A (IN)CAUTELARIDADE DO CLAMOR PÚBLICO NA FUNDAMENTAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA COMO FUNDAMENTO PARA MANUTENÇÃO DA ORDEM PÚBLICA
A (IN)CAUTELARIDADE DO CLAMOR PÚBLICO NA FUNDAMENTAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA COMO FUNDAMENTO PARA MANUTENÇÃO DA ORDEM PÚBLICA
Por Humberto Brolini Frasson***
Resumo
A prisão preventiva deve proteger o processo. Mas a garantia da ordem pública, ainda hoje, permite a aplicação do clamor social como régua para medir a necessidade da medida extrema, antecipando os efeitos da pena e afastando princípios constitucionais.
Processo penal cautelar; prisão preventiva; ordem pública; clamor público
INTRODUÇÃO
O processo penal sofreu uma recente alteração que mexeu profundamente em seu modus operandi. Com as alterações realizadas pela Lei 12.403/2011 e, sobretudo, pela Constituição Federal de 1988, o processo penal passou a atuar em favor do indivíduo que integra a sociedade, e não mais da sociedade afetada pelo delito do indivíduo.
Tal alteração ocorreu em virtude da Constituição de 1988 possuir cunho totalmente democrático, tendo exarado em seu texto garantias e princípios individuais. A exemplo da presunção de inocência, exposto em seu artigo 5º, ao estabelecer que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Vale dizer que, com o advento de tais princípios, o processo penal deixou de atuar “como mero veículo de aplicação da lei penal, mas, além e mais que isso, que se transformasse em um instrumento de garantia do indivíduo em face do Estado” (PACELLI, 2014, p. 8). Portanto, com o advento de tais mudanças, instaurou-se em definitivo o caráter tutelar do processo penal, para garantir que suas normas fossem aplicadas, apenas e tão somente, em prol do julgamento dos atos cometidos pelo agente, e não mais de uma ideia defendida pela sociedade.
Porém, ainda hoje, se vê que deveras vezes a cautelaridade do processo penal é posta de lado para que sejam acautelados os clamores da população. Em que, através da exacerbada atuação midiática, que atua como uma fábrica de culpados condenados ao desprezo e repúdio sociais, jogam-se indivíduos em clausuras já incapazes de aguentar tamanho contingente, sob o pretexto de garantia da ordem pública.
A vagueza do conceito de ordem pública, mantida como fundamento para decretação da prisão preventiva após as alterações da Lei nº 13.694/2019, segue abrindo margem para aplicação do julgamento social aplicado anteriormente à qualquer instrução processual.
No mesmo esteio, deveras decisões visam alcançar o direito penal do futuro sob a alegação da probabilidade de reiteração delitiva. Como se, por um único ato, previamente imputado ao agente, fosse possível prever as próximas ações por este adotadas. Deste modo, o presente trabalho buscará demonstrar a incautelaridade do requisito da ordem pública para a decretação da prisão preventiva. Com ênfase ao clamor público e a reiteração delitiva como fundamentos desta garantia.
- O PROCESSO PENAL CAUTELAR
- A CAUTELARIDADE DAS MEDIDAS PRÉVIAS À PENA
- A CAUTELARIDADE DA PRISÃO PREVENTIVA
- A SUBJETIVIDADE DO CONCEITO DE ORDEM PÚBLICA
- O PERIGO DO CLAMOR PÚBLICO
- AS FRONTEIRAS DA REITERAÇÃO DELITIVA
O processo penal é o instrumento do qual o Estado se utiliza para buscar da melhor maneira possível a verdade real dos fatos. Para, ao se aproximar o máximo desta, poder então aplicar a pena que lhe for cabível. É importante dizer que, da mesma forma que o Estado é o único ente que possui pretensão punitiva, este é o único que poderá criar o processo penal, com a exceção das ações penais privadas. Portanto, é através do processo penal que se busca executar a pretensão punitiva do Estado.
