos com o descaso do aparato repressivo do Estado, muitas vezes recorrem aos meios arcaicos de fazer justiça, como ilustrado na obra cinematográfica citada.
Outrossim, essa política leniente acaba por incentivar a prática reiterada de crimes, que, sabem os criminosos, não serão punidos adequadamente, ou sequer serão punidos, como é o caso dos menores infratores, que contam com uma carta em branco após completarem a maior idade.
Fato é que a lei deve funcionar!
Nas comunidades, por exemplo no Rio de Janeiro, há um sistema jurídico próprio de leis rígidas e efetivas. Há um anomia no que tange as leis do estado, e uma perfeita eficácia das “leis” próprias daquela comunidade.
A “lei” da comunidade funciona na comunidade. Isso ocorre porque naquele “microssistema” a punição ao infrator é eficiente e rápida. Isso faz cair por terra qualquer discurso falacioso de que o recrudescimento da lei penal não funciona se atrelada a uma punição eficiente.
Não se pretende aqui igualar o Estado às organizações criminosas, tampouco dizer que as penas aplicadas devem ser iguais, apenas reafirmar que a eficácia de uma norma penal está diretamente relacionada às suas consequências, sendo a resposta do Estado o desestimulo necessário à prática de um delito.
O desembargador Edson Brandão, no programa Roda Viva de 26/02/2018, acerca desse tema, esclarece
[…]chegou-se ali (no estado do Rio de Janeiro), a uma anomia. A gente nem diz mais anomia, porque a lei normal, a alei formal do Estado ali não existe, mas existe uma lei extremamente severa. A gente conversava antes, e eu contava: uma parte de acesso ao morro da mangueira que tem uma placa, uma faixa colocada semana passada. Lixo no chão, tiro na mão! Não tem mais lixo no chão, quem jogar vai tomar um tiro na mão pelo tráfico local.
Ainda nesse sentido, a ineficiência do sistema punitivo, ou a complacência estatal com o crime também fica demonstrada quando observamos a aplicação indiscriminada dos institutos transacionais penais.
Edson Brandão, desembargador do TJ SP, sobre esse assunto, relata (ibid)
[…]Outra situação que é única em nosso país, única. Os americanos têm o livramento condicional. O sujeito sai e aguarda 4, 5 anos cumprindo a pena fora, com condições. Se ele não cumprir aquele favor, é um favor isso, por que ele tinha que cumprir pena, se não cumprir ele volta atras e fala: meu amigo, faltam 5 anos que você não cumpriu, você assaltava banco! Aqui no Brasil não, essa pena no Brasil é dada por cumprida. Grifo nosso
Essa política pró-crime corrompe todo o sistema penal, corrompe conceitos constitucionais e garantias processuais, em prol da criação de uma sociedade essencialmente desviante e desequilibrada, quiçá, anárquica.
A maior prova disso é que, atualmente, até as penitenciarias têm facção. O Estado perdeu as rédeas da criminalidade, reconhecendo sua incapacidade de dominar o poder paralelo quando separa o apenado por facção, e não pela complexidade do crime, a despeito do que manda a Lei de Execuções Penais.
2.3 O GARANTISMO PENAL DE FERRAJOLLI EM CONTRAPOSIÇÃO AO LAXISMO PENAL
O Código de Processo Penal (BRASIL, 1940), na exposição de motivos, no título referente ao Espírito do Código, XVIII, nos traz os pontos que considera relevante o legislador.
Do que vem a ser ressaltado, e de vários outros critérios adotados pelo projeto, se evidencia que este se norteou no sentido de obter equilíbrio entre o interesse social e o da defesa individual, entre o direito do Estado à punição dos criminosos e o direito do individuo às garantias e seguranças de sua liberdade. Se ele não transige com as sistemáticas restrições ao poder público, não o inspira, entretanto, o espírito de um incondicional autoritarismo do Estado ou de uma sistemática de prevenção contra os direitos e garantias individuais.
Esse liame que equilibra o poder dever de punir do Estado e as garantias individuais já foi ultrapassado. E as instituições oficiais do Estado avançam em direção à ruína, destituindo do estado, seu monopólio.
O equilíbrio de que trata o próprio código implementou um novo panorama nas políticas criminais até então praticadas. Sabe-se que o Brasil herdou as leis e praxes legais de Portugal, e que as ordenações, de forma geral, possuíam leis penais rígidas, como castigo físico, a própria pena de morte, etc.
O Código de 1830, intitulado Código Penal do Império, aboliu uma série de penas cruéis e incorporou os princípios da reserva legal e do devido processo legal, trazidos pela Constituição de 1824.