De tal modo, o processo “é o palco no qual devem se desenvolver, em estruturação equilibrada e cooperadora, as atividades do Estado (jurisdição) e das partes (autor e réu)” (FERNANDES, 2002, p. 31). Este desenvolvimento deve ocorrer sem que haja a valorização de uma das partes, ou mesmo a sua polarização, de forma que seja facilitado para uma das partes a elaboração de provas. O que deve haver é sim uma igualdade entre elas, principalmente no que tange a atuação solitária do acusado frente a todos os poderes da “mão pesada” do Estado.
Com a atuação igualitária, ao final de tudo o processo alcançará seu único objetivo, definir se o denunciado pelo cometimento de um crime é, de fato, culpado ou não pelo seu cometimento. Ao entendermos que o indivíduo somente será considerado culpado ao final do processo, remontamos o princípio da não culpabilidade encartado no artigo 5º da Constituição Federal, em seu inciso LVII, o qual dispõe da seguinte forma.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
Apesar de o texto constitucional ter sido escrito meio às avessas, ao presumir que ninguém será considerado culpado, pressupõe-se que todos são considerados inocentes enquanto não se provar o contrário. Tal princípio pode acabar por não culpar quem tenha de fato cometido um delito. Porém, tal medo de não culpabilidade não pode prevalecer sob o perigo de se culpar um inocente, ou seja, a pena arbitrária é mais temida pela sociedade do que o próprio delito.
[A presunção de inocência] é um principio fundamental de civilidade, fruto de uma opção garantista a favor da tutela da impunidade dos inocentes, ainda que para isso tenha-se que pagar o preço da impunidade de alguém culpável. Isso por, ao corpo social, lhe basta que os culpados sejam geralmente punido, pois o maior interesse é que todos os inocentes, sem exceção, sejam protegidos. [sem destaques no original] (LOPES JR.,2014, p. 217)
Desta passagem se conclui que não pode o Estado presumir que alguém seja culpado para garantir que a pena seja aplicada, mas sim, presumir sua inocência para que jamais se aplique uma pena excessiva ou que surja sem o devido processo legal.
Para que a persecução penal seja de fato garantida, vindo a alcançar seus objetivos, surgem medidas que, aparentemente, violam o princípio de não culpabilidade. Isto porque se revestem de um caráter punitivo, mas se prestam para impedir que o denunciado ou investigado atrapalhe, prejudique ou impeça a elaboração de provas. Para tanto, existe um rol de medidas cautelares anteriores a pena que se aplicam sobre o acusado. Todas estas medidas estão taxadas no artigo 319 do Código de Processo Penal.
Adotar uma medida que restrinja os direitos do denunciado, independentemente da proporção que esta o faça, depende da presença de dois requisitos indispensáveis:
Fumus comissi delicti, aparência de existência do crime e da autoria; periculum libertatis, perigo de que o acusado, solto, possa impedir a correta solução da causa ou a aplicação da sanção punitiva (FERNANDES, 2002, p. 31).
Desde logo se faz mister salientar, que estas medidas possuem como finalidade única a garantia processual. Haja vista serem voltadas ao andamento processual. Jamais devendo ser utilizada como uma ferramenta apaziguadora dos ânimos da sociedade. Pois, apesar de admitir que se fira o direito à liberdade de um indivíduo ainda considerado inocente, “a Carta Magna procurou resguardar o cidadão de toda e qualquer extralimitação do Poder Público” (TOURINHO FILHO, 2014, p. 650).
A proteção da sociedade, de fato abalada por um crime, deve se dar através do julgamento célere e eficaz, e da rápida aplicação da pena. Pois, apenas e tão somente a pena é o instrumento justo e hábil para aplacar os medos e angústias da população. Desde há muito que essa certeza é proferida. Como se vê no ensinamento de Beccaria.
Quanto mais rápida for a pena e mais próxima do crime cometido, tanto mais será ela justa e tanto mais útil. Digo mais justa, porque poupa ao réu os tormentos cruéis e inúteis da incerteza, que crescem com o vigor da imaginação e com o sentimento da própria fraqueza; mais justa, porque a privação da liberdade, sendo uma pena, só ela poderá preceder a sentença quando a necessidade o exigir. (BECCARIA, 2009, p. 77)
O que se vê deste adiantamento da pena não é a preocupação com que esta seja efetivamente cumprida, mas sim, o desespero institucional de exibir uma supérflua atuação estatal na aplicação das medidas que este instituiu. Não pode o sujeito ao qual um crime é imputado, servir como objeto para o manejo emocional da população, ou para a manipulação da confiança servida ao poder judiciário. Estas medidas devem ser fiéis ao cumprimento da lei, servindo como ferramenta processual.
As medidas cautelares não se destinam a “fazer justiça”, mas sim garantir o normal funcionamento da justiça através do respectivo processo (penal) de conhecimento. Logo, são instrumentos a serviço do instrumento processo; por isso, sua característica básica é a instrumentalidade qualificada (…), pois só é cautelar aquela medida que se destinar a esse fim (servir ao processo de conhecimento). E somente o que for verdadeiramente cautelar é constitucional (LOPES JR, 2014, p. 865)
Vê-se, portanto, que a aplicação de quaisquer medidas deve se voltar ao processo, e jamais ao processado. Principalmente ao considerarmos o grau de lesividade da medida máxima da segregação prévia do agente, como se verá em seguida.
Como exemplo de medida cautelar anterior ao julgamento e, consequentemente, à aplicação da pena, encontra-se a prisão preventiva. De acordo com o artigo 311 do Código de Processo Penal, ela poderá ser decretada a qualquer fase da investigação policial ou do processo penal. Quando da ação penal, poderá o juiz decretar tal medida de ofício, porém, esta arbitrariedade magistral é deveras perigosa, haja vista ser “profundamente lamentável conceder ao Juiz, que é o arbítrio da pugna jus puniendi ‘versus’ jus libertatis, o poder de decretar de ofício a prisão preventiva” (TOURINHO FILHO, 2014, p. 686).
A conversão da prisão em flagrante, em prisão preventiva, ou a sua decretação no curso do processo somente poderá ser decretada através de decisão fundamentada expedida pelo juiz competente. Assim, apesar de nos remeter ao princípio da fundamentação das decisões judiciais, esta determinação serve para impor que “ninguém poderá ser preso por ordem de delegado de polícia, promotor ou qualquer outra autoridade que não a judiciária” (LOPES JR., 2014, p. 810). O que nos faz concluir que, a fundamentação desta medida somente poderá ser exarada por aquele que o Estado confiou este poder. Assim sendo, apesar dos magistrados virem fundamentando os decretos de prisões preventivas, estes os têm feito de maneira inidônea e com argumentos incapazes de justificar tal ato, como se verá adiante.
A prisão preventiva nada mais é do que a segregação do indivíduo, antes mesmo que o julgador tenha alcançado um posicionamento sobre a culpabilidade do denunciado ou investigado. Logo, é deveras clarificado que sua aplicação ataque diretamente o princípio da inocência. Isto, pois a segregação de uma pessoa deve ser considerada como a pena máxima do direito penal. Ainda que outras medidas firam seu direito caso julgado inocente, é a prisão que se reveste de maior potencial lesivo ao inocente.
Prova desta agressividade, está no fato de se tratar a oposição à prisão preventiva, pelo nome de liberdade provisória. Tal costume se faz deveras repulsivo, tendo em vista que, apesar de preventiva, a prisão sim que é provisória.
O que é provisório é sempre a prisão, assim como todas as demais medidas cautelares, que sempre implicarão restrições a direitos subjetivos. A liberdade é a regra; mesmo após a condenação passada em julgado, a prisão eventualmente aplicada não será perpétua, isto é, será sempre provisória. (PACELLI, 2014, p. 494)
Portanto, por ser um objeto para defender a cautelaridade processual, tal modalidade de prisão deve ser tratada como a última ratio do processo penal. Ou seja, apenas poderá ser decretada após restar comprovadamente ser ineficaz a aplicação das medidas cautelares diversas da prisão, que estão previstas no artigo 319 do códex processual. Estas medidas possuem o mesmo fim, acautelar o processo penal, porém, são medidas que possuem dentro de suas próprias características, menor lesividade.