Apesar de inovador, manteve a pena de morte. Acredita-se no meio acadêmico que isso se deu devido a necessidade de se controlar os escravos, que seriam indiferentes a outros castigos.
O código de seguinte de 1890, apressado, sofreu diversas críticas e alterações legislativas. O código seguinte, de 1940, apesar de ter nascido durante um período autoritário, incorporou as bases de um direito punitivo democrático e liberal. A reforma sofrida na parte geral em 1984, inaugurou o finalismo, o sistema vicariante e a responsabilidade subjetiva.
Por fim, o pacote anticrime, apesar de ter trazido mais um instituto transacional, o Acordo de Não Persecução Penal, apresenta um sopro de sanidade na tratativa penal, como se pode observar na elevação da pena máxima a ser cumprida, e a alteração de parâmetros de progressão de regime de cumprimento de pena.
Em síntese, partimos de um Estado extremamente autoritário e arbitrário para um ativismo laxista-penal que assola a sociedade nos dias de hoje e produz cada vez mais criminosos.
Nem tanto a terra, nem tanto ao mar. Se de um lado, a arbitrariedade e o autoritarismo estatal geram o que a doutrina chama de guantanamização do processo penal, por outro, o desleixo do titular do poder dever de punir com sua missão, gera um estado de insegurança e caos social, remetendo aos primórdios, onde imperava a lei do mais forte e justiça com as próprias mãos.
Acerca disso, Luigi Ferrajolli, o pai do garantismo penal, em seu livro Direito e Razão, discorre (2002, p. 79)
A unidade do sistema […], mediante sua formalização, depende, segundo meu modo de ver, do fato de que os diversos princípios garantistas se configuram, antes de tudo, como um esquema epistemológico de identificação do desvio penal, orientado a assegurar, a respeito de outros modelos de direito penal historicamente
concebidos e realizados, o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo e, portanto, de limitação do poder punitivo e de tutela da pessoa contra a arbitrariedade.
Vemos que o ideal garantista de Ferrajolli está associado a limitar o poder punitivo do Estado, e não em tolher seu dever de punir. Já que é o Estado o único titular do direito de punir em uma sociedade democrática, deve fazê-lo em consonância com o ordenamento jurídico que o rege.
Acerca desse modelo, Ferrajolli (2002) discorre que possui a função de delimitar o poder punitivo do Estado mediante a impossibilidade de punições extra e ultra legem, e se compatibiliza com valorações subjetivas, desmentindo a versão clássica do modelo penal garantista, abrindo espaço para valorações subjetivas do juízo, por exemplo no que tange a avaliação de provas, dos fatos, etc. É o que Ferrajolli denominou poder de cognição. Segundo Ferrajolli, acerca desse modelo clássico (2002, p. 73) “Trata-se de um modelo-limite, apenas tendencialmente e jamais perfeitamente satisfatível.”
Essa unidade de sistema, ou esquema, ainda conforme o autor, constitui-se por dois elementos: um deles se associa a definição legislativa e outro, a comprovação jurisdicional do desvio punível, são as garantias penais e processuais, que garantem ao cidadão uma esfera intangível de liberdade.
A esfera de liberdade do cidadão a que se refere, se consubstancia no princípio da legalidade e igualdade, ou seja, só será punida a conduta que está prevista em lei, e de forma igualitária entre os cidadãos, sem distinções subjetivas.
Assim, para ele, os sistemas de direitos e responsabilidade penal oscilam entre dois extremos, que se distinguem conforme a limitação do poder punitivo, é o que o autor denominou direito penal mínimo e direito penal máximo.
Acerca do direito penal mínimo (2002, p.142)
[…] quer dizer, condicionado e limitado ao máximo, corresponde não apenas ao grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza. Com isso resulta excluída de fato a responsabilidade penal todas as vezes em que sejam incertos ou indeterminados seus pressupostos. Sob este aspecto existe um nexo profundo entre garantismo e racionalismo. Um direito penal é racional e correto à medida que suas intervenções são previsíveis e são previsíveis; apenas aquelas motivadas por argumentos cognitivos de que resultem como determinável a “verdade formal”, inclusive nos limites acima expostos .
Sendo o direito penal máximo o extremo oposto.
Através dessas práticas penais é possível se alcançar a confiabilidade do juízo e a racionalidade das decisões, pois como dito pelo próprio autor, o juiz não é uma máquina pela qual se colocam os processos por cima, e saem as sentenças por baixo.
O juiz, em conformidade com as garantias processuais, julga os autos e emite sua sentença.
Ocorre que essa sentença deve estar em consonância com a constituição, os direitos e garantias processuais, respeitando o individuo submetido ao processo. Mas não é somente isso, na sentença, a pena imposta deve retribuir ao infrator o mal que ele causou à vítima, (ou às vítimas) a pena serve como um acalanto ao espírito da vítima, que se vê protegida pelo Estado, que cumpre sua função contratual com seu administrado por meio desse ato judicial.