Ainda que decretada, porém, esta não deverá ser mantida enquanto durar o processo, ou seja, até o alcance de uma condenação ou absolvição. Pois assim, se estaria de fato executando a pena antes da existência de uma sentença penal. Portanto, como já dito, a prisão preventiva só deve ser mantida enquanto houverem existentes os requisitos processuais que a legitimam. Como há muito se vê dos ensinamentos do já citado Marquês de Beccaria, que, no tocante ao tempo da prisão preventiva, define que “o tempo de recolhimento ao cárcere só pode ser o estritamente indispensável quer para impedir a fuga, quer para que não sejam escondidas as provas do delito” (BECCARIA, 2009, p. 77).
Contudo, há atualmente o grande problema da insegurança social, ou da instabilidade emocional da população. Isto, pois quando do cometimento do crime surge um anseio irremediável para ver o denunciado ou investigado punido imediatamente. Uma sede de justiça desce ao seio da população que crê ter como única salvação a segregação de um dos seus que, aos olhos desta, é culpado por todas as acusações a si imputadas. Logo, cabe ao Estado atuar como mediador entre os anseios da população e a perfeita aplicação da justiça.
A ordem interna de um Estado se revela no modo em que está regulada essa situação de conflito; os Estados totalitários, sob a antítese errônea Estado-cidadão, exagerarão facilmente a importância do interesse estatal na realização, o mais eficaz possível, do procedimento penal. num Estado de Direito, por outro lado, a regulação dessa situação de conflito não é determinada através da antítese Estado-cidadão; o Estado mesmo está obrigado por ambos os fins: assegurar a ordem por meio da persecução penal e proteção da esfera de liberdade do cidadão. Com isso, o princípio constitucional da proporcionalidade exige restringir a medida e os limites da prisão preventiva ao estritamente necessário. [sem destaques no original] (ROXIN apud MARCÃO, 2011, p. 122)
Portanto, ela não possui fins emocionais, para acalmar e assegurar a população. Até mesmo em razão de que a prisão preventiva não se reveste das características da pena, ou seja, se o denunciado for julgado inocente, ao invés das pessoas formadoras da sociedade se sentirem protegidas, verão que todos estão sujeitos a privação de sua liberdade em função do medo coletivo. Por tais razões, que esta medida extrema deve ser entendida da seguinte forma.
Ato cautelar pelo qual se produz a limitação da liberdade individual de uma pessoa em virtude de declaração de vontade judicial e que tem por objeto o ingresso daquela em estabelecimento de custódia com o objetivo de assegurar os fins do processo e a eventual execução da pena, pois, apesar de serem assemelhadas em sua aparência externa, diferenciam-sepor sua finalidade. (FENECH apud CÂMARA, 2011, p. 122)
Câmara ainda arremata que esta medida somente possui amparos quando decretada para atender as finalidades processuais, e se assim não o fizer ultrapassará a contradição para com o princípio da inocência, tornando inconstitucional a prisão preventiva calcada na garantia da ordem pública e da ordem econômica.
A decretação da prisão preventiva somente poderá ocorrer quando restar comprovada a materialidade do crime, havendo indícios suficientes de autoria do denunciado e estar presente um dos requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal, quais sejam: para a garantia da ordem pública, para a garantia da ordem econômica, para a conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal.
A chamada garantia da ordem pública, requisito aqui analisado, é dona de uma subjetividade imensurável, que não possui caracteres estritos, palpáveis e materiais para ser fundamentada. Para Tourinho, ela é uma expressão de conceito indeterminado, por demais fluida, sem qualquer consistência, que não possui a menor intimidade com o processo penal, não apresentando caráter cautelar, como exigido, e arremata alegando que esta medida extrema acaba por ficar ao sabor da maior ou menor sensibilidade do Magistrado, de ideias preconcebidas a respeito de pessoas, de suas concepções religiosas, sociais, morais, políticas, que o fazem guardar tendências que o orientam inconscientemente em suas decisões (TOURINHO, 2013, p. 687).
Porém, ainda que exista tal conceito demasiadamente genérico e impreciso, e sua subjetividade seja pacificamente reconhecida, a sua aplicação tem sido deveras utilizada na fundamentação desta medida cautelar. Mas, ainda assim, sua utilização deve ser cerceada de um mínimo de objetividade e fundamentação, não podendo ser alegada a qualquer contento.
Não se presta à fundamentação adequada a alusão a conceitos abstratos de ofensa às instituições sociais e familiares, à possibilidade de gerar uma sensação de impunidade na sociedade, à necessidade de preservação da credibilidade do Poder Judiciário, ou a uma hipotética possibilidade de cometimento de outras infrações penais. (MARCÃO, 2011, p. 144)
Manter tal fundamentação subjetiva, acaba por atacar os próprios princípios do processo penal.
A indevida manutenção do pressuposto cautelar com tão ampla margem interpretativa é, inclusive, contrária à lógica sistemática não só do processo penal cautelar, como, inclusive, do próprio processo penal, contrapondo-se à discricionariedade recognitiva que deve conduzir os atos decisórios em sede de cautela penal (CAMÂRA, 2011, p. 131)
Desta forma, conclui-se ser impossível a sua fundamentação única e exclusivamente na gravidade do crime, ou no abalo que este tenha cometido no seio da sociedade. Desta forma já se posicionou o Supremo Tribunal Federal no julgamento do habeas corpus 85.020/RJ, cujo da ementa constou o seguinte.
II. Prisão preventiva: fundamentação: inidoneidade. Não constituem fundamentos idôneos à prisão preventiva a invocação da gravidadedo crime imputado, definido ou não como hediondo, nem os apelos à repercussão dos delitos e à necessidade de acautelar a credibilidade das instituições judiciárias: precedentes.
No mesmo sentido ao julgar o habeas corpus 92.299/SP.
A gravidade da imputação, consideradas as qualificadoras do tipo penal, não serve à prisão preventiva, havendo de ser elucidada na sentença relativa à culpa. Se a própria lei prevê que, em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade, forçoso é concluir que o enquadramento do crime como hediondo não revela, por si só, base para a prisão preventiva (grifado)
Logo, demonstrada a inidoneidade desta fundamentação, comprova-se que a garantia da ordem pública não possui, de fato, caráter de garantia processual. Alcançando a doutrina de Lopes Jr., vê-se que “a prisão preventiva para garantia da ordem pública (…) nada tem a ver com os fins puramente cautelares e processuais que marcam e legitimam esses provimentos”, desta forma a prisão cautelar “assume contornos de verdadeira pena antecipada, violando o devido processo legal e a presunção de inocência” (LOPES JR., 2014, p. 866/867)
O maior problema em se adotar tal fundamentação supérflua, é que esta se funda em vistas de se alcançar a chamada justiça social. Espécie de justiça para os anseios populares, que clama pela aplicação instantânea e imediata de uma pena que prive a liberdade do denunciado, e que passe aos olhos do povo, de que este, esta sujeito a uma sofreguidão capaz de acalentar uma suposta dor generalizada deixada pelo cometimento do crime. Porém, o que não se percebe é que o real problema não está em manter o denunciado livre, haja vista que, a liberdade é a regra, e a prisão é a sua mais pura exceção. O problema se encontra na lentidão do judiciário brasileiro, eivado de tantos vícios que fazem com que a persecução penal e, consequentemente, a formação da opinião do julgador, levem um tempo absurdo para serem concluídos e poderem, enfim, aplicar a tão almejada pena. A clarificação desta impossibilidade de espera, é percebida há tempos pelo Supremo Tribunal Federal, conforme se vê do julgamento do habeas corpus nº 80.379/SP que segue.
O direito ao julgamento, sem dilações indevidas, qualifica-se como prerrogativa fundamental que decorre da garantia constitucional do “due process of law”. O réu – especialmente aquele que se acha sujeito a medidas cautelares de privação da sua liberdade – tem o direito público subjetivo de ser julgado, pelo Poder Público, dentro de prazo razoável, sem demora excessiva e nem dilações indevidas. (…) O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário – não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu – traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional.