Ou seja, o Estado é o legítimo protetor da sociedade, e possui o dever de fazê-lo. A criação de um ativismo laxista-penal se contrapõe a função do Estado, tornando vulneráveis as instituições democráticas, como se vê por meio da dominação do poder paralelo em determinadas regiões, e consequentemente, deixando vulnerável a população.
Conforme Pessi e Giardin (2018, p.46)
A força desse ativismo laxista-penal não pode ser subestimada: em uma luta sem trégua, foi ele o responsável pelo fim do regime de cumprimento de pena integralmente fechado nos crimes hediondos (um raro espasmo legiferante pró-sociedade, rapidamente neutralizado pelo estamento).
“A impunidade é filha dileta da bandidolatria” (PESSI E GIARDIN. 2018, p.37).
acerca disso, cita-se um julgado analisado por Pessi e Giardin, a fim de reafirmar o quanto esse laxismo penal é prejudicial à sociedade (2018, p.37)
A Oitava Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no julgamento do caso de abuso sexual cometido contra uma criança de cinco anos de idade, reconheceu que o réu “movido por intensa lascívia passava os dedos e lambia a vagina da menor para satisfazer seus impulsos sexuais”. Contudo, afastou-se a configuração do crime de atentado violento ao pudor (denominação do tipo penal à época), sob fundamento de que “o excesso de rigor da lei não faz justiça ao caso concreto”, pois afinal, “a ação, cometida pelo réu contra a vítima, não teve uma repercussão tão danosa que exigisse uma punição exemplar”. A sequência da fundamentação foi registrada que “ainda que se afirme certo desgaste psicológico (as informações dos pais dão conta disso), ele se deve muito mais as atitudes do adultos, tratando o assunto com grande alarde, que propriamente a ação do agente. Esta se deu através de toques em partes do corpo da ofendida e talvez o ato do cunilíngua”.
Consta, ainda, na decisão, que “o dano psicológico não foi tão intenso, tão marcante que determinasse uma reprimenda rigorosa”, razão pela qual punir o recorrente com nove anos de reclusão em regime integral fechado seria injusto, pois só traria “desgraça a todos, sem que se possa afirmar que alguém ou algo foi beneficiado”. Assim, para adequar a situação em julgamento à hipótese legal, para se fazer justiça, embora a vítima contasse com tenra idade na época”, afastou-se a presunção de violência, sob o fundamento de que “a vítima foi de espontânea vontade ao encontro do recorrente, atraída pelos dizeres do acusado” e a prática do ato libidinoso deu-se “vamos assim dizer, com o consentimento da criança”, que foi “seduzida e não violentada”.
Apesar de ter sido reformada, a decisão desse recurso nos serve de lupa para verificarmos o quão prejudicial é essa cultura laxista, e a gravidade que representa esse tipo de prática à segurança dos cidadãos.
Essa justiça criminal, drive thru, conforme intitulada por Pessi e Giadin (2018, p.44) entra em ação, “ávida por devolver às ruas, o mais rápido possível, essas pobres “vítimas da sociedade”.
A lei penal brasileira, em si mesma leniente, tem sua frouxidão exponencialmente ampliada por decisões que primam pela glamourização da criminalidade: buscam justificar as “razões de agir do delinquente” em oposição a falta de legitimidade do Estado para reprimir o crime. Criminosos de alta periculosidade são diariamente “reintegrados ao convívio social” por decisões judiciais que “não verificam a presença de motivos para a sua prisão”. Embora condenado em primeira instancia, o delinquente dificilmente sairá de mãos vazias, caso decida manejar um recurso (o que provavelmente fará em liberdade, condição na qual respondeu todo o processo). Não é possível absolvê-lo? espiolha-se alguma nulidade (elas são cada vez mais fartas) fazendo o processo voltar à estaca zero, e empurrando-o, se possível, para a prescrição. O processo não dá margem a isso? Basta reduzir a pena para um patamar pífio (operando a desclassificação do delito, se necessário, como vimos no caso do abuso infantil, há pouco referido). Ainda não foi o bastante? Resta aguardar, então, a progressão de regime e um generoso indulto presidencial.
A crítica que se faz, veja bem, não é às garantias processuais e penais, ao revés, somos todos súditos da democracia, e homenageamos o estado democrático de direito, mas sim a uma política pró crime que tem se implementado na sociedade, em especial no âmbito do poder legislativo e judiciário.