Portanto, não se pode permitir que o Estado faça uso de seus próprios deveres para se escusar da não aplicação dos direitos por si estabelecidos.
É clarividente que todo e qualquer crime causa um abalo à ordem pública, afinal, a regra é a calmaria, e o cometimento de um delito acaba por retirar da população este estado de segurança. Ademais, pode se pensar que cada crime possui um “nível” de ofensa à ordem pública. Por exemplo, o abalo causado por um furto qualificado pelo emprego de chave falsa, não possui tão forte abalo quanto aquele causado por um latrocínio, porém, ambos aceitam a decretação da prisão preventiva com fulcro à proteção da ordem pública.
Logo, o maior problema e ameaça ao princípio da inocência é justamente a maneira como os julgadores “medem” este abalo. Como as demais pessoas formadoras da sociedade, o juiz possui como meio de informação os canais de comunicação. E estes meios aparentam ser os únicos capazes de trazer ao conhecimento do magistrado os sentimentos da população. O real problema desta prática está na atuação esmagadora da mídia ao praticar e aplicar constantemente seu julgamento certeiro e livre de quaisquer falhas. Seja qual for o seu veredito.
Os jornais, sempre que ocorre um crime, o noticiam. E não é pelo fato de a notícia ser mais ou menos extensa que pode caracterizar a “perturbação da ordem pública”, sob pena de essa circunstância ficar a critério da mídia… Na maior parte das vezes, é o próprio Juiz ou o órgão do Ministério Público que, como verdadeiros “sismógrafos”, mensuram e valoram a conduta criminosa proclamando a necessidade de “garantir a ordem pública”, sem nenhum, absolutamente nenhum, elemento de fato, tudo ao sabor de preconceitos e da maior ou menor sensibilidade desses operadores da Justiça. E a prisão preventiva, nesses casos, não passará de uma execução sumária. (TOURINHO, 2014, p. 688)
Não há outra explicação para a manutenção deste instituto chamado clamor público se não esta atuação midiática. Toda vez que se efetua uma prisão em flagrante, qualquer que seja, esta mídia se esforça em elucidar os casos e encontrar os culpados. Conforme demonstrado, tudo isto para que se mostre à sociedade, uma suposta aplicação do direito. Adotando verdadeiro e repulsivo caráter de antecipação de pena, como bem se vê da doutrina de Sanguiné.
O caminho legítimo para acalmar o alarma social – essa espécie de “sede de vingança” coletiva que alguns parecem alentar e por desgraça em certos casos aflora – não pode ser a prisão preventiva, encarcerando por qualquer motivo e o maior número possível dos que prima facie apareçam como autores de fatos delitivos, mas uma rápida sentença sobre o mérito, condenando ou absolvendo, porque somente a decisão judicial prolatada em um processo pode determinar a culpabilidade e a sanção penal. (SANGUINÉ, 2001, p. 113)
Nesta linha de pensamento, o Supremo Tribunal Federal já se posicionou clarificando a incautelaridade do clamor público como fundamento exclusivo para a decretação da prisão preventiva.
HABEAS CORPUS – CRIME HEDIONDO – CLAMOR PÚBLICO – DECRETAÇÃO DE PRISÃO CAUTELAR – INADMISSIBILIDADE – PRISÃO CAUTELAR QUE SE PROLONGA DE MODO IRRAZOÁVEL – EXCESSO DE PRAZO IMPUTÁVEL AO PODER PÚBLICO – VIOLAÇÃO À GARANTIA CONSTITUCIONAL DO DUE PROCESS OF LAW – DIREITO QUE ASSISTE AO RÉU DE SER JULGADO DENTRO DE PRAZO ADEQUADO E RAZOÁVEL – PEDIDO DEFERIDO. A ACUSAÇÃO PENAL POR CRIME HEDIONDO NÃO JUSTIFICA A PRIVAÇÃO ARBITRÁRIA DA LIBERDADE DO RÉU . – A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV)- não pode ser ofendida por atos arbitrários do Poder Público, mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, eis que, até que sobrevenha sentença condenatória irrecorrível (CF, art. 5º, LVII), não se revela possível presumir a culpabilidade do réu, qualquer que seja a natureza da infração penal que lhe tenha sido imputada. O CLAMOR PÚBLICO NÃO CONSTITUI FATOR DE LEGITIMAÇÃO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE . – O estado de comoção social e de eventual indignação popular, motivado pela repercussão da prática da infração penal, não pode justificar, só por si, a decretação da prisão cautelar do suposto autor do comportamento delituoso, sob pena de completa e grave aniquilação do postulado fundamental da liberdade. (…) A natureza da infração penal não pode restringir a aplicabilidade e a força normativa da regra inscrita no art. 5º, LXV, da Constituição da República, que dispõe, em caráter imperativo, que a prisão ilegal “será imediatamente relaxada” pela autoridade judiciária. Precedentes. (STF – HC: 80379 SP , Relator: CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 18/12/2000, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ 25-05-2001 PP-00011 EMENT VOL-02032-03 PP-00611)
Em igual sentido se posicionou o ministro Paulo Medina, no julgamento do habeas corpus nº 33.668/SP, pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.
A repercussão social do fato, inerente ao estrépito de sua execução e ao repúdio que a sociedade confere à pratica criminosa, não é bastante, por si só, para fazer presente o pericullum libertatis e justificar a prisão preventiva.
Logo, o dever da sociedade é se esforçar para garantir que a liberdade seja garantida aos seus. Compreendendo que o abuso do poder estatal para uns, pode acabar convergindo para si. Sendo a principal ameaça deste instituto o risco de manter preso um inocente, e não a possibilidade de manter livre um culpado imaginário.
Outro fundamento utilizado para justificar a garantia da ordem pública é a chamada reiteração delitiva. Instituto este que prevê que o cometimento de um crime se faz presumir à probabilidade de cometimento de novos delitos. Desta forma, crê-se que, tendo cometido um crime, o agente continuará a cometer outros delitos desenfreadamente. Porém, esta ideia é deveras repulsiva, tendo em vista estar revestida dos caracteres do julgamento antecipado e da discriminação social. Conforme demonstra a doutrina de Pacelli, “costuma-se desconfiar, e muito, de qualquer juízo antecipatório acerca do risco ou do perigo de novos crimes” (PACELLI, 2014, p. 558). O autor conclui da seguinte forma.
A intolerância discriminatória, seja quanto à raça, quanto à opção sexual e até mesmo em relação às paixões desportivas, tem demonstrado os enormes riscos da prática de violência, individual e social, contra pessoas e grupos bem identificados, desafiando, assim, as certezas “científicas” fundadas exatamente na “incerteza do conhecimento” (PACELLI, 2014, p. 558)
Ademais, cumpre demonstrar, em homenagem ao posicionamento diverso que, ao fundamentar tal possibilidade de reiteração, esta deve se basear através da prova já constante nos autos, ou seja, através da comprovação dos atos já praticados pelo réu, e não pela possibilidade abstrata de vir a cometer delitos futuros. Como bem pontua Nucci, a possibilidade de reiteração delitiva do agente deverá ser “apurada pela análise de seus antecedentes” (NUCCI, 2013).
Contudo, ainda que haja tal entendimento, o que ocorre nos dias atuais é a livre aplicação desta teoria abusiva de uma presunção vulgar do cometimento de novos delitos. Desta forma, aplica-se a pena de forma antecipada, fazendo praticar duplamente a presunção de culpabilidade. Classificada da seguinte forma.