Partindo do garantismo de Luigi Ferrajolli, defendemos com nossa vida os direitos e as garantias legais, mas não podemos pagar com nossas vidas e com os nossos direitos pela laxidão penal, vestida sob o manto de direitos e garantias, que tem encontrado nas instituições estatais pleno amparo.
Segundo relatório do CNJ de 2020, a Justiça Estadual é a que tem maior representatividade de litígios no poder judiciário, contando com 65,5% da demanda, aumentando para 91,1% na área criminal.
Os dados do relatório mostram que em 2020, ingressaram no judiciário 1,2 milhão de novos casos criminais, em contraposição ao número de execuções penais iniciadas, que foi de 311,6 mil.
Ou seja, apesar de sabermos que as execuções iniciadas não correspondem aos mesmos processos iniciados àquele ano, podemos tirar uma média de que apenas ¼ dos processos penais chegam à execução, isto é, ¾ dos acusados em processo penal são absolvidos seja lá por qual motivo for, e desses ¼ que sofrem a execução, outros tantos porcento cumprem penas minimamente estabelecidas, muitas vezes desproporcional à natureza do crime, como foi o caso do julgado no recurso citado acima, ou fogem durante a execução, ou são beneficiados com um gracioso indulto.
Além desses números, outra questão refere-se ao que Ferrajoli chamou de cifras da impunidade. Ainda segundo o relatório do CNJ, ao final de 2020 havia 1,7 milhão de execuções penais pendentes, sendo 1,14 milhão de execuções de pena privativa de liberdade e 0,6 milhão de processos referentes a penas não privativas de liberdade. Isso é 1,7 milhão de indivíduos que deveriam estar presos, ou pagando de alguma outra forma pelo crime que cometeu estão nas ruas delinquindo.
Essa prática “laxista” de direito penal não funciona, isso fica evidente quando nos deparamos com os números expostos acima, e olhamos para a sociedade atual que caminha a passos largos à uma esquizofrenia coletiva.
CONCLUSÃO
Chega-se, portanto, munido de suficiente arcabouço teórico e prático, à conclusão de que a prática penal tem se dissociado do que a teoria prevê como sendo o modelo garantista constitucional e democrático.
Instalou-se em nossa sociedade um direito penal laxista, e uma cultura de exaltação ao crime e ao criminoso, construindo a fórmula mágica para o disparo da criminalidade.
O criminoso deve ser punido – punido com rigor e eficiência, submetido a um processo penal devido, respeitadas as suas garantias e seus direitos – mas deve ser punido.
O direito penal laxista, junto com a cultura da bandidolatria tem, cada vez mais, atado a espada de Themis, impedindo o Estado de exercer seu papel de legítimo protetor da sociedade.
Essa cultura desviante e o desestímulo ao cárcere são, em grande parte, responsáveis pelos índices de violência atuais, juntamente com a ineficiência da justiça penal e a técnica drive thru, que passou a compor os modelos de decisões judiciais.
Desta forma, é necessário rever os caminhos que a sociedade brasileira tem tomado, já que a criminalidade tem alcançado números alarmantes, e a justiça laxista não tem dado conta de reverter essa situação por meio da “ressocialização”.
Deve-se então, a exemplo do que já foi tratado no segundo capítulo, investir em uma justiça eficiente e rápida, que puna o crime na proporção do mal causado, sem “afrouxar” as rédeas em nome de um garantismo hiperbólico e monocular que só se volta para o criminoso, e deixa de lado a lesão, o objeto da lesão, e sobretudo, o próprio monopólio Estatal.
REFERÊNCIAS
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CORREIO DO POVO. Mulher é morta em tentativa de assalto em frente a colégio em Porto Alegre. Disponível em: https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADcia/mulher-%C3%A9-morta-em-tentativa-de-assalto-em-frente-a-col%C3%A9gio-em-porto-alegre-1.210529. Acesso em: 08 nov. 2021
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/relatorio-justica-em-numeros2021-051121.pdf. acesso em:08 nov. 2021
EUROPA. 10 países mais seguros do mundo: confira o ranking. Disponível em: https://www.eurodicas.com.br/paises-mais-seguros-do-mundo/. Acesso em: 08 nov. 2021.
FERRAJOLLI, Luigi. Direito e razão : teoria do garantismo penal. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2002.
O PODEROSO CHEFÃO. Direção: Francis Ford Coppola. Produção de Albert S. Ruddy (Estados Unidos): Paramout Pictures, 1972. Blu Ray.
PESSI, Diego; GIARDIN, Leonardo. Bandidolatria e Democídio: Ensaio sobre garantismo penal e criminalidade no Brasil. RJ. Biblioteca do Exército, 2018.
RODA VIVA. SEGURANÇA. Youtube, 26 fev. 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BWeZMrpcjkE. Acesso em: 06 nov. 2021.