Não há como negar que a decretação de prisão preventiva com o fundamento de que o acusado poderá cometer novos delitos baseia-se, sobretudo, em dupla presunção de culpabilidade: a primeira, de que o imputado realmente cometeu um delito; a segunda, de que, em liberdade e sujeito aos mesmos estímulos, praticara outro crime ou, ainda, envidara esforços para continuar o delito tentado. (DELMANTO, 2001, p. 179 apud CUNHA, 2011, p. 147)
Ensejando maior repulsa a esta atividade discriminatória, cumpre esclarecer que a utilização do direito penal para prever novos crimes, acaba por o transformar em uma arma de vidência. De tal modo que o faz refletir “o anseio mítico por um direito penal do futuro, que nos proteja do que pode (ou não) vir a ocorrer” (LOPES JR., 2014, p. 871). Fundamentando este receio, bem clarificou o Des. Amilton Bueno de Carvalho no julgamento do habeas corpus 70006140693, pela Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
A futurologia perigosista, reflexo da absorção do aparto teórico da Escola Positiva, (…) tem acarretado a proliferação de regras e técnicas vagas e ilegítimas de controle social no sistema punitivo, onde o sujeito – considerado como portador de uma perigosidade social da qual não pode subtrair-se – torna-se presa fácil ao aniquilante sistema de exclusão social. (abreviado)
Insta salientar que, os bons antecedentes não são suficientes, per se, para obstar a decretação da prisão preventiva, em contrapartida “prender alguém, provisoriamente, apenas por conta de seus antecedentes, revela um direito penal do autor, incompatível com um Direito Constitucional do fato” (CUNHA, 2011, p. 146).
Dito isto, defende-se que esta futurologia delitiva deve ser incansavelmente rechaçada. Porém, como esta vem sendo deveras aplicada, que seja por bem pacificada e que a sua fundamentação seja calcada nas provas concretas e existentes nos autos, salientando-se que, com fulcro no princípio da inocência, apenas o trânsito em julgado de sentença penal condenatória pode servir para sua fundamentação, não podendo outras ações penais ou inquéritos contra o acusado serem utilizadas para tal fim.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De tudo o exposto, vê-se que a decretação da prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pública é uma medida totalmente incautelar, sem relação nenhuma com a objetividade do processo penal, alcançando a inconstitucionalidade em suas razões. Isto, pois se trata de um conceito totalmente subjetivo, vago e amplo, sendo determinado pela liberalidade do magistrado.
Solução para uso de tão vago conceito é a aplicação das medidas cautelares diversas da prisão que atuam em vistas de garantir a persecução penal e, tal qual a prisão, cessam a partir do momento em que o objetivo tenha sido alcançado. Em sequência, para que tal intempérie não siga sendo cometida em desacato ao princípio da inocência, se faz necessário, que a prisão preventiva seja decretada apenas e tão somente com o intuito dos fins cautelares do artigo 312 do Código de Processo Penal, quais sejam: para garantia da instrução da lei penal e para a garantia da aplicação da lei penal. Desta forma, visar-se-ia a proteção processual, deixando de lado esta ideia estapafúrdia de acautelamento social.
Por coronário, urge extinguir do certame jurídico a ideia de clamor público para a fundamentação desta mais severa medida. Pois sua utilização nada mais é do que um abuso da interpretação penal para enclausurar o maior número de denunciados ou investigados, deixando esta maré de indivíduos à mercê da atuação pífia do Estado ao tentar aplicar suas normas a qualquer custo para contrapor a lentidão e a ineficácia de sua prestação jurisdicional.
Por fim, também deve ser afastada do ordenamento pátrio a ideia de reiteração delitiva, que fere em maior gênero e grau a constitucionalidade do processo cautelar, atacando, através de conceitos previamente deliberados pela sociedade, aqueles que não podem se eximir da condição em que se encontram. Atuando de forma esmagadora contra uma das partes no processo que, antes mesmo de ter a oportunidade de exercer decentemente o seu direito ao contraditório e à ampla defesa, já é considerado por um crime do qual não se tem certeza de seu cometimento e por todos aqueles que lhe imputaram antes mesmo de ocorrer.
4REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BECCARIA, C. B. Dos Delitos e Das Penas. trad. CRETELLA JR. J., CRETELLA A. 4 ed. rev. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2009.
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***Humberto Brolini Frasson – OAB/PR nº 79.862. É advogado atuante na seara criminal desde 2016, formado em Direito pela Universidade Paranaense, Especialista em Processo Penal pela Faculdade Damásio e membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas.